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ENTREVISTA DA 2ª/ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
Saldo da visita do papa ao Brasil pode ser só moralismo
Ao seguir mensagem enfatizada por Bento 16, clero corre risco de ir por "lado mais fácil" por possuir "pouca formação teórica"
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
A IGREJA CATÓLICA no Brasil
pode não ser capaz de dar
conta da missão a ela confiada por Bento 16 em sua visita
pastoral ao país, encerrada ontem. A
necessidade de afirmação da doutrina
pode se ver reduzida, daqui por diante, a
simples pregação moralista.
Para Antônio Flávio Pierucci, professor titular de sociologia da USP, o papa
veio exigir do clero e dos fiéis brasileiros
mais disciplina. Dos bispos e padres,
mais trabalho. "Ele faz um diagnóstico
muito sociológico. Para ele, os evangélicos crescem mais que outras formas religiosas porque trabalham mais."
Segundo Pierucci, para o papa, "se os padres trabalharem
mais, quem sabe você não estanca a perda de fiéis". "Ele diz
então que os bispos brasileiros
precisam trabalhar mais e estudar mais. Idem para os padres
brasileiros. E os católicos brasileiros precisam ser mais obedientes, e os padres mais obedientes. A quem? A Roma. É tudo muito centralizado. Esse papa quer doutrina correta", diz.
Na sua apresentação da doutrina, dá ênfase a questões ligadas à sexualidade e ao compromisso com valores religiosos, como forma de fazer frente à
diminuição do papel da religião
no mundo -esse seu problema
principal, mais que a perda de
fiéis para os pentecostais.
Ocorre que o clero brasileiro
tem problemas de formação,
diz Pierucci, e há o risco de, ao
seguirem a disciplina e a pregação desses valores, terminarem
descambando para o simples
moralismo. "Se você joga esse
catolicismo mais cioso de lei e
ordem num clero que tem pouca formação teórica, o risco é de
virar moralismo. De pegarem
pelo lado mais fácil", diz Pierucci, autor de "O Desencantamento do Mundo" (ed. 34).
FOLHA - O que, no discurso do papa, mais chamou sua atenção?
ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI - O que
eu achei mais significativo é
que ele apresenta um determinado tipo de preocupação que
não é aquela para a qual os jornais se prepararam, as pesquisas e os estaticistas se prepararam e nos municiaram com informações. Que é: o catolicismo
está em declínio por causa do
avanço dos pentecostais.
Pois ele está dizendo: isso é
uma preocupação entre muitas. Nos primeiros dias, nas primeiras falas do papa, a coisa
que mais aparecia era uma
preocupação visível com a sexualidade. Então você tem a
preocupação, já de saída, com o
aborto. Mas não só.
Ele ia falar com os jovens,
porque as gerações seguintes é
que vão manter, vão reproduzir
o catolicismo. Mas sobre o que
ele fala? Castidade e, mais do
que isso, vai defender a virgindade; vai depois dizer que a mídia escarnece dos valores familiares; fala das uniões livres; dos
segundos casamentos.
Ou seja, a preocupação do papa não é com problemas que
lhe são postos por seus concorrentes na esfera propriamente
religiosa. São problemas, na
verdade, que o mundo apresenta para a igreja. Mundo moderno, contemporâneo, que seja,
mas o mundo. Essas coisas não
vêm de outras religiões. No
fundo ele está dizendo que o
grande desafio da Igreja Católica é o de todas as religiões.
O mundo está muito secularizado, a política está secularizada, o direito ousa querer legislar sobre a sacralidade da vida humana. A coisa do aborto
mostra que há um raciocínio
científico e, mais, uma medicalização, que retira certas questões da esfera religiosa. Sexo,
hoje, é da esfera da erótica, ou
da esfera científica, médica.
FOLHA - A Igreja Católica no país,
nas últimas décadas, tem se ocupado menos desses problemas éticos-individuais. Prioriza o debate político e social. Por que essa necessidade
de reforçar esses outros aspectos?
PIERUCCI - O catolicismo está
ameaçado, mas não é só isso.
Quando o papa fala da identidade religiosa da Europa, ela é
cristã, antes que católica. Em
círculos concêntricos, você
tem, primeiro, uma preocupação com o declínio do catolicismo, depois uma preocupação
com o declínio do cristianismo
e com o avanço do Islã, e, de forma mais ampla, uma preocupação com o declínio da religião.
As pessoas não dão mais importância à religião, a não ser
quando se convertem para religiões que ainda são minoritárias, que é o caso dos pentecostais no Brasil. Então a pessoa é
mais fervorosa porque é um
neoconverso. Mas, passando o
tempo, na eventualidade de
uma dessas religiões minoritárias vir a se tornar quase majoritária, o que é muito difícil de
imaginar, ela também vai sofrer as mesmas conseqüências.
FOLHA - Então não é uma questão
de as pessoas saírem de um catolicismo frouxo e aderirem a religiões
evangélicas militantes, mas do enfraquecimento do espaço da religião como um todo.
PIERUCCI - A presença do papa
puxa para o noticiário do declínio do catolicismo. De alguma
maneira coloca em cena o
avanço dos pentecostais. Você
acaba criando uma imagem binária. Se o brasileiro deixar de
ser católico, o destino dele é virar evangélico pentecostal?
