São Paulo, segunda-feira, 14 de maio de 2007

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VISITA DO PAPA/ARTIGO

Apolitismo e teocentrismo

Opção pelos pobres está implícita na fé, diz papa, que conclama fiéis a ação pública

PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA

"COMO A IGREJA pode contribuir para a solução dos urgentes problemas sociais e políticos e responder ao grande desafio da pobreza e da miséria?" A pergunta que o papa Bento 16 formulou em seu pronunciamento inaugural da 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe exterioriza um questionamento que importa à maior parte dos fiéis católicos da região.
O pontífice argumentou, em resposta à questão que a igreja latino-americana se colocou nas últimas décadas, que as "estruturas justas" são uma condição fundamental para uma "ordem justa na sociedade", mas tanto o capitalismo quanto o marxismo fracassaram na obtenção dessas estruturas porque descartaram a importância de uma moralidade individual e porque a estruturas justas são uma condição indispensável, "mas não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver esses valores".
A mensagem indica que apenas a crença e o respeito a Deus podem transformar a sociedade ("Uma sociedade na qual Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais"), e não se deve reduzir as tentativas de mudanças à atuação política. "Esse trabalho político não é competência imediata da igreja... Se a igreja começar a se transformar diretamente no sujeito político, não faria mais pelos pobres e pela justiça. Ao contrário, faria menos, pois perderia sua independência e sua autoridade moral, identificando-se com uma única via política."
Após o Concilio Vaticano 2º (1962-1965), na conferência de Medellín, em 1968, a igreja latino-americana formalizou sua "opção preferencial pelos pobres". Embora no início do pontificado de João Paulo 2º, na conferência de Puebla, em 1979, a mesma igreja tenha ratificado sua opção pela pastoral social, nos anos seguintes essa linha foi alterada. Ontem o atual pontífice reafirmou a identidade católica e a ênfase na ação estritamente religiosa em um continente que produziu uma teologia que se propunha a responder às suas necessidades locais em articulação com as proposições do catolicismo social dos anos 60 e 70.
No discurso, o papa citou a Bíblia para alegar que a "opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós para nos enriquecer com sua pobreza".
Teólogo reconhecido por sua erudição, por 25 anos Ratzinger foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a voz da ortodoxia católica. No livro "Dogma e Anúncio", questiona a descrição de Jesus Cristo como um revolucionário e argumenta que, se fosse esse o motivo de ele ter atraído tantos seguidores, revolucionários como Che Guevara teriam atraído mais fiéis e teriam sido suficientes para conduzir a humanidade. Em seus escritos sobre o cristocentrismo, embora exalte a figura de Cristo, defende um monoteísmo puro.
Ratzinger elogiou os regimes democráticos na América Latina e no Caribe, mas se mostrou preocupado "ante formas de governo autoritárias ou sujeitas a certas ideologias que se acreditavam superadas e que não correspondem à visão cristã do homem e da sociedade", em referência provável à Venezuela de Hugo Chávez e à inclinação política de outros países latino-americanos à esquerda nos últimos anos.
O papa apresentou sua interpretação da religiosidade popular latino-americana, marcada por características como a devoção aos santos, "o amor ao papa" e "a profunda devoção à Santíssima Virgem de Guadalupe e de Aparecida".
Recordou a declaração de Nossa Senhora ao indígena Juan Diego ("Não sou eu a fonte de tua alegria?") e rejeitou toda a interpretação histórica acerca do trauma e do apagamento da identidade impostos aos indígenas por parte dos missionários católicos no Brasil. "O anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas. Nem foi uma imposição de uma cultura estranha."
Embora rejeite o sincretismo e a "utopia de dar vida às religiões pré-colombianas", disse que "as autênticas culturas não estão fechadas em si mesmas nem petrificadas em um determinado ponto da história...
Cristo, ao ser realmente o logos encarnado, "o amor até o extremo", não é distante de nenhuma cultura". O Santo Padre alegou que "a sabedoria dos povos originais os levou, felizmente, a formar uma síntese entre suas culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereciam".
Ao mesmo tempo em que criticou o engajamento político como ação primordial da igreja, o papa ressaltou a "notável ausência, no âmbito político, comunicacional e universitário, de vozes e iniciativas de líderes católicos de forte personalidade e de vocação abnegada, que sejam coerentes com suas convicções éticas e religiosas".
Também conclamou os fiéis católicos a uma participação mais ativa na esfera pública, em oposição ao secularismo, e defendeu que os pastores fomentem a "cultura da vida". "Os leigos católicos devem estar conscientes de sua responsabilidade na vida pública."
Ao final, afirmou que os cristãos "não seguem uma personagem da história passada, mas ao Cristo vivo, presente no hoje e no agora de suas vidas". Na obra "Dogma e Anúncio", escreve que, mesmo ele como teólogo, conheceu a Deus em uma relação pessoal e religiosa antes de dedicar-se intelectualmente à sua compreensão.
"Deus é a realidade fundadora, não um Deus pensado ou hipotético, mas o Deus de rosto humano", declarou Bento 16.


PAULO DANIEL FARAH é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo


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