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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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ENTREVISTA

Filósofo e professor de Harvard diz que PT procura se livrar de suas bases tradicionais, escarnece da democracia e se confunde com PSDB

Malan e Ruth são os deuses de Lula, diz Unger

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O PT trai seus eleitores ao radicalizar na aplicação de um receituário econômico "pseudo-ortodoxo" e busca deliberadamente se livrar de suas bases político-sociais tradicionais, iniciativa audaciosa em um governo caracterizado por cautela aparente, avalia Roberto Mangabeira Unger, 55.
O filósofo e professor da faculdade de direito da Universidade Harvard, ex-mentor do candidato derrotado à Presidência Ciro Gomes (hoje ministro da Integração Nacional), Mangabeira diz que, ao se distanciar de suas bases, o PT termina por se confundir definitivamente com o PSDB no que chama de "partido único nacional": aquele que segue sem crítica o ideário dominante dos países centrais e trata de tentar "humanizar" a miséria decorrente com a distribuição de migalhas.
As semelhanças do governo Luiz Inácio Lula da Silva com o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para Mangabeira, são totais: "É Malan e dona Ruth. São os dois deuses tutelares do governo atual", provoca.
Como alternativa à atual política, ele propõe medidas que simultaneamente promovam valorização dos salários e democratização de oportunidades.
Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha por e-mail e telefone na última semana.
 

Folha - O presidente Lula e o governo do PT traíram seus compromissos eleitorais?
Roberto Mangabeira Unger -
Para negar que estejam traindo os compromissos eleitorais, seria preciso aceitar uma de duas desculpas: que lá na letra pequeninha dos documentos em que ninguém prestou atenção estava prevenido tudo que está acontecendo agora ou que o governo está apenas fazendo a transição penosa e inevitável a partir do quadro ruinoso que encontrou. São ambas desculpas esfarrapadas. A primeira, porque toda a nação entende que Lula foi eleito para mudar o modelo econômico. A segunda, porque não se supera, ainda que gradativamente, uma orientação radicalizando as práticas que a definem. E é à radicalização das políticas de FHC que estamos assistindo num governo que tem como seus dois motes principais a confiança financeira para os endinheirados e as cestas de comida para os famintos.
O pior de tudo isso é o escárnio da democracia. Que desmoralização mais pungente da ordem democrática do que essa de eleger um governo para mudar tudo e aparecerem no dia seguinte da posse os mesmos que pregavam a mudança, explicando, com sorrisos amarelos: não dá.

Folha - O que aconteceu?
Mangabeira -
Mais grave e desconcertante do que o oportunismo é a confusão. A confusão, ao contrário do oportunismo, é involuntária.
O núcleo dirigente do PT assimilou a crítica do corporativismo. O vazio deixado pelo corporativismo, porém, foi surpreendentemente preenchido pela aceitação de um ideário pseudo-ortodoxo. Digo pseudo-ortodoxo porque essa combinação de primazia atribuída à confiança financeira com distribuição de comida aos famintos não tem nada a ver a ortodoxia econômica reconhecida como tal nas economias centrais nos últimos 50 anos. É a ortodoxia da década de 1920 nos Estados Unidos e na Europa.
É estarrecedor. Ao afastar-se de sua base histórica no operariado e na pequena-burguesia organizados, o PT, por meio de seu governo, optou por uma aliança entre o grande capital -ou apenas o capital financeiro- e os miseráveis.

Folha - Já há sinais de insatisfação mais forte com a proposta de autonomia do BC. O PT pode perder o apoio de suas bases tradicionais se insistir na ortodoxia?
Mangabeira -
Isso é verdade, mas é secundário. O mais grave é o efeito prejudicial de uma autonomia nesse momento. Em tese ela não é inerentemente nem útil nem prejudicial. Mas nesse momento significa só aumentar o poder de uma elite tecnocrata e financeira hostil a uma alternativa produtivista. Por isso seria um desastre. Que se inscreve na lógica atual do governo: homenagear os preconceitos do capital financeiro. Crêem que sucessivas doses de bajulação possam provocar uma chuvarada de dinheiro.
Num governo caracterizado por tanta cautela aparente, há uma iniciativa audaciosa: livrar-se de forma até radical dessa base corporativa e tradicional do PT.

Folha - Essa perda das bases pode acabar com o que havia de diferença entre o PT e o PSDB?
Mangabeira -
A distinção de uma força política se faz quer pela sua linha programática quanto pela sua base política. Esse exemplo mostra como o governo está se deixando assimilar sob ambos os aspectos. Vira mais uma vertente do partido único no país: que dança conforme a música do ideário dominante no mundo e tenta humanizar isso, dando comida para os famintos.

Folha - Nessas duas características ele se parece com o governo FHC?
Mangabeira -
Sim. É Malan e dona Ruth. São os dois deuses tutelares do governo atual.

