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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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TENSÃO NO CAMPO

Admirador do MST, ministro admite que governo quer revogar medida de FHC que proíbe Incra de vistoriar, por 2 anos, área invadida

Rossetto quer alterar lei de invasões de terra

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O ministro Miguel Rossetto (Desenvolvimento Agrário) admitiu, pela primeira vez, que o governo deseja revogar a medida provisória de Fernando Henrique Cardoso que proíbe o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) de vistoriar, por dois anos, terras invadidas.
"Temos posição contrária a vários artigos da medida", disse o ministro.
Em entrevista à Folha, declarou-se admirador do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) -"Cumpre papel importantíssimo"-, considerou aceitáveis invasões de terras ociosas -"Temos decisões judiciais que não compreendem isso como desrespeito"-, condenou as críticas à nomeação de apadrinhados dos movimentos sociais -"É um preconceito inaceitável"- e associou a violência no campo à exclusão social- "Ela existe por conta da miséria, do abandono, da falta de perspectiva".
Rossetto,42, falou das "irregularidades" que herdou no ministério. Diz que FHC fez "uma reforma agrária do século 19". E promete a reforma "do século 21".
No novo modelo, que o ministro define como sendo "coletivo", o dinheiro de Brasília não irá mais para o assentado.
Será entregue a cooperativas e associações rurais. O custo? "Não tenho." Abaixo, a entrevista concedida à Folha.

Folha - A reforma agrária voltou ao noticiário não pela ação de Brasília, mas por gestos do MST e pela reação dos fazendeiros. Não é um mal começo?
Miguel Rossetto -
Não. Há uma supervalorização do conflito no campo nesse primeiro trimestre. A média dos primeiros trimestres dos anos de governo Fernando Henrique foi de 79 conflitos. Nós estamos com 24.

Folha - A diferença é que o MST vivia às turras com FHC. Esperava-se que, sob o PT, houvesse conflito zero.
Rossetto -
Há enorme redução no padrão de conflito. Temos mais de 70 organizações sociais no campo. Não é correto atribuir tudo ao MST.

Folha - Não há organização que se equipare ao MST.
Rossetto -
Realmente o MST é o de maior representação. Mas há movimentos como a Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura".
É evidente que queremos separar a mobilização social da violência. Mas a tensão é provocada por um brutal processo de exclusão, de miséria e de abandono.
É natural que esses setores cobrem uma resposta do governo. E há setores reacionários da sociedade, minoritários, que se nutrem da violência.

Folha - O sr. entregou as superintendências estaduais do Incra, órgão mediador do conflito agrário, a pessoas ligadas ao MST, à Contag, à CPT [braço agrário da Igreja Católica", à CUT e ao PT.
Se fosse fazendeiro, não desconfiaria dos laudos de vistoria produzidos por esse novo Incra?
Rossetto -
Laudos têm natureza objetiva. Não há espaço para subjetividade. Havendo discordância, há a possibilidade de recurso no Judiciário.
Não há militante orgânico do MST ou dessas outras organizações na estrutura do governo. Ainda que houvesse, não veria nenhum problema. A gestão é de minha responsabilidade.

Folha - O sr. não há de negar a vinculação dos novos superintendentes do Incra com as organizações citadas.
Rossetto -
Vamos falar sobre isso. Da forma como o tema é apresentado, passa a idéia de que pessoas que têm relações com os movimentos sociais não podem ocupar cargos. Isso é um preconceito inaceitável.
Temos produtores rurais e industriais que estão em ministérios. Isso é positivo.

Folha - O problema é que foram nomeados para o Incra pessoas identificadas com um lado do conflito agrário, despertando a desconfiança do outro lado, o dos produtores rurais.
Rossetto -
O Incra não é um órgão neutro. Tem uma missão constitucional: fazer a reforma agrária.
Os gestores serão cobrados por sua eficiência nesse trabalho.

Folha - Na área econômica, o governo traz a marca do conservadorismo. Antonio Palocci Filho [ministro da Fazenda" é comparado a Pedro Malan.
Na sua área, dá-se o inverso. O contraste é proposital ou casual?
Rossetto -
Não é proposital e não entendo como poderia ser casual. Recebi delegação do presidente para executar um programa. É essa a minha responsabilidade e a missão da minha equipe.

