São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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JANIO DE FREITAS

O problema da solução

Nas poucas frestas deixadas na semana pelos papas ido e vindouro, armou-se uma sucessão de fatos muito ilustrativa do quanto nos falta, pobres mortais ou mortais pobres, daquela iluminação mental do Espírito Santo que os jornalistas disputam com os cardeais, em Roma e alhures, para dizer qual será a escolha papalícia.
Provocada por Severino Cavalcanti contra Severino Cavalcanti, caiu sobre os parentes nomeados uma inquisição, felizmente menos acalorada e calorenta do que outras. Enquanto esse fogo ardia, até chamuscando de injustiça parentes nomeados com a legitimação de concurso e de transferências corretas, o PMDB governista reprovava no Senado o escolhido pelo governo para presidir a Agência Nacional de Petróleo-ANP. Afinal, exercício criterioso do dever parlamentar por parte desse PMDB que tem, no Senado, a chefia de Renan Calheiros e Ney Suassuna? Nem tanto.
A ministra das Minas e Energia fez longa seleção até chegar, para submeter ao Senado, a um técnico íntegro, de experiência comprovada e rigoroso, qualidades de que a ANP está muito necessitada, aliás desde o nascimento. O que faltou, então, para vê-lo aprovado? Faltaram, têm faltado muito, como explicaram os peemedebistas-governistas, as nomeações de seus cupinchas indicados para cargos que a ministra Dilma Roussef ocupa com técnicos.
A ANP foi vitimada pelo nepotismo no governo passado, quando Fernando Henrique nomeou para presidi-la o próprio genro, que nem do setor de petróleo era. Sua maior realização, afora os inúmeros e pressentíveis negócios, foi tratar de uma sede apreciável em um dos pontos encantadores, de Brasília?, não, do Rio. Esse nepotismo na ANP não suscitou brotoejas na mídia. E, convenhamos, foi melhor assim: permitiu o rápido surgimento de mais um jovem econômica e financeiramente muito bem sucedido, que logo deixou a condição de genro e pôde deixar a ANP.
O que se passou no Senado é usualmente chamado de fisiologismo. Se deixadas de lado as delicadezas da conveniência, seu nome pode ser chantagem, picaretagem, banditismo engravatado e coisas assim. Só acontece em governos que se desmoralizaram perante os parlamentares, na prática mútua de governo que vende cargos, recebendo o pagamento de apoio, e parlamentares que vendem, por cargos, cada gesto de apoio ao governo. Não é acordo político nem aliança governamental, ou não haveria a reprovação de um técnico para obtenção de nomeações, como disse clara e publicamente Ney Suassuna. É corrupção direta e explícita.
Atacar o nepotismo (e só no que tem de mais evidente, pelo que está inicialmente aprovado) é proibir a nomeação de parentes e manter a nomeação, muito mais numerosa, de cabos eleitorais e "laranjas" que dividem os vencimentos com o padrinho. Já que não se tem como excluir os parlamentares dessa corrupção, porque Câmara e Senado até deixariam de ter "quórum" para deliberações, o necessário seria reduzir a exceções os cargos dispensados de concurso, ou não engrossar a hipocrisia da moralização só à custa do filho ou da mulher. Mas quem começaria a busca da solução, eis o problema.
Acabar com a hipocrisia foi a atitude tomada pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio. Negou a cassação de um deputado flagrado ao tratar do preço para livrar o chamado Carlinhos Cachoeira de depoimento em CPI. Ou seja, em lugar da improbidade individual, a Assembléia decidiu declarar a sua própria e plena improbidade. Declaração em que, é justo dizer, não há o que retificar.
A corrupção parlamentar, seja no nível municipal, no estadual ou em Brasília, é indissociável de privilégios não combatidos e da impunidade a eles associada. Só por privilégio absurdo pode um deputado, eleito por uns poucos milhares entre milhões de eleitores, obter nomeações para controlar uma estatal, uma autarquia ou mesmo ministério como um feudo. Não há caso em que isso tenha por objetivo o interesse público. Na melhor e rara hipótese, é interesse eleitoral. Quase sempre, o interesse se mede em cifrões.
Mas privilégios e impunidade já se incorporaram às concepções de convivência e inconvivência brasileiras. A ponto de que se tornam difusas as delimitações de certo e errado, leis e violações, admissível e intolerável. O futebol deu disso mais um exemplo, desta vez extremado. Estão aí pessoas respeitáveis e inteligentes a condenar, não importa a diferença de ênfases e de explicitudes, a providência policial/judicial contra o jogador argentino que cometeu insultos racistas em campo. Síntese do argumento comum aos críticos da providência: provocações e insultos são comuns no futebol, o insulto à negritude do brasileiro não foi racista, as leis argentinas são diferentes.
Se um desses críticos ou um jogador se visse em situação também estressante -por exemplo, a corrida para não perder um vôo-, se sentiria no direito de dizer a quem o impedisse as mesmas palavras, de óbvio teor racial, que o jogador brasileiro ouviu? Respondem igualmente as leis brasileiras e as argentinas que não: para ambas, haveria crime. Por que o jogador de futebol poderia cometer em campo, isento da reação de lei, o que para outros, ou para ele mesmo fora do campo, justifica ação policial/judicial? Mesmo sem tal propósito, toda defesa do jogador argentino resulta em defesa de privilégio. Associado à impunidade penal, ainda que admitida a punição pelos (brandos) regulamentos esportivos.
Punir transgressões à lei vai se tornando menos solução do que problema.


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