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LANTERNA NA POPA
A despersonalização do câmbio
ROBERTO CAMPOS
²
O sistema cambial brasileiro
de flutuações administradas
dentro de limites fixados pela
autoridade monetária (com
"bandas" e "intrabandas") horrorizaria Milton Friedman, o
grande guru liberal. Ele prega a
"despersonalização" do câmbio.
Acha que num mundo em que a
telemática e a busca da eficiência deflagraram intenso movimento de capitais, só há lugar,
para dois regimes diametralmente opostos, o das paridades
fixas (em que um "currency
board" se limita a ajustar os
meios de pagamento interno à
variação das reservas cambiais)
e o da flutuação pura (em que os
burocratas se abstêm de fixar taxas, deixando que o mercado as
determine). No primeiro caso, a
rigidez cambial serviria como
disciplina antiinflacionária. No
segundo, o objetivo é evitar crises
de balanço de pagamentos, devendo a estabilização de preços
ser perseguida por instrumentos
extracambiais. O importante, em
ambos os casos, é eliminar-se a
desconfiança na "palpitologia"
dos Bancos Centrais quando fixam taxas ou bandas de flutuação, como se tivessem revelações
divinas sobre a "taxa de equilíbrio".
No mundo real, esses modelos
puros são raros. Predominam os
modelos híbridos, apesar de repetidos insucessos. Talvez o "híbrido" mais bem- sucedido tenha
sido a serpente européia -o
EMS- de flutuações administradas dentro de bandas relativamente estreitas. Ainda assim,
a Inglaterra, a Itália e a Espanha
tiveram que abandonar a serpente, por pressões do balanço de
pagamentos, empreendendo
aliás desvalorizações bem-sucedidas.
A Europa se engaja agora numa experiência ousada e radical
-a criação de uma moeda única, o euro- eliminando o problema de flutuações cambiais e
paridades intraeuropéias.
O Brasil adotou um sistema híbrido de minidesvalorizações
programadas, que teve utilidade
como âncora antiinflacionária,
mas que está hoje em fase agônica. Isso, em parte pelo impacto de
crises externas, que não tiveram
respostas adequadas, e em parte
porque o "gradualismo" cambial
só seria sustentável se acompanhado de "radicalismo" fiscal.
A mistura de relativa rigidez
cambial, sustentada por juros altos, com permissividade fiscal é
reconhecidamente explosiva,
sendo surpreendente que tenha
durado tanto tempo. Houve vários erros na condução da política cambial, que devemos examinar para não sermos condenados
a repeti-los. O primeiro foi a queda exagerada do dólar (que chegou a valer R$ 0,84) no início do
programa. Isso representou um
choque desfavorável para as exportações e um estímulo frívolo
às importações. A inflação caiu
mais rapidamente do que o esperado, o que foi um sucesso, mas
foi também rápido o crescimento
do nosso déficit externo (semente
de insucesso). A crise mexicana
de 1994 nos levou a uma desvalorização insuficiente e mal administrada, seguida de fixação de
bandas estreitas. No enfrentamento da crise asiática de 1997,
nossa reação (que parecia correta) foi um programa, supostamente rigoroso, de reforma fiscal
-o pacote 51. Deficiências de
implementação, oriundas em
parte da frouxidão habitual em
anos eleitorais, foram o primeiro
abalo substancial na credibilidade da equipe econômica brasileira. Até então, graças a uma boa
retórica, ao sucesso das privatizações e ao êxito antiinflacionário, o governo detinha um coeficiente de confiança internacional superior aos seus méritos objetivos.
O pânico da moratória russa
de 1998 provocou no exterior
uma análise mais acurada das
debilidades brasileiras exibidas
no "déficit gêmeo": o cambial, de
mais de 4% do PIB e o fiscal, de
mais de 7% do PIB. Ambos, o dobro do que se consideraria razoavelmente financiável para países
em desenvolvimento.