Não existe outra possibilidade?
Mas, pior, ele vai virar ou um
evangélico mais fervoroso ou
um católico mais fervoroso?
Como disse o Marcelo Coelho, na Folha, ainda bem que o
catolicismo é uma religião de
pessoas que não ligam tanto
para religião. Porque isso oxigena, dá uma certa leveza a ela.
Imaginar que as pessoas são
binárias -ou entre catolicismo
e protestantismo pentecostal,
ou entre dois modelos de fervor- é inteiramente fora de tudo aquilo que o próprio clamor
do papa, sua ênfase, mostra.
Ele sabe que as coisas estão
periclitantes para a religião.
Não é só para o catolicismo. Estão periclitantes para Deus.
FOLHA - E o que ele faz?
PIERUCCI - Ele é um homem
muito apegado à doutrina, então vem ensinar. Não só isso,
ele diz, em outras palavras, que
os bispos brasileiros estão ensinando pouco, que o clero brasileiro sabe pouco, e que há muitos católicos brasileiros mal
formados. Está puxando o clero
católico para trabalhar mais.
Ele faz um diagnóstico muito
sociológico. Para ele, os evangélicos crescem mais que outras formas religiosas porque
trabalham mais. Se os padres
trabalharem mais, quem sabe
você não estanca a perda de
fiéis. Ele chega a falar até em recuperar os católicos que saíram
-o que é um exagero. Ele diz
então que os bispos brasileiros
precisam trabalhar e estudar
mais. Idem para os padres. E os
católicos brasileiros precisam
ser mais obedientes, e os padres mais obedientes. A quem?
A Roma. É tudo centralizado.
Ele quer doutrina correta.
FOLHA - A passagem dele pelo país
e a ênfase de seus discursos podem
ter algum impacto na forma da religiosidade dos brasileiros em geral? E
em seu número?
PIERUCCI - Pode. Eu vejo esse
papa botando o dedo nessa ferida, que é chamar a atenção do
clero. Mãos à obra! Vocês não
vão enfrentar as religiões pentecostais com essa moleza toda.
E ele vende um pouco essa imagem, com seu jeitinho ágil, falando sem parar.
FOLHA - Pode mudar algo na forma
de intervenção pública dos bispos
brasileiros?
PIERUCCI - Agora ele está tranqüilo, porque, se não está extinta, está bastante domesticada a
Teologia da Libertação. Está
bastante expurgada do discurso marxista. Ele ainda dá umas
bicadas na Teologia da Libertação, mas acho que ele está, pela
primeira vez, fazendo algo que
está muito ligado à imagem do
Calvino, da igreja calvinista,
que é disciplinar. Disciplina. O
catolicismo está frouxo, sem
identidade, sem foco.
Pode ser que dê certo. Ele está querendo um ajuste de foco.
Quer que sigam à risca a liturgia. Diz que a missa não é propriedade privada de ninguém.
Disciplina. Os pentecostais fazem muito isso no Brasil. As
igrejas pentecostais disciplinam. É tradição evangélica.
A ênfase dele é na religiosidade orquestrada, canônica. A
coisa é desse jeito, e é assim que
tem que ser. Isso pode ter algum efeito no episcopado e no
clero? Pode. Vão falar mais de
castidade, por exemplo. O que é
um grande risco. Porque o papa
tem uma enorme formação
teológica e tem uma abertura
de horizontes. O papa é capaz,
por exemplo, de dialogar com
Habermas -e o Habermas o
trata de forma respeitosa. Ele é
um intelectual, tem formação.
Mas se você joga esse catolicismo mais cioso de lei e ordem
num clero que tem pouca formação teórica, o risco é de virar
moralismo. De pegarem pelo
lado mais fácil. Exacerbar a
condenação do aborto, da sexualidade. Ouvi contarem de
um padre que anda pedindo para os jovens, na hora de tomar
banho, não tocarem em seus
órgãos genitais. Coisas do catolicismo do século 19. Se você
puxa demais esse assunto, e fica
nessa coisa proibitiva, pode
descambar menos para o lado
doutrinário e virar moralista.
FOLHA - É razoável supor que a visita do papa pode ter menos impacto
nos fiéis, e mais entre os sacerdotes?
PIERUCCI - Sem dúvida. Os bispos podem agir de forma mais
exigente em relação ao seu clero, de forma menos condescendente. Isso vai acontecer. O
grande perdedor dessa visita do
papa é o clero, o jovem clero
que está se formando. Ele vem
de um ensino secundário brasileiro decadente, com muito
pouco preparo. Os anos de escolarização do clero católico
ainda são muitos. É um processo longo, mas que não desemboca em uma coisa muito criativa intelectualmente. Isso é
um lado precário dessa estrutura, que não se consegue resolver do dia para a noite.
Eu não saio com a sensação
de que o papa tenha um bom
diagnóstico da situação do catolicismo no Brasil. Vamos dizer que ele tenha identificado
isso: está faltando trabalho e
doutrina correta. Mas como é
que você consegue resolver isso
de uma hora para outra? Não
dá, nem se você tivesse um segundo mandato de papa.
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