São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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ELIO GASPARI
Quatro líderes de uma vitória

Na semana passada, o governo FFHH descobriu que tem à mão um poderoso instrumento de ação política. Ele se chama oposição.
Uma semana que poderia ter terminado com um enfrentamento parlamentar, e com a provável derrota do governo, terminou com uma vitória de todos. Acabou-se com o paraíso fiscal das chamadas entidades pilantrópicas, guarda-chuva sob o qual se escondem, há décadas, donos de hospitais e de instituições de ensino, bem como falsas entidades assistenciais.
Essa vitória deveu-se sobretudo a quatro líderes parlamentares: Inocêncio de Oliveira (PFL-PE), Marcelo Déda (PT-SE), José Roberto Arruda (PSDB-DF) e Miro Teixeira (PDT-RJ). Eles transformaram um monstrengo anti-social preparado pelo Ministério da Previdência numa bonita vitória do Parlamento.
Na quinta-feira, dia 2, quando o Diário Oficial começou a circular com o texto da medida provisória nš 1.729, a maioria dos parlamentares já estava saindo de Brasília. Na véspera, o governo tinha sido derrotado por 205 votos a 187 na votação do confisco de parte dos rendimentos dos servidores inativos. Esperava-se que na semana seguinte fosse ao voto a medida provisória que cobrava às entidades filantrópicas o pagamento de contribuições para a Previdência Social. (A taxa de 20% sobre as folhas.)
Doce ilusão. O texto da MP 1.729, com mais de 200 dispositivos, era uma árvore de Natal. Embutia pelo menos 44 medidas, que iam da contribuição das filantrópicas ao confisco parcial das pensões de viúvas e inválidos.
Na segunda-feira, quando o Congresso voltou a funcionar, nenhum líder da bancada governista sabia exatamente o que havia na MP. O primeiro -e único- estudo de seu texto saiu da assessoria do PT. Tinha 13 páginas e apontava 37 mudanças que configuravam "um gravíssimo ataque à previdência social pública no Brasil". O líder do partido, Marcelo Déda, definiu-a como "um saco de maldades". Ia-se para um enfrentamento.
Na manhã seguinte, Déda conversou ao telefone com o líder do governo no Congresso, senador José Roberto Arruda. Propôs que se estripasse a MP. Ficava a contribuição das filantrópicas e jogava-se o resto n"água. Nem pensar, respondeu Arruda. (Por via das dúvidas, o senador consultou o ministro da Previdência, Waldeck Ornéllas. Resposta: "Nem pensar".)
Entre as 15h00 e as 20h00 de terça-feira, os líderes governistas reuniram-se duas vezes. Na primeira, ainda estavam confiantes. Na segunda, sentiram o cheiro de queimado, mas ainda havia a idéia de usar o velho rolo compressor. A um deputado que se confessou em dúvida sobre a conveniência de levar a árvore de Natal ao plenário, ele respondeu: "Pois eu sou um poço de certezas".
Nessa hora, Inocêncio Oliveira decidiu a parada. Ele havia lido a nota técnica do PT e ouvido o murmúrio dos corredores. Argumentou que uma nova derrota do governo teria um efeito trágico e endossou o desmembramento: "Eu não vou levar um assunto fundamental para uma votação de alto risco". Tanto ele quanto Arruda estavam convencidos de que se marchava para uma derrota.
Ornéllas zangou-se, Inocêncio ficou firme, e Arruda telefonou para FFHH. Disse-lhe que seria mais prudente aceitar o desmembramento. O presidente topou. Estava resolvida a primeira parte do problema. Faltava garantir uma votação sem sustos. Como os grupos de pressão dos hospitais e instituições de ensino moram dentro da bancada governista, covinha ter cautela. Nessa hora, nada melhor que a garantia dos votos da oposição. Conseguindo-se isso, estaria reduzido a zero o custo dos votos governistas. Também se desmanchava o truque de alguns parlamentares que derrotam o Planalto e depois culpam a intransigência da oposição.
Na manhã de quarta-feira, José Roberto Arruda e Ornéllas reuniram-se com o senador Jader Barbalho (PMDB-PA), relator da Medida Provisória, já encarregado de apresentar outra proposta, enxuta e sem malvadezas. À mesma hora, com o acordo no ar, as lideranças de oposição se reuniram. Faltavam quatro horas para o início da sessão, quando o deputado Miro Teixeira (RJ), líder do PDT, pediu ao presidente do Congresso, senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), que o texto da proposta de Barbalho fosse conhecido com tempo suficiente para que o estudassem. Foi atendido.
Às 15h00, com o novo texto sobre a mesma, a liderança oposicionista reuniu-se no gabinete de Miro e, em seguida, passou a negociar diretamente com Jader Barbalho. O deputado Eduardo Jorge (SP), do PT, percebeu que a nova MP estipulava que os cidadãos só teriam acesso aos serviços assistenciais filantrópicos quando estivessem com a "sobrevivência" em perigo. Sugeriu que se adotasse o critério constitucional da necessidade. Foi aceito. Apreendeu-se outro contrabando, e a questão parecia resolvida.
Começou a sessão do Congresso, o senador Barbalho estava lendo seu relatório, mas apareceu um novo "gato". Sem que se soubesse a razão, havia-se baixado de 60% para 51% a obrigação de atendimento de pacientes do SUS pelos hospitais filantrópicos. Déda avisou aos líderes do governo que não aceitava o truque. Encaminhou à Mesa um pedido de votação em separado, com verificação de voto (o que obriga os parlamentares a botar o nome no painel). Inocêncio Oliveira chamou-o:
"Déda, quem foi que colocou esse jabuti?"
"Não sei, mas vamos pedir votação em separado".
Não foi necessário. Inocêncio limpou a área. Enquanto falava, Jader Barbalho foi informado de que a percentagem voltara a ser de 60%. (O jabuti fora colocado em cima da árvore pelas santas casas.).
Estava dado o primeiro passo para o fechamento do paraíso fiscal. Desde 1995 o governo vinha tentando cobrar contribuições previdenciárias às entidades filantrópicas. Nunca conseguiu. A oposição vinha pedindo a mesma coisa desde 1985. Nunca conseguiu. Juntos, liquidaram a fatura em menos de 72 horas.
Nenhum orador teve coragem de ir à tribuna para defender a pilantropia. O privilégio morreu sob as silenciosas vistas daqueles que o haviam preservado por mais de 20 anos.

