São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NO PLANALTO

Procura-se José Serra, o legítimo

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A história , como se sabe, é um amontoado de inverdades sobre as quais os historiadores ainda não conseguiram chegar a um acordo. Descobre-se agora mais uma mentira que se insinuava à posteridade como fato consumado.
Dizia-se que, na origem do Plano Real, José Serra fizera corpo mole. Aqui mesmo, neste retângulo, publicaram-se, no domingo passado, detalhes de uma reunião em que o pouco-caso de Serra tirara Mário Covas do sério.
Na segunda-feira, em entrevista a "O Globo", Chico Caruso inquiriu Serra sobre o tema. E ele: "Simplesmente não houve essa reunião".
Serra não soube, mas o encontro ocorreu. Nacos dos diálogos encontram-se assentados numa velha agenda de um dos participantes. É pena que Covas não tenha vivido para compartilhar da revelação que, súbito, vem à tona.
A calva com olheiras que lhe envenenara o humor não era de Serra. Pertencia a um impostor. Imitou-o com esmero. Caprichou no timbre de voz, nos trejeitos.
Ludibriou, veja você, até FHC. Amigo íntimo, de tempos imemoriais. Deu-se em 1993, noite fria e seca de setembro, Superquadra Sul 103 de Brasília, apartamento funcional de FHC, então ministro da Fazenda de Itamar Franco.
A nata do PSDB fora convocada em segredo. Além de Covas e do pseudo-Serra, FHC chamou Tasso Jereissati e Ciro Gomes. A equipe econômica explicaria ao grão-tucanato a estratégia urdida nos subterrâneos.
A inflação do mês de agosto batera em 31,79%, numa escalada que ameaçava as pretensões presidenciais do PSDB. Os técnicos haviam se preparado para uma conversa longa. Lá estavam Edmar Bacha, Pérsio Arida, André Lara Resende, Pedro Malan, Clóvis Carvalho e Winston Fritsh.
O relógio roçava as 22h. Esperava-se que o anfitrião provesse o jantar. Mas FHC serviu um cardápio de fome aos dez estômagos que atraiu para os sofás e cadeiras de sua sala de estar: água, uísque, amendoim e castanha de caju.
Auxiliado pelos colegas, Bacha contou o que estava por vir: seria criado um novo indexador. Ainda não se chamava URV (u-erre-vê), mas Unic (Unidade de Conta). Depois, seria trocado por uma nova moeda, substituta do cruzeiro real.
Havia um problema: o governo precisava de US$ 20 bilhões para tapar o déficit fiscal. Propunha-se um "fundo de emergência", espécie de cheque em branco do Congresso, permitindo que FHC manejasse livremente algo entre 15% e 20% do Orçamento da União.
Covas saltou da cadeira: "Estão brincando. Querem tirar dinheiro de governadores e prefeitos. Não dão nada em troca, nenhum benefício imediato. O plano de vocês não tem congelamento de preços. E estão achando que isso vai passar no Congresso, em pleno período eleitoral. Nem em sonho".
Os economistas argumentaram que, sem ajustar as contas públicas, seria impossível avançar. Perto de duas da madrugada, Covas impacientou-se: "Vou embora. Se é isso o que temos, acabou".
Bacha segurou-o pelo braço. "Senta aí, Mário. Vamos conversar." Mais uma hora de lero-lero. Covas quis saber quando, afinal, a inflação recuaria. "Não antes de maio de 94", chutou Bacha. Arida e Lara Resende duvidavam da profecia. Achavam-na demasiado otimista.
Ciro e Tasso cobravam pressa. O menecma de Serra guardava zeloso silêncio. Um silêncio que exasperava Covas: "Todo mundo fala aqui, pô. Só o Serra fica quieto. Ele é que deveria falar mais".
Esquivando-se das questões técnicas, o sósia limitou-se a dizer algo reproduzido assim nas páginas da agenda que vem em socorro da reconstituição: "Se conseguirmos durar até maio de 94, será melhor que façamos algo perto das eleições".
Um comentário de Covas emoldurou a reunião: "Não entendo de assunto técnico. Sou político. Neste nosso partido, os técnicos têm o mesmo status dos políticos. Se é isso o que vocês dizem que precisa ser feito, vou junto. Para o precipício".
O resto é conhecido. O real deu dois mandatos a FHC. Ainda no primeiro período, sob protestos do sósia, o populismo cambial propiciou a ruína econômica. Hoje, em meio aos escombros, um presidenciável governista é vendido ao público como candidato da mudança.
Suspeita-se que o Serra de 2002 seja o mesmo sósia de 1993. O Serra legítimo não deixaria o amigo apanhando sozinho dos adversários. Já teria saído em defesa de FHC. Pelo menos em público.
O Serra escocês, diria Nelson Rodrigues, dificilmente ousaria um passo de samba. E, conhecendo de números como conhece, não encamparia a empulhação dos 8 milhões de empregos que saltaram das provetas de Nizan Guanaes.
Um grupo de tucanos cogitou, na semana passada, a organização de um movimento para exigir de Nizan a devolução do amigo. Falhando o ultimato, invadiriam o palacete de inverno que o publicitário mantém em Campos de Jordão, de onde o verdadeiro Serra seria resgatado numa ação espetacular.
Na última hora, manuseando números do Datafolha, o grupo achou melhor manter o Serra autêntico sumido por mais algum tempo. Por precaução, busca-se um cativeiro menos óbvio, mais distante de São Paulo.
Pensou-se num barco de pesca, no litoral baiano. O mesmo em que Duda Mendonça mantém, acorrentado ao leme, um sujeito de macacão amarfanhado, barba à Enéas. Passa o dia gritando coisas como "Lulão guerra e ódio" e "Viva o socialismo". Testemunhas juram ter visto José Dirceu entrando na cabine do barco com um pacote de cigarros debaixo do braço.


Texto Anterior: Janio de Freitas: Mudança de direção
Próximo Texto: Elio Gaspari
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.