São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 1999

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LANTERNA NA POPA
A despersonalização do câmbio

ROBERTO CAMPOS
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O sistema cambial brasileiro de flutuações administradas dentro de limites fixados pela autoridade monetária (com "bandas" e "intrabandas") horrorizaria Milton Friedman, o grande guru liberal. Ele prega a "despersonalização" do câmbio. Acha que num mundo em que a telemática e a busca da eficiência deflagraram intenso movimento de capitais, só há lugar, para dois regimes diametralmente opostos, o das paridades fixas (em que um "currency board" se limita a ajustar os meios de pagamento interno à variação das reservas cambiais) e o da flutuação pura (em que os burocratas se abstêm de fixar taxas, deixando que o mercado as determine). No primeiro caso, a rigidez cambial serviria como disciplina antiinflacionária. No segundo, o objetivo é evitar crises de balanço de pagamentos, devendo a estabilização de preços ser perseguida por instrumentos extracambiais. O importante, em ambos os casos, é eliminar-se a desconfiança na "palpitologia" dos Bancos Centrais quando fixam taxas ou bandas de flutuação, como se tivessem revelações divinas sobre a "taxa de equilíbrio".
No mundo real, esses modelos puros são raros. Predominam os modelos híbridos, apesar de repetidos insucessos. Talvez o "híbrido" mais bem- sucedido tenha sido a serpente européia -o EMS- de flutuações administradas dentro de bandas relativamente estreitas. Ainda assim, a Inglaterra, a Itália e a Espanha tiveram que abandonar a serpente, por pressões do balanço de pagamentos, empreendendo aliás desvalorizações bem-sucedidas.
A Europa se engaja agora numa experiência ousada e radical -a criação de uma moeda única, o euro- eliminando o problema de flutuações cambiais e paridades intraeuropéias.
O Brasil adotou um sistema híbrido de minidesvalorizações programadas, que teve utilidade como âncora antiinflacionária, mas que está hoje em fase agônica. Isso, em parte pelo impacto de crises externas, que não tiveram respostas adequadas, e em parte porque o "gradualismo" cambial só seria sustentável se acompanhado de "radicalismo" fiscal.
A mistura de relativa rigidez cambial, sustentada por juros altos, com permissividade fiscal é reconhecidamente explosiva, sendo surpreendente que tenha durado tanto tempo. Houve vários erros na condução da política cambial, que devemos examinar para não sermos condenados a repeti-los. O primeiro foi a queda exagerada do dólar (que chegou a valer R$ 0,84) no início do programa. Isso representou um choque desfavorável para as exportações e um estímulo frívolo às importações. A inflação caiu mais rapidamente do que o esperado, o que foi um sucesso, mas foi também rápido o crescimento do nosso déficit externo (semente de insucesso). A crise mexicana de 1994 nos levou a uma desvalorização insuficiente e mal administrada, seguida de fixação de bandas estreitas. No enfrentamento da crise asiática de 1997, nossa reação (que parecia correta) foi um programa, supostamente rigoroso, de reforma fiscal -o pacote 51. Deficiências de implementação, oriundas em parte da frouxidão habitual em anos eleitorais, foram o primeiro abalo substancial na credibilidade da equipe econômica brasileira. Até então, graças a uma boa retórica, ao sucesso das privatizações e ao êxito antiinflacionário, o governo detinha um coeficiente de confiança internacional superior aos seus méritos objetivos.
O pânico da moratória russa de 1998 provocou no exterior uma análise mais acurada das debilidades brasileiras exibidas no "déficit gêmeo": o cambial, de mais de 4% do PIB e o fiscal, de mais de 7% do PIB. Ambos, o dobro do que se consideraria razoavelmente financiável para países em desenvolvimento.
A resposta desta vez foi um programa fiscal de corte de gastos e aumento de arrecadação, reforçada por um apelo ao FMI, às organizações internacionais de crédito e aos governos do G7.
O pacote fiscal foi aprovado em cerca de 75%, mas alguns itens cruciais, seja pela arrecadação rápida (CPMF), seja pelo simbolismo anticorporativo (contribuições previdenciárias de ativos e inativos), não passaram ainda no Congresso.
Nas negociações com o FMI, a vaidade tecnocrática sobrepujou o realismo do mercado. Sabe-se que o FMI, conquanto aceitasse a manutenção do sistema de minidesvalorizações programadas, preferiria uma aceleração das desvalorizações, tendo em vista estimular as exportações estagnadas. A equipe econômica teria considerado ponto de honra e demonstração de nossa capacidade gerencial o endosso internacional ao sistema vigente, talvez na esperança de postergar ajustes mais ousados até a aprovação completa do ajuste fiscal. A ironia da sorte é que dois meses depois é o próprio Bacen que, ante a contínua perda de reservas, decreta uma desvalorização de 8,3%, acompanhada do alargamento das bandas. Isso teria sido menos traumático e internacionalmente mais bem compreendido se viesse no bojo das negociações com o FMI.
Os meses de dezembro de 1998 e janeiro deste ano foram uma trágica confirmação do postulado de Friedman de que a taxa cambial deve ser imunizada contra decisões burocráticas pontuais, sempre atrasadas em relação ao mercado.
Apesar de fatores favoráveis como a reeleição de FHC e o acordo com o FMI, a confiança internacional na gestão do Bacen e na capacidade de controle político do presidente reeleito se deterioraram rapidamente. Os fatores de "erosão do prestígio" foram os seguintes: a) o atraso na votação da CPMF; b) a rejeição pelo Congresso da contribuição previdenciária adicional de ativos e inativos, gerando a impressão de que os privilégios triunfaram na luta conta a aritmética atuarial; c) a ridícula disputa sobre o teto salarial do funcionalismo, pelo perigo de o teto se transformar em incentivo à equiparação; e d) muito mais grave, a declaração de moratória do governador de Minas Gerais, indicando a sobrevivência da cultura do calote e criando perigo de imitação por outros Estados.
Ante essa evolução pessimista na percepção dos investidores internacionais, estão mudando os termos do problema. A questão não é mais como viabilizar, em termos realistas, o gradualismo das desvalorizações pelo regime de bandas, e sim como preparar a "saída" das bandas para o regime de livre flutuação. Nessa travessia, temos vantagens e desvantagens sobre mexicanos e asiáticos, que percorreram antes essa "via crucis".
Como desvantagem, temos uma desordem fiscal maior, tradição inflacionária mais prolongada e menor dinamismo exportador. Como vantagem, beneficiamo-nos de um sistema bancário mais robusto, de empresas menos alavancadas e de um estoque residual apetitoso de empresas privatizáveis.
A tarefa imediata e imprescindível quer no sistema de bandas administradas quer no de taxas flutuantes seria o desfazimento das "loucuras" de dezembro e janeiro, pela aceleração do ajuste fiscal, pela resistência firme aos Estados caloteiros e pelo anúncio de privatizações que tenham significado emblemático. Para persuadir o mundo de que o Brasil abandonou os fetiches do Estado empresário e interventor, nada melhor que privatizarmos o símbolo do intervencionismo financeiro que é o Banco do Brasil, assim como os símbolos do estatismo energético que são a Petrossauro e o complexo hidrelétrico de Furnas. Isso desviaria a atenção do Brasil-problema para o Brasil potencial. O paradoxo brasileiro é sermos vistos internacionalmente como um risco financeiro inaceitável e um risco econômico palatável.
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Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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