Folha -Qual seria o equívoco central da política econômica?
Mangabeira -
É reduzir a condução da política econômica a um jogo de confiança, especialmente de confiança dos mercados financeiros. Essa é a lógica central: se o governo demonstrar austeridade, o dinheiro volta e o juro baixa.
Não há qualquer país, nessa fase da história contemporânea, em que as coisas tenham de fato acontecido de acordo com esse figurino. Mais precisamente, o equívoco é confundir uma necessidade -o realismo fiscal- com uma ilusão -que doses sucessivas de homenagem ao ideário e aos interesses do mercado financeiro nos devolverão ao crescimento. A manifestação -superficial mas reveladora- de tudo isso é o problema do juro.
Sim, precisamos persistir no sacrifício fiscal: condição, entre outras, para ampliar a margem de manobra do governo. E evitar, a toda custa, a volta a qualquer populismo inflacionário.
Mas não há por que aceitar a idéia de que a melhor maneira de fortalecer a economia real do país é estrangulá-la ainda mais. Enquanto o juro real for superior à taxa média de retorno dos negócios do Brasil, a atividade produtiva entre nós continuará a ser precária ou milagreira. Bom negócio mesmo, só banco. E mesmo banco só será bom negócio enquanto sobreviver a fantasia de que o Estado pode pagar sua dívida.
Bom negócio mesmo no Brasil agora só o narcotráfico.

Folha - Mas essa política não está funcionando? O risco-Brasil não baixou? Agora, dizem, não seria só esperar um pouco mais para confirmar o controle da inflação e poder baixar o juro?
Mangabeira -
Os fatores que impedem a retomada de crescimento duradouro e includente nem sequer começaram a ser enfrentados. E nem podem ser se a preliminar continuar a ser: primeiro, temos de assegurar a confiança, fazendo tudo que o mercado financeiro quer.
O C Bond pode melhorar. A inflação pode cair -se os trabalhadores continuarem acuados. Mas, insisto, esse caminho é o rumo da ruína. O máximo que permitirá é uma economia que cresce e pára, de acordo com os humores dos mercados internacionais. Os países que cresceram na história moderna foram aqueles, como os Estados Unidos, que formularam estratégias rebeldes. Não se consegue isso com bom comportamento. Não é de "fazer o dever de casa" que precisa o Brasil. É de idéia, de resistência, de engenho e de audácia.

Folha - A globalização não impõe constrangimentos a todos os países em desenvolvimento?
Mangabeira -
Não. O país que mais dinheiro estrangeiro recebe é a China comunista que, para o bem e o mal, faz tudo diferente.

Folha - E a saída?
Mangabeira -
A imprensa brasileira está cheia de afirmações de que não há alternativa, de que a suposta alternativa significa regresso ao populismo inflacionário e ao isolamento internacional. Falsidades repetidas praticamente sem contraditório. Falta de imaginação a serviço de falta de escrúpulo.
O Brasil precisa voltar a trabalhar, a produzir. Para que isso aconteça, há uma sequência de iniciativas a observar. Logo nos primeiros meses, seis conjuntos de iniciativas devem convergir.
Primeiro, e logo de chofre, um choque não de austeridade, mas de investimento para deslanchar o processo. Sobretudo, investimento privado. Abaixo o dogma a respeito das condições para potencializar a fé empreendedora. Há enorme disposição reprimida para investir. Precisamos apoiá-la por uma combinação de perdão fiscal, expansão agressiva de crédito pelos bancos públicos, e "venture capital" -investimento em novos empreendimentos- privado quando possível, público quando necessário. Tudo que for despesa pública de custeio, fora das prioridades sociais, tem de ser cortado até o osso em favor de despesa pública em investimento.
E para financiar o investimento, a receita tem de aumentar, não diminuir, só que dentro de outro desenho tributário. Aumento das exportações, que afrouxe o constrangimento externo, só pode ocorrer e surtir efeito como parte integrante desse novo calor produtivo. Não é preliminar nem efeito especial.
Segundo, remanejamento dos juros e dos prazos da dívida pública interna. Duas ilusões persistem a respeito das finanças públicas: que essa dívida está sendo paga e que a única alternativa a aceitar os termos atuais da administração da dívida é o calote. Desconhece-se o poder do Banco Central de ganhar a queda de braço com gente que não tem alternativa atraente ao negócio de emprestar dinheiro ao Estado. Há anos se diz que o juro não pode ser menor porque o mercado não deixa. A verdade chocante, reconhecida por financistas nacionais e estrangeiros, é que o juro não é menor porque o governo não quer, e não quer porque se deixou intimidar e colonizar mentalmente.
Terceiro, medidas para proteger as reservas e, quando necessário e só pelo tempo necessário, apertar os controles sobre a saída do dinheiro brasileiro. É um recurso que precisa estar disponível para que o governo não possa ser chantageado na hora de a onça beber água.
Quarto, uma drástica simplificação tributária, radicalizando a linha que o governo do PT acabou aceitando. O sacrifício tem de ser justificado por uma política de estímulo ao investimento e de valorização dos salários. Daí a importância de impostos mais igualizadores e justos do que imposto de renda, que incide sobre os salários da classe média. Tributos que alcancem os altos padrões de vida e a transmissão da riqueza por herança e doação.
Quinto, reforma previdenciária que não se limite, como essa com que o governo acena, ao viés fiscalista, de cortar despesa, culpando os funcionários públicos pelas consequências do desvio pelo governo do dinheiro destinado a financiar suas aposentadorias. Reforma que construa os elementos de um regime público de capitalização. Reforma que imponha a toda a classe média a obrigação de investir na produção, via fundo previdenciário, parte do que ganha e que mobilize a poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo. É condição para não depender da poupança estrangeira. É meio para o Brasil poder andar com as próprias pernas.

