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ENTREVISTA
CULLEN MURPHY
Se não mudarem, EUA serão Roma, alerta historiador
A "Pax Americana" é uma ilusão, e o processo de "declínio e queda" não será súbito, afirma autor norte-americano
Para o jornalista e historiador Cullen Murphy, uma
erosão lenta começa a corroer o Império Americano.
Embora creia que muito separe os EUA de seu predecessor cujo fim sepultou a Idade Antiga, fatores de risco os aproximam: a dependência do poder militar e a
obsessão por segurança -a um custo insustentável-,
a terceirização de funções do governo, a arrogância.
Como estancar a queda? "Estaríamos nos ajudando se
parássemos de tentar projetar poder em cada canto."
SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON
"Are We Rome?", pergunta o
título do livro. É uma brincadeira com o som da pergunta
que os pais mais ouvem dos filhos durante as viagens, "Are
we home yet?", "já chegamos
em casa?, e a pergunta que historiadores, analistas e pensadores norte-americanos se fazem cada vez mais: "Nós já somos Roma?".
"Nós", no caso, é o Império
Norte-Americano. Responder
a essa questão e traçar paralelos entre as duas épocas são o
que propõe Cullen Murphy, 55,
jornalista e especialista em história medieval, no livro que
acaba de lançar, cujo subtítulo
é "A Queda de um Império e o
Destino dos EUA". "Não, ainda
não" é o que ele responde à Folha, numa troca de e-mails.
Ainda assim, acredita, há
muitos e perigosos paralelos
entre o país comandado por
George W. Bush hoje e o império que terminou em 476, ao
ver seu exército derrotado pelos soldados de Odoacro, um
"bárbaro" que era cristão, conhecia os meandros de Roma e
até meses antes servia no mesmo regimento que agora caía.
Leia a seguir os principais
trechos da entrevista:
FOLHA - Para usar o duplo sentido
do título de seu livro, nós já estamos
em Roma?
CULLEN MURPHY - Não, ainda
não. Há evidentemente muitas
diferenças entre os EUA e o antigo Império Romano, e algumas dessas diferenças podem
trazer em si sinais do futuro.
Diferentemente de Roma, os
EUA são um país de classe média, uma democracia e uma sociedade marcadamente igualitária. Ainda assim, há muitos e
perigosos paralelos com a Roma antiga, e eles deveriam
preocupar mais os americanos.
Por exemplo, a maneira com
que os EUA dependem crescentemente do poder militar
para atingir seus objetivos,
mesmo com nossas Forças Armadas já no limite de sua capacidade. Ou a terceirização de
funções governamentais para
empresas privadas, o que enfraquece a capacidade do governo de agir em benefício de
todos os seus cidadãos -e aumenta a habilidade dos interesses privados em agir em benefício de poucos. Por fim, a mentalidade que vê os EUA como o
centro do sistema solar, com
todos os outros países orbitando em torno de nós.
FOLHA - O que mais?
MURPHY - Há pessoas na direita
que vêem os EUA como ainda
na fase ascendente e ainda no
processo de expansão de seu
poder no mundo. Há, obviamente, muitos outros, não só
na esquerda, que se preocupam
com o fato de que a "Pax Americana", como a "Pax Romana" de
muitos séculos atrás, ser uma
ilusão. Ilusão essa que vai levar
os EUA a trilhar um caminho
perigoso e fútil, na minha visão.
O processo de "declínio e
queda" não vai ser súbito, mas
uma erosão lenta, como foi para Roma. O que nós chamamos
de "queda de Roma" não foi
uma catástrofe ocorrida da noite para o dia, aquela imagem
popular dos bárbaros empurrando as portas da cidade. Ao
contrário, levou séculos, ocorrendo mais rapidamente em alguns lugares que em outros.
Você pode estar vivendo bem
no meio dessa "queda" e não se
dar conta. Para alguns, a queda
se parece muito com o que vemos agora, aliás: novos povos
adquirindo nova autoridade e
poder econômico, alguns grupos demográficos novos se mudando para cidades, outros grupos mais antigos se tornando
gradualmente marginalizados.
FOLHA - Se a decadência for inevitável, qual seria o próximo império?
A China, como muitos acreditam?
Algum outro dos BRICs (acrônimo
para Brasil, Rússia, Índia e China)?
MURPHY - Outros países vão se
destacar e se tornar potências
econômicas e militares regionais. Isso é bom, creio. A China,
é claro, será um deles, assim como a Índia. Mas vários outros
terão papel importante. Por
exemplo, além dos países da
Europa Ocidental, citaria Turquia, Austrália e Brasil. Quanto
ao "próximo império", talvez
estejamos passando do ponto
em que teremos impérios convencionais. Não sei, será que
em 500 anos alguém vai escrever um livro chamado "Are We
America?"?
FOLHA - O sr. dedica boa parte do livro à questão da segurança, acha
que o preço de manter um império é
a constante vigilância. Ironicamente, isso não o levará à ruína?
