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JANIO DE FREITAS
O problema da solução
Nas poucas frestas deixadas na semana pelos papas
ido e vindouro, armou-se uma
sucessão de fatos muito ilustrativa do quanto nos falta, pobres
mortais ou mortais pobres, daquela iluminação mental do Espírito Santo que os jornalistas
disputam com os cardeais, em
Roma e alhures, para dizer qual
será a escolha papalícia.
Provocada por Severino Cavalcanti contra Severino Cavalcanti, caiu sobre os parentes nomeados uma inquisição, felizmente
menos acalorada e calorenta do
que outras. Enquanto esse fogo
ardia, até chamuscando de injustiça parentes nomeados com a
legitimação de concurso e de
transferências corretas, o PMDB
governista reprovava no Senado
o escolhido pelo governo para
presidir a Agência Nacional de
Petróleo-ANP. Afinal, exercício
criterioso do dever parlamentar
por parte desse PMDB que tem, no
Senado, a chefia de Renan Calheiros e Ney Suassuna? Nem tanto.
A ministra das Minas e Energia fez longa seleção até chegar,
para submeter ao Senado, a um
técnico íntegro, de experiência
comprovada e rigoroso, qualidades de que a ANP está muito necessitada, aliás desde o nascimento. O que faltou, então, para
vê-lo aprovado? Faltaram, têm
faltado muito, como explicaram
os peemedebistas-governistas, as
nomeações de seus cupinchas indicados para cargos que a ministra Dilma Roussef ocupa com
técnicos.
A ANP foi vitimada pelo nepotismo no governo passado, quando Fernando Henrique nomeou
para presidi-la o próprio genro,
que nem do setor de petróleo era.
Sua maior realização, afora os
inúmeros e pressentíveis negócios, foi tratar de uma sede apreciável em um dos pontos encantadores, de Brasília?, não, do Rio.
Esse nepotismo na ANP não suscitou brotoejas na mídia. E, convenhamos, foi melhor assim: permitiu o rápido surgimento de
mais um jovem econômica e financeiramente muito bem sucedido, que logo deixou a condição
de genro e pôde deixar a ANP.
O que se passou no Senado é
usualmente chamado de fisiologismo. Se deixadas de lado as delicadezas da conveniência, seu
nome pode ser chantagem, picaretagem, banditismo engravatado e coisas assim. Só acontece em
governos que se desmoralizaram
perante os parlamentares, na
prática mútua de governo que
vende cargos, recebendo o pagamento de apoio, e parlamentares
que vendem, por cargos, cada
gesto de apoio ao governo. Não é
acordo político nem aliança governamental, ou não haveria a
reprovação de um técnico para
obtenção de nomeações, como
disse clara e publicamente Ney
Suassuna. É corrupção direta e
explícita.
Atacar o nepotismo (e só no
que tem de mais evidente, pelo
que está inicialmente aprovado)
é proibir a nomeação de parentes
e manter a nomeação, muito
mais numerosa, de cabos eleitorais e "laranjas" que dividem os
vencimentos com o padrinho. Já
que não se tem como excluir os
parlamentares dessa corrupção,
porque Câmara e Senado até
deixariam de ter "quórum" para
deliberações, o necessário seria
reduzir a exceções os cargos dispensados de concurso, ou não
engrossar a hipocrisia da moralização só à custa do filho ou da
mulher. Mas quem começaria a
busca da solução, eis o problema.
Acabar com a hipocrisia foi a
atitude tomada pela Assembléia
Legislativa do Estado do Rio. Negou a cassação de um deputado
flagrado ao tratar do preço para
livrar o chamado Carlinhos Cachoeira de depoimento em CPI.
Ou seja, em lugar da improbidade individual, a Assembléia decidiu declarar a sua própria e plena improbidade. Declaração em
que, é justo dizer, não há o que
retificar.
A corrupção parlamentar, seja
no nível municipal, no estadual
ou em Brasília, é indissociável de
privilégios não combatidos e da
impunidade a eles associada. Só
por privilégio absurdo pode um
deputado, eleito por uns poucos
milhares entre milhões de eleitores, obter nomeações para controlar uma estatal, uma autarquia ou mesmo ministério como
um feudo. Não há caso em que isso tenha por objetivo o interesse
público. Na melhor e rara hipótese, é interesse eleitoral. Quase
sempre, o interesse se mede em
cifrões.
Mas privilégios e impunidade
já se incorporaram às concepções
de convivência e inconvivência
brasileiras. A ponto de que se tornam difusas as delimitações de
certo e errado, leis e violações,
admissível e intolerável. O futebol deu disso mais um exemplo,
desta vez extremado. Estão aí
pessoas respeitáveis e inteligentes
a condenar, não importa a diferença de ênfases e de explicitudes, a providência policial/judicial contra o jogador argentino
que cometeu insultos racistas em
campo. Síntese do argumento comum aos críticos da providência:
provocações e insultos são comuns no futebol, o insulto à negritude do brasileiro não foi racista, as leis argentinas são diferentes.
Se um desses críticos ou um jogador se visse em situação também estressante -por exemplo,
a corrida para não perder um
vôo-, se sentiria no direito de
dizer a quem o impedisse as mesmas palavras, de óbvio teor racial, que o jogador brasileiro ouviu? Respondem igualmente as
leis brasileiras e as argentinas
que não: para ambas, haveria
crime. Por que o jogador de futebol poderia cometer em campo,
isento da reação de lei, o que para outros, ou para ele mesmo fora do campo, justifica ação policial/judicial? Mesmo sem tal propósito, toda defesa do jogador argentino resulta em defesa de privilégio. Associado à impunidade
penal, ainda que admitida a punição pelos (brandos) regulamentos esportivos.
Punir transgressões à lei vai se
tornando menos solução do que
problema.
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