São Paulo, segunda-feira, 14 de maio de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª/ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI

Saldo da visita do papa ao Brasil pode ser só moralismo

Ao seguir mensagem enfatizada por Bento 16, clero corre risco de ir por "lado mais fácil" por possuir "pouca formação teórica"

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

A IGREJA CATÓLICA no Brasil pode não ser capaz de dar conta da missão a ela confiada por Bento 16 em sua visita pastoral ao país, encerrada ontem. A necessidade de afirmação da doutrina pode se ver reduzida, daqui por diante, a simples pregação moralista.
Para Antônio Flávio Pierucci, professor titular de sociologia da USP, o papa veio exigir do clero e dos fiéis brasileiros mais disciplina. Dos bispos e padres, mais trabalho. "Ele faz um diagnóstico muito sociológico. Para ele, os evangélicos crescem mais que outras formas religiosas porque trabalham mais."

Segundo Pierucci, para o papa, "se os padres trabalharem mais, quem sabe você não estanca a perda de fiéis". "Ele diz então que os bispos brasileiros precisam trabalhar mais e estudar mais. Idem para os padres brasileiros. E os católicos brasileiros precisam ser mais obedientes, e os padres mais obedientes. A quem? A Roma. É tudo muito centralizado. Esse papa quer doutrina correta", diz.
Na sua apresentação da doutrina, dá ênfase a questões ligadas à sexualidade e ao compromisso com valores religiosos, como forma de fazer frente à diminuição do papel da religião no mundo -esse seu problema principal, mais que a perda de fiéis para os pentecostais.
Ocorre que o clero brasileiro tem problemas de formação, diz Pierucci, e há o risco de, ao seguirem a disciplina e a pregação desses valores, terminarem descambando para o simples moralismo. "Se você joga esse catolicismo mais cioso de lei e ordem num clero que tem pouca formação teórica, o risco é de virar moralismo. De pegarem pelo lado mais fácil", diz Pierucci, autor de "O Desencantamento do Mundo" (ed. 34).  

FOLHA - O que, no discurso do papa, mais chamou sua atenção?
ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
- O que eu achei mais significativo é que ele apresenta um determinado tipo de preocupação que não é aquela para a qual os jornais se prepararam, as pesquisas e os estaticistas se prepararam e nos municiaram com informações. Que é: o catolicismo está em declínio por causa do avanço dos pentecostais. Pois ele está dizendo: isso é uma preocupação entre muitas. Nos primeiros dias, nas primeiras falas do papa, a coisa que mais aparecia era uma preocupação visível com a sexualidade. Então você tem a preocupação, já de saída, com o aborto. Mas não só. Ele ia falar com os jovens, porque as gerações seguintes é que vão manter, vão reproduzir o catolicismo. Mas sobre o que ele fala? Castidade e, mais do que isso, vai defender a virgindade; vai depois dizer que a mídia escarnece dos valores familiares; fala das uniões livres; dos segundos casamentos. Ou seja, a preocupação do papa não é com problemas que lhe são postos por seus concorrentes na esfera propriamente religiosa. São problemas, na verdade, que o mundo apresenta para a igreja. Mundo moderno, contemporâneo, que seja, mas o mundo. Essas coisas não vêm de outras religiões. No fundo ele está dizendo que o grande desafio da Igreja Católica é o de todas as religiões. O mundo está muito secularizado, a política está secularizada, o direito ousa querer legislar sobre a sacralidade da vida humana. A coisa do aborto mostra que há um raciocínio científico e, mais, uma medicalização, que retira certas questões da esfera religiosa. Sexo, hoje, é da esfera da erótica, ou da esfera científica, médica.

FOLHA - A Igreja Católica no país, nas últimas décadas, tem se ocupado menos desses problemas éticos-individuais. Prioriza o debate político e social. Por que essa necessidade de reforçar esses outros aspectos?
PIERUCCI
- O catolicismo está ameaçado, mas não é só isso. Quando o papa fala da identidade religiosa da Europa, ela é cristã, antes que católica. Em círculos concêntricos, você tem, primeiro, uma preocupação com o declínio do catolicismo, depois uma preocupação com o declínio do cristianismo e com o avanço do Islã, e, de forma mais ampla, uma preocupação com o declínio da religião. As pessoas não dão mais importância à religião, a não ser quando se convertem para religiões que ainda são minoritárias, que é o caso dos pentecostais no Brasil. Então a pessoa é mais fervorosa porque é um neoconverso. Mas, passando o tempo, na eventualidade de uma dessas religiões minoritárias vir a se tornar quase majoritária, o que é muito difícil de imaginar, ela também vai sofrer as mesmas conseqüências.

