São Paulo, quinta, 15 de outubro de 1998

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CELSO PINTO
Uma crise em formação


Existe uma crise de bom tamanho em formação no mercado financeiro, envolvendo títulos da dívida brasileira, os bradies. O prejuízo potencial é grande, especialmente se a cotação dos papéis se recuperar.
A essência do problema é que muitas instituições financeiras venderam bradies (especialmente os C-bonds, que têm mais liquidez) para entrega futura sem ter o papel. A aposta era que o valor dos bradies iria cair muito e seria possível honrar os contratos comprando barato os papéis no mercado.
O valor das vendas futuras foi tão grande que supera hoje, em muito, o volume de papel disponível para compra. Calcula-se que as operações em aberto com C-bonds somem US$ 12 bilhões. O estoque de C-bonds é de cerca de US$ 7 bilhões, dos quais só uns US$ 3 bilhões são girados no mercado, um quarto do valor das operações em aberto.
O preço dos bradies, refletindo essa escassez, acabou não caindo tanto. Por essa razão, várias instituições não estão entregando os papéis, como deveriam. Quem tem direito de receber pode acionar legalmente quem não está entregando. Vários bancos confirmaram que existe um bom número de litígios em andamento, envolvendo grandes bancos internacionais.
O mercado de bradies costuma usar um contrato padrão, desenhado em 95 pela ISDA (International Securities Dealers Association). Uma cláusula permite o acionamento jurídico.
A instituição acionada tem 30 dias para cumprir sua obrigação. O prazo é longo porque esse é um mercado com menos liquidez, e pode ser difícil encontrar o papel. Se, ao final de 30 dias, o banco não entregar o papel, o credor pode ir ao mercado, comprar o papel e apresentar a conta ao devedor. É o que se chama de "buy-in".
Tanta gente teve dificuldade em receber o papel que houve uma reunião, há algumas semanas, na EMTA (Emerging Markets Trading Association). Falou-se em reduzir o prazo do "buy-in" de 30 dias para 5 dias.
Especulação
Como chegou-se a essa situação? Há duas razões que levam instituições a ficarem "vendidas" em bradies brasileiros, ou seja, com promessa de venda futura de papéis: proteção (hedge) contra outros investimentos ou especulação.
O princípio do hedge é simples. Se alguém comprou algum título em país emergente e quer se proteger contra perdas faz uma operação inversa: uma venda futura de outro papel, que tenha uma correlação histórica de preço com o primeiro papel e que tenha liquidez. Se os dois preços caírem, o prejuízo no primeiro (posição "comprada") será compensado pelo lucro no segundo (posição "vendida").
Os bradies brasileiros, especialmente os C-bonds, têm muita liquidez e, por esta razão, são muito usados como hedge. Quem tinha papel russo, por exemplo, muitas vezes estava "vendido" em C-bond. Um banco brasileiro que tenha muito eurobônus de empresas brasileiras na carteira pode fazer o mesmo. Esses eurobônus perderam valor e estão sem liquidez. Se o banco vende uma posição equivalente em C-bond, nos seus livros as operações se anulam. Se os preços de ambos caírem ou subirem juntos, o hedge vai funcionar.
Mas há também os que ficam "vendidos" por razões especulativas. Acharam ou acham que o Brasil vai sofrer um colapso cambial, os preços dos bradies vão despencar e vai ser possível comprar os papéis por preços muito menores. Alguns grandes bancos internacionais estão nessa aposta.
Quem tem bradies por razões históricas (absorvidos na negociação da dívida brasileira), como o Banco do Brasil, o Banespa e alguns bancos privados, pode alugar esses papéis para outros bancos. Recebia 0,5% ao ano até recentemente; hoje, com a demanda de bradies, recebe 6% ou 7%. Pode, também, usar o papel como garantia para tomar um empréstimo alavancado de até quatro ou cinco vezes o valor das garantias.
Nos dois casos, algum grande banco está, normalmente, na outra ponta. Os grandes operadores nesse mercado são o JP Morgan, o Chase, o Deutsche, a Merrill Lynch, o Swiss Bank e o ING. Nas duas hipóteses, do aluguel e da alavancagem, o banco que fica com o papel pode, por sua vez, passá-lo para frente, por venda ou aluguel. Como compara um banqueiro, é como se o banco que fizesse uma hipoteca com alguém pudesse vender ou alugar a casa hipotecada para terceiros.
É isso que cria uma cadeia de operações que é maior do que o volume de papel disponível. Alguns suspeitam que o governo forçou essa situação ao acionar o BB para comprar os papéis. Seria uma forma de encurralar os "vendidos" e garantir que o preço dos bradies não iria cair tanto.
Exista ou não a mão do BC por trás, o fato é que muita gente está carregando muito prejuízo não explicitado. Como diz o diretor da Área Externa do BC, Demósthenes Madureira Pinho Neto, se o Brasil recuperar a credibilidade e o valor dos bradies subir, a subida será potencializada pela escassez de papel e vai gerar enormes prejuízos.
Os bancos internacionais já estão sob pressão com perdas na Ásia, na Rússia e com o LTCM. Há quem diga que os bradies poderão ser uma nova fonte preocupante de prejuízos. Sabe-se que as autoridades americanas estão acompanhando a novela dos bradies de perto.
O Brasil ganha, se a situação levar a uma subida rápida nos preços dos bradies, reduzindo o prêmio de risco. Perde, contudo, se uma nova rodada de prejuízos colocar os bancos e os países emergentes sob suspeita ainda maior.




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