São Paulo, quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005

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JANIO DE FREITAS

O filme-catástrofe

"O governo só não sairá derrotado se a oposição não quiser", dizia aqui o artigo de domingo. A oposição quis. E muitos governistas quiseram também, só assim se explicando os 300 votos que na madrugada de ontem entregaram a presidência da Câmara dos Deputados à figura sempre secundária, mas nunca inofensiva, de Severino Cavalcanti.
A óbvia composição dos votos vencedores não requer maior exame para invalidar a tese, logo vicejante no comentarismo político, de que o "baixo clero", o contingente amorfo dos deputados marginalizados, impôs-se às lideranças e aos dominantes e é o novo poder na Câmara. O conjunto vencedor é muito heterogêneo, o que faz com que haja menos um lado vencedor do que um lado derrotado -o governo.
Derrota muito desmoralizadora, já por si mesma, considerando-se quanto o governo empenhou em cargos públicos e outras promessas, em pressões e em manobras baixas dentro de vários partidos, para ao final ver-se dura e quase debochadamente batido. Mas derrota sobretudo devastadora, em uma contemplação mais ampla da política, considerando-se que se segue a outra de grande peso e em que governo e PT também jogavam tudo: a derrota de Marta Suplicy, acompanhada por outras derrubadas eleitorais.
Desastre tão bem construído, porém, só em hollywoodiano filme-catástrofe. Começa com as tergiversações para queimar a emenda de reeleição de José Sarney e de João Paulo Cunha, que teria resolvido tudo em favor do Planalto nas presidências do Senado e da Câmara. Mas fortaleceria João Paulo e suas pretensões ao governo paulista, e isso não convinha a certos petistas, sabendo-se que pelo menos outros quatro têm a mesma pretensão - Marta e Palocci, que dividem o coração de Lula, Dirceu e Genoino.
Depois veio o golpe em Virgílio Guimarães, que venceu na bancada o primeiro turno da indicação para candidato. José Genoino entrou em cena à sua maneira, sustou o segundo turno e a bancada foi informada de que Lula desejava Luiz Eduardo Greenhalgh na presidência da Câmara. Virgílio retirou sua candidatura.
Lula mais tarde negou a intervenção por Greenhalgh, mas era tarde. A bancada já caíra na manobra Genoino/Greenhalgh, formalizando a indicação, e o PT substituía um deputado com bom conceito e intimidade no plenário da Câmara por um candidato muito pouco beneficiado por simpatias. As condições pessoais de Virgílio aliadas à tradição, que entregava a presidência ao indicado pela maior bancada (caso dos petistas), como que antecipava o resultado final a favor do PT. José Genoino é o artífice da derrota.
A presidência de Severino Cavalcanti, no entanto, é mais onerosa para a Câmara, para as próprias instituições e para a opinião pública a respeito da política, do que o é para o governo. Direitista e objetivo igualmente por princípio, Severino Cavalcanti esteve tão bem integrado no espírito e na prática repressora da ditadura como, depois, se adaptou à conveniente convivência com o novo regime. Não é improvável, pois, que o governo e o presidente da Câmara comunguem o suficiente para que a derrota governamental não o seja tanto, na condução dos interesses palacianos e ministeriais no Congresso. O sentido maior da derrota é mesmo o político. E não está figurado só em Severino Cavalcanti.
No bojo da disputa na Câmara travou-se um confronto paralelo, e feroz, entre o círculo de Lula e o secretário fluminense Anthony Garotinho, que inspira ímpetos letais nos planaltinos. Foi outra derrota. Garotinho não só contribuiu com dezenas de votos contra o candidato governista como aumentou a bancada do PMDB a ponto de elevá-la ao nível dominante da bancada petista. Cria-se outro problema para o governo, que é o de definição da bancada majoritária na Câmara daqui para a frente.
E tem mais, como depois se verá.


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