Vade retro
A diretoria de um tradicional banco paulista acaba de fixar uma norma de procedimento para todas as suas agências e operações financeiras. É proibido fazer negócios com órgãos governamentais, empresas estatais e, sobretudo, fundos de pensão.
Não aceitará nada. Nem depósitos.
Faz isso porque não quer misturar sua marca com encrencas.
O lugar da muamba
A Secretaria da Receita Federal continua impondo aos contribuintes que desembarcam nos aeroportos brasileiros um teatro policialesco e uma declaração de bagagem ridícula. Ela obriga o cidadão a escrever, durante o vôo (na cabine), o número de série dos produtos eletrônicos que viajam no porão da aeronave. Produz filas, desconforto e mau atendimento. Tratam suas vítimas com tamanho descaso que não há nas alfândegas um lugar onde a choldra possa sentar. (Nas delegacias de polícia, há cadeiras disponíveis para os criminosos presos em flagrante.)
Depois de azucrinarem a paciência dos contribuintes, a Receita e a Polícia Federal informaram que uma blitz feita no Aeroporto do Galeão rendeu R$ 250 mil em impostos. Se alguém calcular o custo da operação, talvez descubra que deu prejuízo.
Se o doutor Everardo Maciel e o presidente do INSS estão de fato preocupados em arrecadar, podem marcar um almoço para descobrir como a Vasp conseguiu acumular uma dívida de R$ 288,6 milhões junto ao INSS. Seriam necessárias mais de mil operações contra passageiros para receber o que essa empresa deve à Previdência.
Os fiscocratas sabem perfeitamente que um jato com 150 passageiros transporta 6 toneladas de bagagem e 35 toneladas de carga.
Se os contrabandistas careiros do eixo Miami-Rio-São Paulo estão cobrando até US$ 30 por quilo para entregar qualquer tipo de carga na casa do freguês, não é na mala dos passageiros que está a pata do bicho.