FOLHA - Então não é uma questão de as pessoas saírem de um catolicismo frouxo e aderirem a religiões evangélicas militantes, mas do enfraquecimento do espaço da religião como um todo.
PIERUCCI
- A presença do papa puxa para o noticiário do declínio do catolicismo. De alguma maneira coloca em cena o avanço dos pentecostais. Você acaba criando uma imagem binária. Se o brasileiro deixar de ser católico, o destino dele é virar evangélico pentecostal? Não existe outra possibilidade? Mas, pior, ele vai virar ou um evangélico mais fervoroso ou um católico mais fervoroso? Como disse o Marcelo Coelho, na Folha, ainda bem que o catolicismo é uma religião de pessoas que não ligam tanto para religião. Porque isso oxigena, dá uma certa leveza a ela. Imaginar que as pessoas são binárias -ou entre catolicismo e protestantismo pentecostal, ou entre dois modelos de fervor- é inteiramente fora de tudo aquilo que o próprio clamor do papa, sua ênfase, mostra. Ele sabe que as coisas estão periclitantes para a religião. Não é só para o catolicismo. Estão periclitantes para Deus.

FOLHA - E o que ele faz?
PIERUCCI
- Ele é um homem muito apegado à doutrina, então vem ensinar. Não só isso, ele diz, em outras palavras, que os bispos brasileiros estão ensinando pouco, que o clero brasileiro sabe pouco, e que há muitos católicos brasileiros mal formados. Está puxando o clero católico para trabalhar mais. Ele faz um diagnóstico muito sociológico. Para ele, os evangélicos crescem mais que outras formas religiosas porque trabalham mais. Se os padres trabalharem mais, quem sabe você não estanca a perda de fiéis. Ele chega a falar até em recuperar os católicos que saíram -o que é um exagero. Ele diz então que os bispos brasileiros precisam trabalhar e estudar mais. Idem para os padres. E os católicos brasileiros precisam ser mais obedientes, e os padres mais obedientes. A quem? A Roma. É tudo centralizado. Ele quer doutrina correta.

FOLHA - A passagem dele pelo país e a ênfase de seus discursos podem ter algum impacto na forma da religiosidade dos brasileiros em geral? E em seu número?
PIERUCCI
- Pode. Eu vejo esse papa botando o dedo nessa ferida, que é chamar a atenção do clero. Mãos à obra! Vocês não vão enfrentar as religiões pentecostais com essa moleza toda. E ele vende um pouco essa imagem, com seu jeitinho ágil, falando sem parar.

FOLHA - Pode mudar algo na forma de intervenção pública dos bispos brasileiros?
PIERUCCI
- Agora ele está tranqüilo, porque, se não está extinta, está bastante domesticada a Teologia da Libertação. Está bastante expurgada do discurso marxista. Ele ainda dá umas bicadas na Teologia da Libertação, mas acho que ele está, pela primeira vez, fazendo algo que está muito ligado à imagem do Calvino, da igreja calvinista, que é disciplinar. Disciplina. O catolicismo está frouxo, sem identidade, sem foco. Pode ser que dê certo. Ele está querendo um ajuste de foco. Quer que sigam à risca a liturgia. Diz que a missa não é propriedade privada de ninguém. Disciplina. Os pentecostais fazem muito isso no Brasil. As igrejas pentecostais disciplinam. É tradição evangélica. A ênfase dele é na religiosidade orquestrada, canônica. A coisa é desse jeito, e é assim que tem que ser. Isso pode ter algum efeito no episcopado e no clero? Pode. Vão falar mais de castidade, por exemplo. O que é um grande risco. Porque o papa tem uma enorme formação teológica e tem uma abertura de horizontes. O papa é capaz, por exemplo, de dialogar com Habermas -e o Habermas o trata de forma respeitosa. Ele é um intelectual, tem formação. Mas se você joga esse catolicismo mais cioso de lei e ordem num clero que tem pouca formação teórica, o risco é de virar moralismo. De pegarem pelo lado mais fácil. Exacerbar a condenação do aborto, da sexualidade. Ouvi contarem de um padre que anda pedindo para os jovens, na hora de tomar banho, não tocarem em seus órgãos genitais. Coisas do catolicismo do século 19. Se você puxa demais esse assunto, e fica nessa coisa proibitiva, pode descambar menos para o lado doutrinário e virar moralista.

FOLHA - É razoável supor que a visita do papa pode ter menos impacto nos fiéis, e mais entre os sacerdotes?
PIERUCCI
- Sem dúvida. Os bispos podem agir de forma mais exigente em relação ao seu clero, de forma menos condescendente. Isso vai acontecer. O grande perdedor dessa visita do papa é o clero, o jovem clero que está se formando. Ele vem de um ensino secundário brasileiro decadente, com muito pouco preparo. Os anos de escolarização do clero católico ainda são muitos. É um processo longo, mas que não desemboca em uma coisa muito criativa intelectualmente. Isso é um lado precário dessa estrutura, que não se consegue resolver do dia para a noite.
Eu não saio com a sensação de que o papa tenha um bom diagnóstico da situação do catolicismo no Brasil. Vamos dizer que ele tenha identificado isso: está faltando trabalho e doutrina correta. Mas como é que você consegue resolver isso de uma hora para outra? Não dá, nem se você tivesse um segundo mandato de papa.


Texto Anterior: Toda Mídia - Nelson de Sá: O cruzado e as imagens
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.