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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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NO PLANALTO

Um caso de corrupção que dura meio século

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Em 1954 , antes de injetar uma bala no próprio coração, Getúlio Vargas criou o programa de distribuição de merenda escolar. A iniciativa converteu-se no caso mais longevo de corrupção da história.
Está na praça o relatório final de auditoria realizada em 67 secretariais estaduais e municipais de educação. São "executoras" do programa de merenda. Decorridos 49 anos, o Brasil segue desviando comida da boca da garotada.
A auditagem foi feita por técnicos do TCU. Liberada em março, repousa sobre a mesa de algumas das principais autoridades da República.
É a primeira verificação de fôlego desde que FHC adotou a política de "descentralização", em 1994. Antes, Brasília se incumbia da compra da merenda. Adquiria uma gororoba chamada "formulado" -alimento industrializado.
A coisa era duplamente indigesta. Doía no paladar e no bolso. Detestada pelos estudantes, a lataria era comprada a "preços abusivos", em processos que "favoreciam a formação de conluios" empresariais.
Sob FHC, delegaram-se as compras a governadores e prefeitos. Entre 1996 e 2002, foram gastos R$ 5,5 bilhões. Na ponta da linha, sobraram ridículos R$ 0,13 diários por criança beneficiada. Isso mesmo, 13 míseros centavos por cabeça.
Num botequim de São Paulo, não paga um cafezinho. Em escolas de Itaituba (PA), financia um prato de fome: 20 gramas de alimentos por aluno. É comum faltar comida.
A grana da merenda é federal. Estados e municípios deveriam contribuir. Porém, contam-se nos dedos das mãos os que desembolsam algo expressivo. Na média, a contrapartida não passa de 0,41%.
Segundo os auditores, a descentralização trouxe benefícios. Mas não eliminou as malfeitorias. Longe disso. Alguns exemplos extraídos do relatório do TCU:
1) em 54 das 67 unidades auditadas descobriram-se "impropriedades nos processos licitatórios";
2) na secretaria de Educação da Bahia e na prefeitura de Londrina (PR) foram "desviados" R$ 1,8 milhão e R$ 940 mil respectivamente;
3) em dez unidades investigadas o dinheiro foi usado para outros fins. No município de Estância (SE), por exemplo, a manobra consumiu 18,26% dos recursos (R$ 49 mil) -70% das escolas da cidade amargaram mais de 50 dias sem merenda nos anos de 2000 e 2001;
4) em Aquiraz (CE) faltou merenda nos meses de abril, maio e junho de 2001. Em Luiz Correia (PI), a refeição só foi servida em 87 dias do ano letivo de 2000 e em 93 dias de 2001;
5) em 15% dos municípios encontraram-se "evidências de aquisição de alimentos por preços acima dos de mercado". Em Estância (SE), o sobrepreço chegou a 230%;
6) em localidades como Vitória (ES), São Luiz (MA), João Pessoa (PB) e Natal (RN) optou-se por delegar a administração do dinheiro da merenda às escolas. Ao movimentar as contas bancárias, os estabelecimentos pagaram CPMF. Em vez de alimentar alunos, parte do dinheiro engordou os cofres do Tesouro;
7) conselhos criados para fiscalizar a aplicação das verbas não funcionam. Desestruturados, são incapazes de "detectar irregularidades";
8) os conselheiros, voluntários e sem remuneração, não têm preparo técnico. Em Cajueiro da Praia (PI), alguns deles são analfabetos. Em Araguatins (TO), uma merendeira de escola soube que fora escolhida para "representar pais e alunos" ao ser convocada para a primeira reunião;
9) a composição dos conselhos deveria restringir-se a representantes da sociedade. Mas muitos são integrados por funcionários do Executivo local. Em Araguatins (TO), o presidente do conselho chefiava também a divisão de merenda da prefeitura. Fiscalizava-se a si próprio;
10) os conselhos remetem a Brasília relatórios "sintéticos e formais". O Ministério da Educação finge que fiscaliza. Há 13 pessoas para analisar os milhares de documentos recebidos anualmente. A checagem de cada prestação de contas consome em média escassos 20 minutos;
11) analisaram-se 16.492 relatórios entre 1999 e 2001. Só dois não foram aprovados. Garimpando os papéis, os auditores do TCU colheram irregularidades em 34 casos. Num deles, de Guajará-Mirim (RO), pescaram-se fraudes grosseiras. Contém até notas frias. Fora aprovado pelo MEC, sem ressalvas;
12) vários processos do período de 1994 a 1998 ainda não foram analisados. Nada menos que 60% das contas relativas ao período de 2000 e 2001 encontram-se "aguardando análise".
Recomenda-se ao ministro Cristovam Buarque o desperdício de um naco de seu tempo na leitura da auditoria. Se mais não puder fazer, talvez sugira aos pais e alunos a organização de manifestações e passeatas diante das sedes dos governos estaduais e prefeituras.



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