A resposta desta vez foi um
programa fiscal de corte de gastos e aumento de arrecadação,
reforçada por um apelo ao FMI,
às organizações internacionais
de crédito e aos governos do G7.
O pacote fiscal foi aprovado em
cerca de 75%, mas alguns itens
cruciais, seja pela arrecadação
rápida (CPMF), seja pelo simbolismo anticorporativo (contribuições previdenciárias de ativos
e inativos), não passaram ainda
no Congresso.
Nas negociações com o FMI, a
vaidade tecnocrática sobrepujou
o realismo do mercado. Sabe-se
que o FMI, conquanto aceitasse
a manutenção do sistema de minidesvalorizações programadas,
preferiria uma aceleração das
desvalorizações, tendo em vista
estimular as exportações estagnadas. A equipe econômica teria
considerado ponto de honra e
demonstração de nossa capacidade gerencial o endosso internacional ao sistema vigente, talvez na esperança de postergar
ajustes mais ousados até a aprovação completa do ajuste fiscal.
A ironia da sorte é que dois meses depois é o próprio Bacen que,
ante a contínua perda de reservas, decreta uma desvalorização
de 8,3%, acompanhada do alargamento das bandas. Isso teria
sido menos traumático e internacionalmente mais bem compreendido se viesse no bojo das
negociações com o FMI.
Os meses de dezembro de 1998 e
janeiro deste ano foram uma trágica confirmação do postulado
de Friedman de que a taxa cambial deve ser imunizada contra
decisões burocráticas pontuais,
sempre atrasadas em relação ao
mercado.
Apesar de fatores favoráveis
como a reeleição de FHC e o
acordo com o FMI, a confiança
internacional na gestão do Bacen e na capacidade de controle
político do presidente reeleito se
deterioraram rapidamente. Os
fatores de "erosão do prestígio"
foram os seguintes: a) o atraso na
votação da CPMF; b) a rejeição
pelo Congresso da contribuição
previdenciária adicional de ativos e inativos, gerando a impressão de que os privilégios triunfaram na luta conta a aritmética
atuarial; c) a ridícula disputa sobre o teto salarial do funcionalismo, pelo perigo de o teto se transformar em incentivo à equiparação; e d) muito mais grave, a declaração de moratória do governador de Minas Gerais, indicando a sobrevivência da cultura do
calote e criando perigo de imitação por outros Estados.
Ante essa evolução pessimista
na percepção dos investidores internacionais, estão mudando os
termos do problema. A questão
não é mais como viabilizar, em
termos realistas, o gradualismo
das desvalorizações pelo regime
de bandas, e sim como preparar
a "saída" das bandas para o regime de livre flutuação. Nessa travessia, temos vantagens e desvantagens sobre mexicanos e
asiáticos, que percorreram antes
essa "via crucis".
Como desvantagem, temos
uma desordem fiscal maior, tradição inflacionária mais prolongada e menor dinamismo exportador. Como vantagem, beneficiamo-nos de um sistema bancário mais robusto, de empresas
menos alavancadas e de um estoque residual apetitoso de empresas privatizáveis.
A tarefa imediata e imprescindível quer no sistema de bandas
administradas quer no de taxas
flutuantes seria o desfazimento
das "loucuras" de dezembro e janeiro, pela aceleração do ajuste
fiscal, pela resistência firme aos
Estados caloteiros e pelo anúncio
de privatizações que tenham significado emblemático. Para persuadir o mundo de que o Brasil
abandonou os fetiches do Estado
empresário e interventor, nada
melhor que privatizarmos o símbolo do intervencionismo financeiro que é o Banco do Brasil, assim como os símbolos do estatismo energético que são a Petrossauro e o complexo hidrelétrico
de Furnas. Isso desviaria a atenção do Brasil-problema para o
Brasil potencial. O paradoxo
brasileiro é sermos vistos internacionalmente como um risco financeiro inaceitável e um risco
econômico palatável.
²
Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do
Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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