São Paulo, terça-feira, 14 de março de 2006

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JANIO DE FREITAS

Dejetos da ditadura

As últimas afirmações do general Francisco Albuquerque ainda não desmentidas a respeito do episódio que protagonizou no aeroporto de Campinas ruíram como mais inverdades, sob constatações da Folha e do "Estadão" em depoimentos e no registro de ocorrências da Infraero. Mas o que importa nem é mais a palavra do comandante do Exército: o episódio excedeu-o.
Fosse um civil a comprometer o governo com o escândalo de uma carteirada ministerial, para sustar a partida do avião e nele tomar lugares alheios, alguém duvida de que já estivesse demitido pelos rigores públicos do vice José Alencar, seu chefe? Ou por ordem de Lula? O José Alencar de várias atitudes francas preferiu, no entanto, acobertar a carteirada e enfeitá-la com reiterados elogios ao "sentimento democrático" do praticante de abuso de poder. Lula, sem causar surpresa, apressou-se em fazer o mesmo.
O que se ergueu da obscuridade com o autoritarismo do general Francisco Albuquerque foi a evidência do que todos fingem não ver: os dejetos do regime militar que até hoje, passados mais de 20 anos, minam a construção de um sistema democrático. O respeito ético e a obediência ao dever legal que faltam ao presidente e ao vice, na hora de aplicar as apropriadas conseqüências a um militar faltoso, não se explicam senão pela sobrevivência de temores e sujeições deixados no limbo, mas ativos.
Dejetos que levam não só a complacências, mas a prepotências também. Um exemplo: Lula disse muitas vezes, nos dois primeiros anos do mandato, não haver razão para um projeto de independência do Banco Central porque em seu governo o Banco Central já é independente, acima de interferências do ministro da Fazenda e mesmo suas, de presidente da República. Não há por que o contestar. Mas resulta só de arbitrariedade a entrega da moeda do país, e portanto de enorme influência sobre o futuro nacional, a quem não foi eleito para tanto, e só recebeu do Senado aprovação para presidir o BC subordinado. O verdadeiro poder de decisão sobre toda a economia do Brasil foi entregue por Lula, sem amparo nenhum para tanto, fosse legal ou político, a uma pessoa cuja política de juros estagnantes é criticada pelo vice-presidente e pelo próprio presidente da República, que legalmente seriam as duas maiores autoridades governamentais.
É a bagunça das prepotências e outros abusos antidemocráticos. Uma carteirada e as inverdades que a socorrem estão de acordo com as regras do autoritarismo. Umas inapagadas por interesse, outras por vocação, mas algumas por covardia. É só olhar à volta, e logo se identificam esses dejetos em ação nas decisões dos governos e nas ruas, nas empresas e no convívio urbano, no país todo. E ninguém os enfrenta -outro resquício do legado ditatorial.


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