São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001

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JANIO DE FREITAS

A guerra diferente

Os Estados Unidos ainda não puderam anunciar um êxito verdadeiro desde que moveram sua imensa máquina de guerra, e isso contribui para retardar o aparecimento das costumeiras avaliações do confronto e seu cenário, mas um outro fator se mostra mais inconveniente às análises próprias da imprensa: os Estados Unidos estão perdendo em dois fronts a "guerra diferente" -e isso não é coisa que se diga.
Uma semana que se inicia sob o comunicado americano, feito à ONU, de que outros países seriam atacados e, ainda antes de terminar, ouve a proposta, feita por Bush, de encerrar a guerra em troca só de Bin Laden, uma semana assim diz tudo sobre o estado do governo norte-americano. Desorientação e insegurança, efeitos do imprevisto, mas também, e mais indicativo, do previsto.
O governo Bush esperava reações populares, nos países árabes, aos bombardeios no Afeganistão, com a consequente cautela dos governos sempre pró-americanos desses países. A reação dos governos se mostra crescentemente identificada com a população, chegando já à inimaginável atitude crítica do maior dos aliados dos Estados Unidos na região, a Árabia Saudita, que se recusou até a receber o enviado primeiro-ministro inglês, Tony Blair.
A região arábica é, porém, uma caverna de Ali Babá dos Estados Unidos, parte grande da riqueza americana, em petróleo e no poder acionário e político das petrolíferas. A mudança de nível nas reações negativas, que se elevam do povo aos governos, está configurando uma derrota geopolítica que, embora não definitiva, só pode desnortear o governo Bush: se não aprofunda e amplia a guerra, suas operações de agora reduzem-se ao barbarismo; se a intensifica e a estende, pode incendiar de antiamericanismo incontrolável todo o mundo árabe, com uma perturbação que envolverá todo este planeta que gira movido a petróleo.
No plano interno, as tensões, em vez de reduzir-se com a distância do choque inicial, crescem e propõem uma pergunta difícil: até onde as tensões serão controláveis individual, social e politicamente? Os americanos não são os ingleses. Durante a feroz "blitzkrieg" da aviação alemã sobre as cidades inglesas na Segunda Guerra, muitos ingleses, guarda-chuva no braço e chapéu de feltro, não admitiam sequer apressar o passo para os abrigos. Mas o clima criado em cidades dos Estados Unidos, com a contribuição de Bush, vai ficando cada vez menos distante do pânico, a começar da própria Washington. Tudo é motivo de suspeita temerosa, e o governo não se cansa de alarmar sempre mais.
Sinal eloquente de que os Estados Unidos estão mal na guerra psicológica é a submissão aturdida dos jornais e das grandes redes de TV à autocensura pedida pelo governo, sob o argumento de que entrevistas de Bin Laden e noticiários da TV árabe podem conter mensagens cifradas. Em guerras, é lógica a censura de informações sobre ação militar. Mas uma imprensa lúcida não se permite a confusão, só conveniente para o governo inseguro, entre informações perigosas e a hipótese de mensagens cifradas que, afinal de contas, podem estar na transmissão de uma música, em uma imagem ingênua e em inúmeros meios de que ninguém ousaria suspeitar para censurar.
A expressão "guerra diferente" foi lançada no governo Bush. Até agora, porém, não se sabe por que a expressão ocorreu justamente ali, onde ninguém percebe que o terrorismo exigiria mesmo uma guerra diferente. E sem essas percepções simples ninguém jamais ganhou guerra alguma.



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