São Paulo, sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

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"Estou passando por isso porque contei sobre os anos de chumbo", disse italiano

LUCAS FERRAZ
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Ex-integrante do PAC (Proletários Armados pelo Comunismo) e agora com o status de refugiado político concedido pelo governo brasileiro, o italiano Cesare Battisti, acusado de ser o autor de quatro homicídios em seu país, afirmou à Folha no ano passado que a prisão "tem sido uma escola para aprender" sobre o Brasil.
O país, disse, além de ser um "terreno fértil" para o desenvolvimento de sua carreira literária, foi escolhido por ele como destino por causa da legislação, que proíbe a extradição de estrangeiros que tenham cometido crimes políticos.
A Folha entrevistou Battisti no final de fevereiro do ano passado na carceragem da Polícia Federal, em Brasília, por meio de um interfone. A entrevista não foi publicada à época.
A conversa, que durou uma hora, ocorreu em português, língua que Battisti fala bem, apesar do forte sotaque.
Casado e pai de dois filhos, Cesare Battisti contou que ainda acredita no comunismo, insiste que é perseguido político e conta que, mesmo preso, continua a escrever. Quer completar uma trilogia iniciada com "Minha Fuga Sem Fim", editado no Brasil em dezembro de 2007 e que apresenta, de forma romanceada, suas memórias sobre o passado.

 

FOLHA - Como foi a sua fuga?
CESARE BATTISTI
- Entrei no Brasil por Fortaleza, com meus documentos franceses. De Paris, fui para Portugal, passei por Ilha da Madeira, Cabo Verde, na África, e, de lá, cheguei a Fortaleza. Sempre fui monitorado no Brasil, desde a chegada até a prisão. Eram umas 20 pessoas me seguindo [policiais italianos, franceses e brasileiros].

FOLHA - Por que escolheu o Brasil?
BATTISTI
- Era uma decisão que eu discutia com minha família ainda em Paris. O Brasil proíbe a extradição de estrangeiros acusados de crimes políticos.
Por isso vim, era onde queria ficar. Tinha também relações com alguns intelectuais brasileiros, além de aqui ser um terreno fértil para eu desenvolver minha carreira literária.

FOLHA - Quais são seus amigos brasileiros?
BATTISTI
- Prefiro não dizer, pois não tenho contato com eles há algum tempo. Tenho uma relação, por exemplo, com o deputado Fernando Gabeira [PV-RJ]. Conheci-o no Brasil, mas minha relação com ele não é política, é como escritor.

FOLHA - Você afirma que houve influência política nos seus julgamentos, tanto na França como na Corte Europeia de Direitos Humanos.
BATTISTI
- Houve, sim. Foi um acordo entre França e Itália, uma vingança pessoal de [Silvio] Berlusconi, que, inclusive, é amigo de [Nicolas] Sarkozy.
Foi uma operação política.

FOLHA - Teme por sua vida?
BATTISTI - O problema é na Itália. Querem acabar com quem está escrevendo sobre as páginas sujas de sua história.

FOLHA - Por que você se diz perseguido?
BATTISTI
- Estou passando por isso porque falei muito, escrevi e contei sobre os anos de chumbo. Isso na Itália é um buraco negro, não se sabe de nada. O país lida mal com seu passado.
Eles não aceitaram um romancista escrevendo sobre aqueles anos. Há vários outros perseguidos políticos que continuam vivendo na França, inclusive autores de atentados políticos.

FOLHA - Você se arrepende de ter participado da luta armada?
BATTISTI
- Sim, de ter participado do começo, que foi uma armadilha. Não de ter protestado contras as injustiças da época.
A Itália tinha uma falsa democracia, era um país de terceiro mundo na Europa, onde os fascistas nunca saíram do governo. Um país anômalo no seio da Europa, que não reconhece o que aconteceu.

FOLHA - O governo da Itália afirma que você é responsável por quatro assassinatos durante os anos 70. Você matou?
BATTISTI
- Os PAC [Proletários Armados para o Comunismo] tinham uma linha ideológica em que a determinação era não matar. Quando o grupo adotou a linha [de assassinatos políticos], saí. Abandonei nesse momento a luta armada. Não atirei em ninguém, não matei ninguém. O Pietro Mutti [fundador dos PAC], que me denunciou, mudou várias vezes as versões em seus depoimentos.
Era cômodo ele colocar a culpa em mim, que estava longe. O problema é que nunca calei a boca.

FOLHA - Ainda defende o comunismo?
BATTISTI
- Sou profundamente comunista. Não o comunismo cubano-soviético, mas aquele do "Manifesto Comunista", de Karl Marx [e Friedrich Engels].

FOLHA - O que acha do Brasil?
BATTISTI
- Conhecia apenas a literatura brasileira. É um país que desperta muita curiosidade. Estou começando a amá-lo.

FOLHA - Mesmo preso?
BATTISTI
- Sim, mesmo preso.
Esse ano que passei preso tem sido uma escola para aprender sobre o país. Não digo isso só pelo aspecto negativo. Talvez uma pessoa leve anos para aprender lá fora o que aprendi aqui dentro. O jeito brasileiro, a forma como o povo vive, tudo isso me fascina. O brasileiro tem muito do italiano.


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