Folha - Discursando para prefeitos, o sr. disse que "o campo precisa deixar de ser espaço de conflito e violência". Nos últimos dias, fazendeiros do Pará contrataram pistoleiros, documento da PM de Minas mencionou milícias armadas no campo, produtores do Paraná anunciaram um tal PCR [Primeiro Comando Rural".
O sr. acha que a meia-volta à esquerda feita no seu ministério contribui para o desarmamento de espíritos?
Rossetto -
Temos que deplorar esse tipo de conduta. O ministério não é polícia. O país dispõe de Judiciário, de Ministério Público.
As tensões devem ser resolvidas com diálogo. Setores reacionários de direita, minoritários, não conseguem conviver com a República. A maioria dos produtores não concorda com esse tipo de conduta. Quem produz com responsabilidade social será respeitado e apoiado. Não compactuaremos com terras ociosas, voltadas à especulação.
Há áreas em que a grilagem é uma realidade. Esse ambiente é que estimula o padrão de barbárie inaceitável. Nosso trabalho é superar isso.

Folha - Em nota, o sr. afirmou que "a ação de depredação do prédio do Incra em Mato Grosso" por militantes do MST "ultrapassou os limites democráticos de manifestação". A nota prega "respeito à Constituição".
A invasão de terras privadas também desrespeita a Constituição ou está dentro dos limites democráticos de manifestação?
Rossetto -
O tema da ocupação de áreas é vasto. Falamos em propriedades privadas, em áreas públicas. A responsabilidade de caracterizar a ilegalidade ou não é do Judiciário.

Folha - Permita-me insistir. O sr. está evitando se posicionar. A invasão de terras desrespeita a Constituição?
Rossetto -
Não há possibilidade de uma resposta em tese. As decisões dos tribunais variam em função do tipo de propriedade.

Folha - Suponha uma propriedade privada.
Rossetto -
Temos decisões judiciais que não compreendem isso como desrespeito se a propriedade não for produtiva.
A Constituição estabelece claramente a propriedade rural vinculada ao conceito de produtividade. A noção de propriedade está vinculada à idéia da função social. Por isso a resposta em tese é difícil. As manifestações sociais são uma conquista democrática.

Folha - A violência está muito associada à invasão de terras.
Rossetto -
Está associada também à exclusão social. Ela existe por conta da miséria, da exclusão, do abandono, da falta de perspectiva.

Folha - O primeiro ponto da pauta de reivindicações do MST é a revogação da medida provisória de FHC que proíbe, por dois anos, a vistoria de terras invadidas. Será revogada?
Rossetto -
A revogação passa pela construção de maioria no Congresso ou por uma manifestação do Judiciário.
Temos posição contrária a vários artigos da medida. Eu e o ministro José Dirceu [Casa Civil" temos posição unificada.

Folha - Os senhores são contra especificamente o artigo que proíbe a vistoria de terras invadidas?
Rossetto -
Seja isso, seja em relação a outros artigos. Estamos conversando com os movimentos. A mudança vai depender dessas condições.

Folha - O sr. trabalha nesse sentido?
Rossetto -
Estamos conversando sobre o tema de forma responsável. Acompanhamos o desenvolvimento das decisões dos tribunais superiores.

Folha - Como o sr. define o MST?
Rossetto -
É uma organização de trabalhadores vitimados pelo processo de exclusão.
Cumpre papel importantíssimo para o desenvolvimento da sociedade. Dispõe do meu respeito.
Respeito, que também devoto à Contag, à CUT e outras organizações do campo. O que não significa concordância com todas as táticas. Sabemos diferenciar governo de movimentos sociais.
Tenho grandes amigos no MST e me orgulho disso.

Folha - O sr. tem afirmado que "o modelo agrícola centrado na pequena propriedade é o que melhor responde à necessidade de criação de postos de trabalho e renda". O México está saindo desse modelo.
Na Europa, ele sobrevive à custa de muito subsídio. No Brasil, os assentados não pagam dívidas. Apesar dos juros camaradas, a inadimplência roça os 40%. De onde vem a sua crença na pequena propriedade?
Rossetto -
Vem da experiência secular do meu Estado. No Rio Grande do Sul, experimentamos o processo de acesso à terra no início do século 19.
Não há dúvida de que a exigência de geração de emprego e renda será respondida com mais eficiência por esse modelo, num processo produtivo moderno, contemporâneo.

