|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NO PLANALTO
Um caso de corrupção que dura meio século
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Em 1954 , antes de injetar uma
bala no próprio coração, Getúlio Vargas criou o programa de
distribuição de merenda escolar.
A iniciativa converteu-se no caso
mais longevo de corrupção da história.
Está na praça o relatório final
de auditoria realizada em 67 secretariais estaduais e municipais
de educação. São "executoras" do
programa de merenda. Decorridos 49 anos, o Brasil segue desviando comida da boca da garotada.
A auditagem foi feita por técnicos do TCU. Liberada em março,
repousa sobre a mesa de algumas
das principais autoridades da República.
É a primeira verificação de fôlego desde que FHC adotou a política de "descentralização", em
1994. Antes, Brasília se incumbia
da compra da merenda. Adquiria
uma gororoba chamada "formulado" -alimento industrializado.
A coisa era duplamente indigesta. Doía no paladar e no bolso.
Detestada pelos estudantes, a lataria era comprada a "preços
abusivos", em processos que "favoreciam a formação de conluios" empresariais.
Sob FHC, delegaram-se as compras a governadores e prefeitos.
Entre 1996 e 2002, foram gastos
R$ 5,5 bilhões. Na ponta da linha,
sobraram ridículos R$ 0,13 diários por criança beneficiada. Isso
mesmo, 13 míseros centavos por
cabeça.
Num botequim de São Paulo,
não paga um cafezinho. Em escolas de Itaituba (PA), financia um
prato de fome: 20 gramas de alimentos por aluno. É comum faltar comida.
A grana da merenda é federal.
Estados e municípios deveriam
contribuir. Porém, contam-se nos
dedos das mãos os que desembolsam algo expressivo. Na média, a
contrapartida não passa de
0,41%.
Segundo os auditores, a descentralização trouxe benefícios. Mas
não eliminou as malfeitorias.
Longe disso. Alguns exemplos extraídos do relatório do TCU:
1) em 54 das 67 unidades auditadas descobriram-se "impropriedades nos processos licitatórios";
2) na secretaria de Educação da
Bahia e na prefeitura de Londrina (PR) foram "desviados" R$ 1,8
milhão e R$ 940 mil respectivamente;
3) em dez unidades investigadas o dinheiro foi usado para outros fins. No município de Estância (SE), por exemplo, a manobra
consumiu 18,26% dos recursos
(R$ 49 mil) -70% das escolas da
cidade amargaram mais de 50
dias sem merenda nos anos de
2000 e 2001;
4) em Aquiraz (CE) faltou merenda nos meses de abril, maio e
junho de 2001. Em Luiz Correia
(PI), a refeição só foi servida em
87 dias do ano letivo de 2000 e em
93 dias de 2001;
5) em 15% dos municípios encontraram-se "evidências de
aquisição de alimentos por preços
acima dos de mercado". Em Estância (SE), o sobrepreço chegou
a 230%;
6) em localidades como Vitória
(ES), São Luiz (MA), João Pessoa
(PB) e Natal (RN) optou-se por
delegar a administração do dinheiro da merenda às escolas. Ao
movimentar as contas bancárias,
os estabelecimentos pagaram
CPMF. Em vez de alimentar alunos, parte do dinheiro engordou
os cofres do Tesouro;
7) conselhos criados para fiscalizar a aplicação das verbas não
funcionam. Desestruturados, são
incapazes de "detectar irregularidades";
8) os conselheiros, voluntários e
sem remuneração, não têm preparo técnico. Em Cajueiro da
Praia (PI), alguns deles são analfabetos. Em Araguatins (TO),
uma merendeira de escola soube
que fora escolhida para "representar pais e alunos" ao ser convocada para a primeira reunião;
9) a composição dos conselhos
deveria restringir-se a representantes da sociedade. Mas muitos
são integrados por funcionários
do Executivo local. Em Araguatins (TO), o presidente do conselho chefiava também a divisão de
merenda da prefeitura. Fiscalizava-se a si próprio;
10) os conselhos remetem a Brasília relatórios "sintéticos e formais". O Ministério da Educação
finge que fiscaliza. Há 13 pessoas
para analisar os milhares de documentos recebidos anualmente.
A checagem de cada prestação de
contas consome em média escassos 20 minutos;
11) analisaram-se 16.492 relatórios entre 1999 e 2001. Só dois não
foram aprovados. Garimpando
os papéis, os auditores do TCU colheram irregularidades em 34 casos. Num deles, de Guajará-Mirim (RO), pescaram-se fraudes
grosseiras. Contém até notas
frias. Fora aprovado pelo MEC,
sem ressalvas;
12) vários processos do período
de 1994 a 1998 ainda não foram
analisados. Nada menos que 60%
das contas relativas ao período de
2000 e 2001 encontram-se "aguardando análise".
Recomenda-se ao ministro Cristovam Buarque o desperdício de
um naco de seu tempo na leitura
da auditoria. Se mais não puder
fazer, talvez sugira aos pais e alunos a organização de manifestações e passeatas diante das sedes
dos governos estaduais e prefeituras.
Texto Anterior: Conflito agrário: Caminhada do MST reúne 1.200 em São Paulo Próximo Texto: Reforma ministerial: PMDB pode herdar Comunicações e Cidades Índice
|