São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998

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Polícia Militar oferece lição em Tauá

do enviado especial

Às 14h de terça-feira da semana passada, o delegado Edmar Beserra Granja, 45 anos e 18 de polícia, cercou um pequeno depósito próximo à BR-020, a 65 km de Tauá, no sertão dos Inhamuns. Um policial entrou pelo telhado e abriu a porta. Lá dentro, a prova do que dizia há quase um mês: os saques de caminhões ocorridos na localidade de Bom Jesus tinham se transformado numa bandidagem comercial. Junto com 400 maços de cigarros contrabandeados, havia oito fardos com 240 kg da farinha amarelada do programa Comunidade Solidária. Haviam sido tirados na noite anterior de uma carreta que teve sangradas as 27 t que transportava do Paraná a Crateús. O dono do depósito, Antonio Haroldo Vieira de Almeida, está foragido.
Pelas contas de Beserra, os saqueadores de Bom Jesus já coletaram 50 t de alimentos. No dia 21 de abril, quando saqueou uma carreta de feijão e desafiou agentes da Polícia Rodoviária com quatro tiros para o ar, a turma de Bom Jesus enquadrava-se na categoria dos saques amparados pela Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino. Em 40 dias, obstruíram a BR-020 pelo menos seis vezes.
"Hoje eu posso lhe garantir que metade desse pessoal vem para a estrada beber e se aproveitar. Aqui houve outros saques, mas os trabalhadores não dão trabalho."
No dia 4 de maio, o depósito de alimentos da Prefeitura de Tauá foi saqueado pela manhã. À tarde, num repique, levaram o material de limpeza. Tauá pode ter sido o município mais saqueado do Brasil. As obstruções de estrada foram pelo menos sete. Os saques de depósitos do governo e de escolas, 12. É dificil estimar o tamanho do butim, mas parece razoável supor que ficou em torno de 200 t de alimentos. (Desprezando-se um aparelho de vídeo, cinco televisores e as louças tirados das escolas.)
Em poucas cidades o metabolismo dos saques foi tão complexo e seu controle tão delicado. No caso dos piquetes de estrada, produzidos pelas comunidades vizinhas, há um jogo sobre o asfalto.
De um lado estão piquetes, quase sempre com menos de cem pessoas. Do outro, filas de até 30 carretas esperando passagem segura. Piqueteiros, carreteiros e policiais sabem que a estrada pode ser aberta por alguns sacos de feijão e caixas de óleo.
Os carreteiros não arriscam, porque podem perder toda a carga. Os piqueteiros não saem da estrada porque temem acabar na cadeia. A polícia não entra roncando porque, sem licença para atirar, não tem força para dissolver o piquete. Desse impasse resultou uma mediação que entrou nos costumes do tenente João Batista Lima, 47 anos, 30 de PM, comandante do destacamento de Tauá. Já chegou até a ajudar a distribuir a comida: "Negociar é melhor. Eles ficam satisfeitos e vão para casa. É um povo pacato. Não tem violência nessas comunidades".
O tenente calcula que a dissolução de um piquete custa poucos quilos de comida por cabeça, mas nunca incluiu o pessoal de Bom Jesus na sua benevolência. "Lá tem cachaceiro."
Seu braço direito é o cabo José Monteiro Neto, 32 anos, 18 de PM e três negociações no currículo. Na terça-feira estava na equipe que varejou o depósito de farinha roubada. Duas semanas antes, desobstruiu a BR-020. Ele explica como faz:
"Tem de ter jogo de cintura. Eu chego, faço os cumprimentos. Em seguida digo que estou lá para ajudá-los. Nós vamos ao local. Em geral fica a 3 km de onde se juntam os caminhoneiros. Tem alguns que se exaltam. Não confiam na palavra da gente. Nós dizemos que vamos negociar o que os caminhoneiros vão ofertar. Depois falamos com os caminhoneiros. Explicamos que é fome. Eles nunca reclamaram. Às vezes, o caminhão vem com lacre e eles dão dinheiro. Na semana passada, um vinha transportando carne e comprou um saco de arroz."
"Eu digo ao piquete que nós não estamos aqui para entrar em atrito com eles, nem com os caminhoneiros. Queremos ajudar os dois. Levo eles na Pampa e, às vezes, eles mesmos fazem a negociação. Eu levo eles para o acordo, mas sempre trago alguns de volta, com a mercadoria. Faço assim para que depois não se venha com insinuações."
É certo que não se pode resolver a fome da seca impondo pedágios aos carreteiros das estradas, mas as histórias de Tauá mostram que nas cabeceiras da sociedade a emergência produz fórmulas mais engenhosas que os impasses e fantasias de Brasília. A 4 de maio, no dia de todos os saques, o presidente Fernando Henrique Cardoso ensinou ao país: "Custa mais caro o avião da FAB levantar vôo do que a comida que está dentro". Nada mais racional, desde que se faça de conta que um jatinho da FAB não voou para a Costa Rica levando os 80 quilos de cultura do ministro Francisco Weffort, representante de FFHH nas cerimônias de posse do novo presidente.



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