A memória do major
Há duas semanas, sugeriu-se aqui que o governo brasileiro desse à memória do major do Exército chileno Ivan Lavanderos a Ordem do Cruzeiro do Sul. Essa homenagem, dada em vida ao general Augusto Pinochet, seria uma cortesia para com as Forças Armadas chilenas e um preito à democracia.
Lavanderos era guardião de presos políticos no Estádio Nacional de Santiago em setembro de 1973, nos dias que se seguiram ao golpe. Diante de uma gestão do embaixador sueco, ele liberou alguns prisioneiros. (Inclusive o brasileiro José Serra). Por conta disso, foi fuzilado.
O leitor Carlos Ilich Santos Azambuja informa, retifica e opina:
1) Lavanderos morreu em outubro, num quartel, "ao reagir à pergunta de um tenente, seu subordinado, que lhe indagara se não sentia vergonha de ser carcereiro de seus companheiros do Partido Comunista Chileno".
2) "Nesse caso, ele não faria jus à Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul".
Passaram-se 25 anos e resulta que os últimos dias de vida desse homem fazem parte de um triste momento das histórias do Chile e do Brasil. Se houver debaixo deste céu alguém que saiba mais sobre Ivan Lavanderos, desde já se agradece a remessa de qualquer informação.

Entrevista
José Arthur Giannotti


(68 anos, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, Cebrap)

O Congresso quebrou a invencibilidade das entidades filantrópicas. A partir de agora, as escolas privadas sustentadas por esse tipo de organização deverão dar, em bolsas de estudos, o equivalente ao que deixam de pagar à Previdência. Os critérios deverão ser fixados mais tarde, na regulamentação da medida. O senhor acha que se avançou?
- Avançou-se e muito. O governo e o Congresso devem ser aplaudidos de pé. Tem filantropo que compra avião e entidade que explora madeira. Avançou-se no conceito, mas se deixou a vida real para depois da regulamentação. Se não houver critérios para a concessão dessas bolsas, vai-se criar um sistema de privatização dos recursos públicos do INSS para a caixa de entidades privadas. O governo pode acabar pagando bolsas de estudo para os apaniguados dos donos dos colégios.
- O que se pode faz para evitar que isso aconteça?
- Só haverá filantropia se existirem critérios transparentes na concessão das bolsas. Elas serão dadas a alunos carentes? Então, defina-se o que é um estudante carente. É preciso dizer como elas serão distribuídas. Deve-se criar um sistema de normas públicas, e, dentro das escolas, a decisão deve caber ao corpo de professores, com algum tipo de participação externa. A competição dos estudantes pelas bolsas deve ser transparente. Eles devem saber quais critérios lhes deram, ou negaram, a bolsa. Deve-se discutir a eficácia da gratuidade integral. Há famílias que podem pagar alguma coisa. Não há por que levar para as instituições particulares a gratuidade absoluta que vigora nas universidades públicas. Ou se faz isso, ou criaremos mecanismos de caridade pública para satisfazer os interesses particulares dos donos de escolas. Um dono de escola, carente de apoios políticos, dá um lote de bolsas a um amigo carente de prestígio popular e nós pagamos a conta.
- O senhor é contra a gratuidade absoluta das universidades públicas?
- Sou contra essa discussão mal formulada. Estamos todos de acordo que as camadas mais ricas da sociedade brasileira estudam de graça nas universidades públicas, com o dinheiro de todos os contribuintes. Basta procurar estudantes negros numa grande universidade pública para perceber que esse sistema é injusto.
Nossa educação é de um elitismo brutal. Eu defendo o pagamento de uma taxa qualquer. Pode até ser uma taxa para estacionar o automóvel que o estudante ganhou da família. Com o dinheiro dessas taxas, cria-se um fundo, gerido pelos alunos, professores e pelo poder público, para incentivar a entrada de estudantes pobres nas universidades. Colocando essa questão de forma grosseira, eu proporia o seguinte: cria-se a taxa para quem pode pagar, e o dinheiro do fundo vai para a educação de estudantes pobres, de famílias chefiadas por mulheres. Troco essa minha proposta por qualquer outra, mas pergunto, você é contra?