MURPHY - O custo da segurança
-ou, para ser mais preciso, o
custo do que achamos ser segurança- é insustentável a longo
prazo. Foi insustentável para
Roma. É o mesmo dilema: seus
Exércitos são muito pequenos
para as metas que eles têm de
(ou desejam) cumprir, mas ao
mesmo tempo muito grandes
para serem mantidos por muito tempo. São custosos em termos humanos e financeiros.
Não sei se esse problema tem
solução, além da mais óbvia:
parar de tentar projetar nosso
poder em cada canto do mundo. Nós só estaríamos nos ajudando se fizéssemos isso. Se
adotássemos uma política de
energia inteligente, por exemplo, que levasse em conta nosso
imenso poder tecnológico, poderíamos abrir mão de manter
a presença maciça atual no
Oriente Médio.
FOLHA - O número de mercenários
no Iraque já quase se equivale ao de
soldados. O Império Romano fazia o
mesmo...
MURPHY - Nesse momento, há
150 mil soldados americanos
no Iraque, e cerca de 100 mil
mercenários. O problema de
manter um Exército muito numeroso em ação é que o preço
político se torna muito alto. É
muito mais fácil fingir que o
número de tropas oficiais está
estabilizado -ou mesmo reduzido- e ao mesmo tempo contratar profissionais do setor
privado para fazer o serviço. A
prática não é nova, mas a proporção atual é inédita.
E não afeta apenas os militares. Há hoje 2 milhões de funcionários públicos no governo
federal. Estima-se que haja
mais 12 milhões -você leu certo- prestando serviços, em
contratos privados, realizando
todo tipo de trabalho público,
mas empregados por companhias privadas. Pode ser que
sejam em tese mais eficientes,
menos burocráticos. Mas, com
o tempo, a erosão do poder do
governo é muito significativa.
E, quando houver uma nova
crise, o governo pode descobrir
tarde demais que não tem autoridade direta para fazer o que
deve ser feito. Isso aconteceu
em Roma.
FOLHA - A comparação entre Washington e Roma é recorrente. Por
que o sr. acha que historiadores a
acham tão atraente?
MURPHY - Não vamos nem falar
do fato de que Washington e
Roma até se parecem fisicamente, com todo aquele mármore se erguendo do pântano.
O fato é que Roma era o Estado
mais rico, sofisticado e poderoso da época, o que os EUA também são hoje. Como Roma,
também têm uma ideologia de
superioridade -nossa nota de
dólar chega mesmo a usar as
palavras de Virgílio para proclamar "Novus Ordo Seclorum", uma nova ordem para os
tempos.
Após a Segunda Guerra
(1939-45), quando aos EUA foi
confiado o papel de líder mundial num grau nunca ocorrido
antes (um papel que o país desempenhou de maneira satisfatória por várias décadas, na minha opinião), as pessoas começaram a dizer "Pax Americana",
em referência à "Pax Romana".
Mas outra razão que leva as
pessoas a fazer a comparação
entre os dois impérios tem a ver
com o que não são as melhores
qualidades de ambos: a arrogância, o orgulho excessivo, o
fato de sermos voltados para
nós mesmos.
FOLHA - Há um sentimento mais
ou menos disseminado no resto do
mundo de que, mesmo com novas
tecnologias integradoras como a internet e o cabo, os norte-americanos
continuam sendo um povo insular,
fechado em si mesmo. Por que isso
acontece, em sua opinião? Geografia? Destino? Ou simplesmente porque eles podem?
MURPHY - Os americanos sempre fomos de certa maneira insulares. Os pioneiros acreditavam que tinham deixado o
doente Velho Mundo para trás,
e que isso lhes dava uma chance
de criar uma sociedade nova.
Nunca deixamos por completo
a idéia do "excepcionalismo",
de sermos um povo especial.
Combine isso ao fato de sermos protegidos por dois oceanos e de termos todo um continente para explorar, e não chega a ser surpreendente que os
EUA sejam isolados, mesmo
sendo uma potência mundial.
Mas isso precisa mudar. Numa
era de globalização econômica
e migração humana vasta, nenhum país pode fingir que o
resto do mundo não conta. Os
americanos não podem mais se
dar ao luxo de ser paroquiais.
FOLHA - De onde a comparação entre o presidente George W. Bush e o
imperador Diocleciano?
MURPHY - Tenho pensado nos
EUA sob a ótica de Diocleciano
já há algum tempo, por conta
do grande investimento dos últimos anos -a começar de Ronald Reagan, na verdade- em
segurança nacional e do declínio relativo de investimento
em programas domésticos. A
comparação não é absolutamente exata por várias razões.
Ainda assim, parece claro para
mim que os EUA estão se tornando o Estado que se preocupa em primeiro lugar e principalmente com a segurança nacional em termos militares -o
que Diocleciano (284-305)
também fez, ao se tornar imperador depois de um período de
caos e declínio.
Mas o trecho ao qual você se
refere, em que comparo os preparativos para uma viagem ao
exterior de Bush aos do imperador, me ocorreu quando meu
avião aterrissou na Irlanda e eu
vi ambos os Air Force One na
pista, cercados por militares,
cercas de arame farpado, vigiados com caças com mísseis. Um
imperador romano se deslocava pelo mundo com um pesado
aparato de segurança -como
Bush, levava com ele um governo inteiro em miniatura...
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