São Paulo, Quinta-feira, 17 de Junho de 1999
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CELSO PINTO
Um governo quatrilionário

Um dólar vale, hoje, 410 mil liras turcas. Se nada mudar, estará valendo 1 milhão de liras turcas em menos de dois anos. O orçamento do governo turco deste ano prevê gastos de 23,6 quatrilhões de liras e o déficit está estimado em 5,5 quatrilhões.
Nada reflete melhor a leniência com que a Turquia conviveu com alta inflação nestas últimas décadas, do que o valor nominal de sua moeda. No Brasil, a certa altura, a classe média virou milionária por causa da inflação; na Turquia, ela é bilionária em liras turcas.
A relutância em cortar zeros na moeda, faz com que uma pequena corrida de táxi em Istambul, por exemplo, custe alguns milhões. A resistência em atacar com mais vigor a inflação gerou uma taxa média de 60% ao ano nos últimos 20 anos, chegando a mais de 100% em três anos.
"Nenhum presidente do Banco Central turco acha que vai ser enforcado por não controlar a inflação e sim se deixar haver uma crise nas contas externas", lembra Asaf Savas Akat, professor de economia da Universidade de Istambul e colunista de prestígio do jornal ""Sabah".
O primeiro-ministro Bulent Ecevit explicou o salto inflacionário como "resultado de uma transição muito rápida para uma economia de mercado", numa entrevista ao colunista e outros 33 jornalistas internacionais convidados a conhecer a economia turca, quinta-feira passada, na capital, Ancara. A Turquia tinha um modelo estatista, apoiado em substituição de importações, até os anos 70. Nos anos 80, foi liberalizando a economia.
Em 86, assinou um acordo de livre comércio com a União Européia, que expôs a indústria turca a uma forte competição. Em 89, abriu a conta de capitais. A economia cresceu rapidamente, as exportações subiram de US$ 2,2 bilhões em 80 para US$ 28 bilhões em 98, os investimentos externos deram um salto. A inflação, contudo, continuou intratável.
Um alimento inflacionário é a enorme instabilidade política. "O país sofreu muito com a instabilidade política", reconheceu o presidente Suleiman Demirel, numa conversa com o mesmo grupo de jornalistas, em Ancara.
Houve uma sucessão de governos de vida curta, dentro do sistema parlamentarista turco, e intervenções militares diretas em 60, 71 e 80. Isso, além da indução à renúncia do gabinete de Necmettin Erbakan, do partido islâmico, em junho de 97, pelo Conselho de Segurança Nacional.
O Conselho, sob influência militar, tem poderes de interferir em assuntos de Estado, especialmente os ligados à secularização e à integridade territorial, duas questões hipersensíveis desde a fundação do moderno estado turco, em 1923. A Turquia é o único entre os 55 países com maioria muçulmana onde o Estado é separado da religião, observa Demirel. As exigências feitas pelo Conselho a Erbakan, pelo temor de uma islamização do país, acabaram levando à sua renúncia.
A contínua disputa eleitoral impediu que houvesse programas de estabilização duradouros. Levou, também, a um descontrole crescente das contas públicas. O déficit público é alto (7,1% do PIB em 98) e, a exemplo do Brasil, alimentado por juros enormes.
Em 98, o gasto com juros chegou a 11,7% do PIB, ou 40% do orçamento. Nas outras contas, o governo conseguiu um superávit primário de 4,6% do PIB. O estoque da dívida interna não é grande (22% do PIB), mas o vencimento médio é apenas 6 meses (comparado a 10 anos na dívida externa do governo, de 22% do PIB). Os juros reais, acima da inflação, estão em mais de 30% desde o final do ano passado.
A combinação entre juros altíssimos e crescimento baixo (estimado em 2% este ano), pode tornar a dívida interna explosiva em um par de anos, adverte Murat Ucer, economista do banco CSFB, em Istambul. É vital reestruturar os prazos da dívida interna, concorda Erkut Yucaoglu, presidente do Tusiad, órgão dos empresários.
Desde que montou um programa de três anos de estabilização em 97, o governo conseguiu reduzir a inflação de 100% para pouco mais de 50%. Não é fácil, contudo, avançar mais. O câmbio está atrelado a uma cesta que combina dólar e marco alemão. Mantém a competitividade, mas realimenta a inflação.
Ao contrário do Brasil inflacionário, contudo, a Turquia não tem uma indexação legal e a economia é largamente dolarizada. Para o professor Akat, "tudo que é preciso é uma âncora nominal que coordene para baixo as expectativas inflacionárias". O câmbio poderia ser esta âncora, mas há o medo de problemas nas contas externas.
Pressionado por uma crise econômica mais séria, o governo promete reduzir a inflação a um dígito até 2001, sem choques nem "currency boards", e a nova coalizão aprovada semana passada abre a possibilidade de um governo mais estável. Falta provar a vontade política.


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