Novidade: Itamar
Vem aí um forte candidato a presidente. Chama-se Itamar Franco.
É chique considerá-lo primitivo, mercurial e mal acompanhado. É primitivo, mercurial e mal acompanhado, mas antes de condená-lo ao ostracismo, deve-se levar em conta que conseguiu os seguintes êxitos:
1) Chegou à Presidência da República.
2) Elegeu o seu sucessor, coisa que em 70 anos só foi conseguida por Arthur Bernardes (Washington Luís) e Ernesto Geisel (João Figueiredo).
3) Entregou um país sem inflação e com superávit fiscal.
Isso ninguém lhe tira.


O BNDES virou fábrica de esqueletos
Desde a escuta telefônica do BNDES, vive-se uma situação na qual uma conversa entre duas autoridades só é entendida direito se vier com a estrutura de um grampo.
Aqui vai uma interceptação das comunicações entre o presidente da Eletrobrás, Firmino Ferreira Sampaio Neto, e o ministro de Minas e Energia, Raimundo Brito. Deu-se no último dia 23 de outubro:
- Alô, ministro, aqui é o Firmino. Queria lhe falar da privatização das empresas de energia elétrica.
- Pois não, Firmino. Diga.
- O BNDES fez uma proposta que considera a criação de empresas de transmissão. Ela mantém as empresas existentes, com o mesmo CGC. "Empresas-cascas". Essas "cascas" abrigariam, a rigor, os chamados "esqueletos", que poderiam impactar o valor de venda dos demais ativos."
Firmino prossegue:
- Tomando por base um caso concreto, a proposta versa sobre a venda de Itaparica, da Chesf, mantendo-se na "casca" o reassentamento da usina.
Está dizendo o seguinte:
O BNDES quer vender as hidrelétricas federais despejando suas dívidas ("esqueletos") em "empresas-cascas". Desse jeito, uma hidrelétrica poderá vir a ser vendida por algo como R$ 1 bilhão. Os maganos aparecerão nas fotografias "xepando" a cena do martelo do leilão, e a galera terá todos os motivos para supor que a estatal foi vendida por R$ 1 bilhão. Nada disso. A Viúva carregará os "esqueletos" despejados nas "cascas". No caso de Itaparica, pelo menos as despesas com a população despejada das terras do lago da barragem. Algo em torno de R$ 300 milhões.
Ninguém grampeou o doutor Firmino. Todas as palavras que lhe foram atribuídas constam de uma correspondência oficial que mandou ao ministro Raimundo Brito. (Para quem as for procurar, trata-se do CTA-PR 9193/98.)
Também não é justo mendonçar o presidente da Eletrobrás. Ele apenas mostra os riscos que o BNDES está produzindo. Entre eles, o de provocar uma desvalorização das ações da Telebrás.
Na venda da Eletronorte, ficarão na "casca" cinco empresas deficitárias. Furnas carregará o "esqueleto" da Eletronuclear. Em todos os casos, a pressa política e a fome de dólares estão gerando anarquia.
O BNDES está torrando o patrimônio do Estado para cobrir o buraco das contas externas, financiando a política de juros altos que arruína a produção nacional e engorda os gatos da globalização. Faz de conta que a venda de 20 hidrelétricas federais, poderá arrecadar US$ 15 bilhões, mas não conta que quer colocar algo como US$ 4 bilhões de esqueletos dentro das "cascas".



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