Folha - Mas de onde vem a inclusão social nesse modelo?
Mangabeira -
A fecundidade tanto econômica quanto social dessas medidas depende de sua combinação com duas outras iniciativas que lhe revelam a natureza íntima: valorização dos salários e democratização das oportunidades. Portanto, democracia econômica do lado da demanda e do lado da oferta.
A política social mais importante num país como o nosso não é aquela que apenas atenua o sofrimento de alguns, embora seja justo atenuá-lo. É a que está implícita na democratização da economia. Política social no Brasil hoje é salário e oportunidade econômica e educativa.

Folha - Mas como melhorar os salários sem que isso se traduza na volta da inflação?
Mangabeira -
Soluções diferentes para cada nível do nosso assalariado tão desigual.
Na base mais pobre, desoneração completa da folha salarial, para ajudar a acabar com a informalidade, e subsídios fiscais ao emprego e à qualificação. No meio do assalariado, regras que protejam os trabalhadores temporários, e não sacrifiquem os interesses dos instáveis ou desempregados aos que gozam dos melhores empregos. E, na parte superior do assalariado, efetivação do princípio constitucional de participação dos trabalhadores nos lucros das empresas. Princípio que se deve estender, pouco a pouco, a toda a hierarquia salarial.
Nada disso é aumento meramente nominal do salário. É mudança das condições que ajudam a definir o salário real. Sem isso, não há como consolidar bases para um mercado de consumo em massa no Brasil.

Folha - E a democratização de oportunidades?
Mangabeira -
Crescimento sustentável e socialmente includente depende de transformação fundamental: ampliar os meios de acesso ao ensino de qualidade, ao emprego e à tecnologia em favor dos trabalhadores. Há hoje no Brasil uma nova cultura de auto-ajuda e iniciativa. Faltam-lhe os instrumentos.
É disso que precisamos. Não uma política industrial de resgatar e favorecer uma panelinha de grandes apaniguados. A construção de toda uma teia de fundos e centros de apoio, para dar equipamento e oportunidade à multidão de empreendedores. Temos onde começar: uma tradição de bancos públicos que agora precisam ser reinventados e descentralizados e organizações admiráveis embora desiguais como o Sebrae.
O Brasil precisa também de grandes empresas capazes de atuar em escala mundial. Apoio aos graúdos, entretanto, só se filtrado por regras impessoais. E só se contrabalançado por práticas que aliem as entidades públicas de fomento à multidão de empreendedores emergentes. Se política industrial não for isso, é assalto.

Folha - E a moralização tão falada pelo PT, que lugar ocupa nesse projeto?
Mangabeira -
Há muito que o Brasil não tem um governo tão cheio de gente de boa-fé e com tão pouco bandido no primeiro escalão. Que pelo menos transformem essa honestidade em iniciativa, dando à sociedade condições de respirar e de fazer por si mesma as mudanças que o governo está confuso e temeroso demais para promover.
Dois pontos são cruciais, porque fecham as fontes principais da corrupção. O primeiro ponto é o financiamento público das campanhas eleitorais. Não há investimento melhor que o povo brasileiro possa fazer: com relativamente poucos recursos, diminuiria radicalmente a influência do dinheiro sobre a política. É obra que teria de ser completada por meio de reforma partidária que caminhasse em direção ao sistema de listas fechadas.
O segundo ponto é a privatização das falências. Tirar o governo do negócio ruinoso e corruptor de ser o garantidor implícito de todo grande negócio no Brasil. Empresário falido tem de ficar pobre, para que acabemos com esse reino dos espertalhões sobre os otários que é o nosso regime.

Folha - O sr. acredita que o PT possa se converter a esse projeto, abandonando a ortodoxia?
Mangabeira -
Não posso negar meu ceticismo a respeito da possibilidade de ocorrer essa conversão do governo do PT. Parecem de tal maneira atemorizados que terão dificuldade em dar os primeiros passos. Além de certo ponto, enfraquecimento da vontade e confusão das idéias se misturam.


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