São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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PÚBLICO X PRIVADO

Coteminas teria manobrado para receber subvenções indevidas do setor público na compra de algodão

Empresa de Alencar é acusada de fraude

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nem tomou posse e já tem diante de si um desafio de natureza ética: terá de investigar a Coteminas. Pertence a José Alencar (PL-MG), vice-presidente eleito. É acusada de fraudar o erário.
A acusação, feita por empresário do ramo algodoeiro, tramita na Corregedoria Geral da União, órgão do Palácio do Planalto. O processo ganhou, na terça-feira, o número 190.994189/2002-90.
Contém documentos que expõem os meandros da relação comercial da Coteminas, segunda maior indústria têxtil do país, com o sua principal fornecedora de algodão, a família Vasconcelos Bonfim, hoje em litígio com a empresa.
Chama-se Carlos Newton Vasconcelos Bonfim o patriarca da família. Controla, junto com o filho Carlos Newton Vasconcelos Bonfim Jr. e outros familiares, as firmas Bial Algodoeira e Algodoeira Califórnia.

Subvenções
A Folha obteve cópia dos papéis sob investigação. Mostram que a Coteminas comprou, em leilões da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), lotes de algodão que, na prática, já lhe pertenciam. A manobra permitiu que amealhasse subvenções que o governo distribui em pregões agrícolas. Deu-se o seguinte:
1) a Coteminas costuma antecipar a aquisição de algodão. Começa a comprar no início do plantio, paga adiantado ao agricultor e recebe o produto depois da colheita. É prática comum no mercado. Evita contratempos no suprimento de matéria-prima;
2) só na safra 1999/2000, a Coteminas adquiriu da família Bonfim cerca de 16 mil toneladas de algodão. Firmaram-se nove contratos entre outubro de 1999 e junho de 2000. O primeiro deles, uma "escritura pública de compra e venda de 4.000 toneladas de algodão", traz, entre outras, a assinatura do próprio José Alencar;
3) simultaneamente, a Coteminas frequentou os leilões da Conab, destinados a evitar que a produção agrícola encalhe nas mãos de produtores rurais. Nesse tipo de leilão, vão ao martelo lotes de PEP. A sigla identifica um programa criado sob o governo Fernando Henrique Cardoso: "Prêmio de Escoamento de Produto".
4) em vez de comprar e estocar excedentes agrícolas, o governo federal passou a pagar um prêmio em dinheiro, o PEP, para que os próprios compradores levem os produtos do campo para as áreas de consumo;
5) os computadores da Conab informam que, no ano de 2000, a Coteminas amealhou R$ 9,1 milhões em subvenções. Dinheiro vivo, que migrou do Tesouro Nacional para o caixa da empresa. Parte do prêmio é irregular. Quanto? Só a investigação poderá determinar, a partir dos indícios disponíveis;
6) no dia 12 de julho de 2000, por exemplo, a Conab realizou um de seus leilões. Destinava-se ao escoamento do algodão da safra 1999/2000. A Coteminas arrematou R$ 4,2 milhões em PEPs, quase metade de toda subvenção que obteve do governo federal naquele ano;
7) seguindo as normas da Conab, depois de arrematar o prêmio, a Coteminas teve de indicar os nomes dos produtores que lhe venderiam o algodão. Entre eles estava Carlos Newton Bonfim Jr., da mesma família cuja safra a Coteminas já havia comprado e pago. Coube a ele o "fornecimento" de 3.483 toneladas de algodão;
8) ou seja, parte do algodão que a empresa do vice-presidente eleito José Alencar "comprou" no leilão de 12 de julho já era sua por contrato. Encontrava-se estocada em depósitos do fornecedor;
9) quem arremata produtos agrícolas em pregões da Conab se obriga a fazer o pagamento ao produtor por meio do Banco do Brasil. No leilão de 12 de julho de 2000, a transação com Bonfim Jr. resultou em depósitos de R$ 7,5 milhões;
10) súbito, o "vendedor" Bonfim Jr. pôs-se a fazer depósitos bancários em favor da "compradora" Coteminas. Era a restituição de algo que, na verdade, os Bonfim já haviam recebido. A devolução produziu, na movimentação bancária das empresas, um rastro que leva à pantomima do leilão;
11) a Folha obteve cópia de quatro depósitos de Bonfim Jr. e das empresas da família dele para a Coteminas. Pingaram na conta 55.063-9, agência 3114-3, do Bradesco: R$ 1,050 milhão em 26 de julho de 2000; R$ 135 mil no mesmo dia 26 de julho; R$ 1,713 milhão em 31 de julho de 2000; e R$ 2,133 milhões em 1º de agosto. Tudo somado, foram devolvidos à Coteminas pelo menos R$ 5,030 milhões.

Intervenção no mercado
O PEP foi idealizado como uma ferramenta de intervenção pontual no mercado agrícola. A Conab organiza os leilões sempre que fareja o risco de algum produto micar no armazém do produtor.
No caso envolvendo a Coteminas e os Bonfim, duas partes que já haviam se acertado, o governo meteu-se onde não era chamado. Deu subvenção a quem não precisava, para escoar um produto que já estava vendido e pago.
Os documentos que vieram a público não permitem concluir se houve novos simulacros em leilões. Não se sabe se outros compradores recorreram ao mesmo tipo de manobra. Tampouco é sabido se, além dos Bonfim, outros produtores participaram de simulações.
Havendo interesse, a investigação pode, pelo menos no caso da Coteminas, ser aprofundada. Além da subvenção de R$ 9,1 milhões que recebeu em 2000, a empresa do vice-presidente eleito, José Alencar, obteve, segundo os registros da Conab, R$ 6,7 milhões em PEPs no ano de 2001. O número de 2002 será fechado no final do mês.


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