Folha - A pequena propriedade gaúcha tem peculiaridades que não são comparáveis com a realidade média dos assentamentos.
Ali, a terra passa de avó, para pai, de pai para filho. Há mecanização e tradição de exploração agrícola. O trabalhador do assentamento não tem esse grau de qualificação.
Rossetto -
Nos últimos 20 anos, experimentamos políticas econômicas que desestruturaram todas as atividades produtivas.
Há um padrão de exigência sobre os assentados que não se verifica em outras atividades.
O índice de mortalidade das micro e pequenas empresas urbanas é muito superior aos índices de falência no campo. Houve uma resistência heróica da agricultura familiar e dos assentados.

Folha - Resistência proporcionada pela constante rolagem de débitos em bancos oficiais.
Rossetto -
Em valores muito inferiores às rolagens da agricultura patronal.

Folha - Que avaliação o sr. faz da reforma agrária de Fernando Henrique Cardoso e o que pretende fazer de diferente?
Rossetto -
Fernando Henrique fez uma reforma do século 19. Limitou-se a conceder terra. Fez assentamentos em que inexistem condições básicas de produção. Muitos não têm habitação, energia elétrica, estradas.
Temos que recuperá-los. Faremos a reforma do século 21, cujo elemento central será a transformação do sem-terra num agricultor produtivo, que disponha de conhecimento, de assistência técnica e crédito.
Vamos estimular um padrão coletivo dos assentamentos.

Folha - O que é um padrão coletivo?
Rossetto -
O estímulo a associações.

Folha - O dinheiro do governo deixará de ser repassado ao trabalhador para ser entregue a cooperativas?
Rossetto -
Exatamente. A parcela majoritária dos recursos passa a ser gerenciada a partir dos interesses coletivos do assentamento.

Folha - A Polícia Federal abriu inquéritos para apurar supostos desvios de recursos públicos em cooperativas ligadas ao MST, entre elas a Cocamp (SP) e a Coagri (PR). O Estado está aparelhado para fiscalizar essas entidades?
Rossetto -
Sim. O novo modelo vai assegurar uma transparência que inexiste hoje. Haverá controle social por parte dos assentados.

Folha - O sr. está falando de um modelo coletivista?
Rossetto -
A estrutura de produção deve ser coletiva.

Folha - O sr. tem uma idéia dos custos desse novo modelo?
Rossetto -
Não tenho. A quantificação é difícil. Trabalharemos com recursos da União, de Estados e municípios e com financiamentos internacionais.
Estou seguro de que temos condições de avançar vigorosamente ainda neste ano.

Folha - O sr. trabalha com metas?
Rossetto -
Prazos não tenho condições de estabelecer. O tempo será o menor possível.

Folha - O sr. não tem metas numéricas?
Rossetto -
Não. Mas interessa ao país que, num prazo mais rápido, as famílias acampadas possam produzir.

Folha - Além daquilo que o sr. chamou de má qualidade dos assentamentos de FHC, há outros problemas que o sr. julga ter herdado?
Rossetto -
Sim. Vamos eliminar, por exemplo, o Banco da Terra. Infelizmente encontramos muitas irregularidades: superfaturamento de terras, laranjas, pedágio no acesso ao programa.
Serão enviadas ao Ministério Público. [Ouvido, o ex-ministro Raul Jungmann declarou: "Os desvios foram levantados em sindicâncias que eu e o ministro José Abrão abrimos. Minha expectativa é a de que o novo ministro identifique e puna os responsáveis, como eu faria."".

Folha - Tema secular, a reforma agrária sobrevive como uma página inconclusa da história brasileira. O sr. acha que em quatro anos vai conseguir virar essa página?
Rossetto -
Temos condições de avançar e vamos avançar.

Folha - Avançar não significa resolver.
Rossetto -
Evidentemente que não. Mas vamos, em quatro anos, introduzir, com vigor, um novo modelo agrário no país.
Estou seguro disso.


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