São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

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NO PLANALTO

Lula diz em discurso que é apenas bobo, não corrupto

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

O Brasil não conhecia direito o Lula que elegeu em 2002. Mas o destino do Lula de 2005 não lhe é estranho. O personagem de três anos atrás, não há mais dúvidas, era apenas um novo desastre esperando para acontecer.
Lula passou os últimos 31 meses tentando descobrir o que, afinal, estava fazendo no Palácio do Planalto. Descobriu na noite da última quinta-feira: nada. Na manhã de sexta, em discurso compungido, revelou à nação que se encontra em Brasília a passeio.
O pseudopresidente disse que se sente "traído". Jamais soube das "práticas inaceitáveis" que conspurcam o seu (des)governo e o seu partido. "Temos que pedir desculpas", resignou-se. Em português claro: pediu para ser visto como bobo involuntário, não como corrupto espontâneo.
A fala de Lula, feita sob pressão de Márcio Thomaz Bastos, Antonio Palocci e Tarso Genro, soou insincera. Faltou-lhe o timbre indignado do inocente. De resto, ao queixar-se do próprio partido, portou-se como comandante de navio que reclama do mar.
Seja como for, o Lula do discurso de ocasião, extraído a fórceps num instante em que a lama toca-lhe os sapatos, não é o político que seus eleitores supunham. Elegera-se como um presidente de mostruário, um exemplo. Agora se sabe de quê.
A história vem sendo caprichosa com Lula. Primeiro, escalou José Dirceu, seu braço-direito, para fazê-lo de trouxa. Agora, designa para desmascará-lo o mesmo Duda Mendonça que o havia construído na campanha de 2002.
Ao revelar as primeiras ramificações internacionais das arcas podres do petismo, Duda transformou em tempestade os escândalos que chovem sobre o Planalto há dois meses. Ao acomodar a contabilidade da campanha presidencial na zona de suspeição, trovejou sobre a cabeça de Lula.
Não foram os primeiros raios. Na véspera, o companheiro Paulo Okamotto apresentara-se como feliz patrocinador de uma espécie de "Bolsa Lula". Disse ter quitado dívida de R$ 29 mil de Lula com o ex-PT. Matou no peito, diria Roberto Jefferson. E teve a delicadeza de não incomodar o devedor. É o japonês que todo brasileiro pediu a Deus. Paga dívida alheia sem dar um pio.
A oposição, sempre maledicente, suspeita que, sob a generosidade de Okamotto, esteja escondida a mão amiga de Marcos Valério. Tenta-se provar que o empréstimo lançado nos livros do ex-PT é uma espécie de Fiat Elba de Lula.
O que está em jogo nas CPIs que desnudam diariamente o ex-PT é a sorte do mandato de Lula. Por ora, o desejo do impeachment é contido pelas conveniências da oposição e do empresariado. Ao PSDB e ao PFL interessa um Lula ajoelhado, não uma vítima. À plutocracia convém conservar o conservadorismo de Palocci.
A crise, porém, vem sendo gerida por um ator invisível, o senhor "Imponderável da Silva". As apurações correm em ritmo alucinante. O incômodo é ultrapassado pelo insuportável, que é vencido pelo inacreditável, que é superado pelo impensável, que é batido pelo inadmissível... Nada impede que o improvável venha a se tornar inevitável.
De concreto, apenas o fato de que Lula encontra-se acuado por uma crise produzida nos arredores do seu gabinete. Tornou-se um presidente terminal. Terá final menos sofrido se aposentar os planos de reeleição. De resto, deve torcer pela compaixão dos adversários e pelo silêncio dos aliados.
Os adversários estocam papéis. As gavetas estão pela tampa. Os aliados ruminam os próprios segredos. Alguns coçam a língua. Vai abaixo, para orientar o leitor, um resumo da encrenca que se avizinha:
1) os diálogos travados nos subterrâneos do ex-PT são educativos. Ali, a tese da "traição" só é levada a sério como estratégia política. Dá-se de barato que a movimentação impudica de Dirceu foi consentida por Lula. O futuro do (des)governo está amarrado à língua do ex-chefão da Casa Civil mais do que a qualquer outra. As inconfidências de Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto incomodam. As de Dirceu incomodariam muito mais;
2) Dirceu e Cia. não seriam o únicos "traidores". Um publicitário paulista contou a um expoente do tucanato que certos contratos governamentais na área de publicidade não resistiriam a uma boa investigação. O sobrepreço seria de até 20%. Algumas agências viram-se forçadas a levar notas frias à contabilidade. Seus gestores querem paz e sossego. Levados ao cadafalso, porém, não parecem dispostos a assumir culpas alheias;
3) abespinhado com o que vê, um funcionário público que administra escrivaninha bem situada soprou nos ouvidos de um integrante da CPI dos Correios detalhes sobre investimentos que unem a contabilidade de certos fundos de pensão à tesouraria das casas bancárias da crise. Encomendaram-se documentos. Estão sendo providenciados.
Como se vê, toda aquela ânsia de servir ao povo, o desejo de produzir justiça social, a vontade de sacrificar-se em nome do bem comum, toda aquela conversa mole estava subordinada ao combustível que move a política: o caixa dois. Com o seu mea-culpa, Lula pede um voto de confiança. É sinal de que o pseudopresidente ao menos já se deu conta de que a desconfiança corre solta.

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