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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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NO PLANALTO

Fome Zero e megalobby

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O programa Fome Zero está introduzindo na cena nacional um novo tipo de benemerência: o altruísmo de resultados. A Nestlé, maior indústria alimentícia do país, enxergou nos desvãos do capitalismo dirigido por socialistas uma rara oportunidade.
Há dez dias, em visita a Lula, gestores da multinacional suíça prometeram doar mil toneladas de comida ao Fome Zero. Mais: darão emprego a 2.000 jovens, para atuar no programa.
Festejada como maior contribuição privada ao plano antiinanição, a ajuda chegou ao Planalto junto com um pedido de socorro. Na bica de ser julgada pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), a Nestlé sonha com uma mãozinha oficial que propicie a viabilização de um meganegócio: a compra da Garoto.
A Nestlé comprou a Garoto (faturamento anual de cerca de R$ 600 milhões) faz um ano. Bateu na disputa adversários do porte da Lacta. Por imposição legal, a transação foi ao Cade. Farejando o nascimento de um monopólio, o conselho impôs à Nestlé a assinatura de um compromisso. Na prática, impede mudanças na gestão da Garoto até que o caso seja julgado.
Chamada a opinar, ainda sob FHC, a SDE (Secretaria de Direito Econômico) considerou o negócio nocivo à "concorrência" e ao "consumidor". A Nestlé monopolizaria o mercado das coberturas de chocolate (100%). Dominaria, de resto, os segmentos de coberturas sólidas (88,5%), tabletes de até 500 gramas (75,9%), caixas de bombons (66%) e chocolates de consumo imediato (63,1%).
Na última quarta-feira, como a pressentir as pressões que se avizinhavam, a procuradoria do Cade apressou-se em recomendar que a aprovação da venda da Garoto seja precedida da imposição de "condições" que "inviabilizem o exercício do poder de mercado" da Nestlé. O caso está agora pronto para ir a julgamento.
As portas do gabinete presidencial abriram-se para a Nestlé graças à interferência de Paulo Hartung, governador do Espírito Santo, Estado que abriga a fábrica da Garoto. Hartung esteve com José Dirceu, o chefão do Gabinete Civil.
Preocupado com a penúria de seu Estado, o governador pediu pela Nestlé. Depois, enviou a Lula cópia de carta que endereçara ao Cade. O documento, assinado também pela sindicalista petista Linda Maria Moraes, pede a aprovação do negócio "sem a imposição de restrições".
Ouvido pelo repórter, Carlos Faccina (pronuncia-se "Faquina"), diretor de Assuntos Corporativos da Nestlé, disse que é "pura coincidência" o fato de os dois assuntos -a iminência do julgamento do Cade e a doação de alimentos ao Fome Zero- estarem sendo tratados assim, de modo tão curiosamente simultâneo.
"Estamos no Brasil há 82 anos. Há mais de 30 anos desenvolvemos ações sociais", acrescenta Faccina. "O engajamento atual não vem de um lobby ou de um toma-lá-dá-cá. Vem de uma cultura da Nestlé."
O melhor que Lula tem a fazer é dar mais atenção às palavras pronunciadas por Faccina em público do que aos pedidos cochichados em seus ouvidos nos subterrâneos. Que o governo faça bom uso dos mantimentos tão generosamente doados pela Nestlé. Que deixe o Cade, supostamente autônomo, meter a colher livremente no caldeirão achocolatado da Garoto. Negócios, negócios. Fome à parte.


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