São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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NO PLANALTO

O futuro da corrupção nas mãos do STF

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O país parece não ter-se dado conta, mas o STF está prestes a tomar uma decisão com aroma de história. Não havendo adiamento, será na próxima quarta-feira. Dependendo da sentença, a chamada coisa pública, ou seja, a coisa nossa, pode converter-se em cosa nostra.
Uma sessão do STF é, como se sabe, o próprio tédio. Tédio de toga e com pompa. Tédio supremo. Reunidos, os juízes costumam produzir dois tipos de debate: os maçantes e os insuportáveis. Ainda assim, recomenda-se às pessoas de bem que não deixem de acompanhar a discussão de quarta-feira.
Vai a julgamento um papel chamado "Reclamação 2.138-6". Trata-se de queixa do governo contra decisão tomada na 14ª Vara da Justiça Federal de Brasília. Condenou-se ali um ministro de FHC: Ronaldo Sardenberg (Ciência e Tecnologia).
Ele foi ao cadafalso por fazer turismo com jatos da Aeronáutica. Viajou a Fernando de Noronha. Visitou Salvador. Esteve em Ilhéus. Instado a defender-se, não negou o uso dos jatos. Alegou que a legislação não proíbe expressamente a apropriação privada das asas da FAB, movidas a dinheiro público.
Sentenciaram-no à perda do cargo, suspensão dos direitos políticos por oito anos, ressarcimento de despesas e multa de R$ 20 mil. Penas que só seriam aplicadas depois do julgamento de todos os recursos cabíveis. Coisa demorada.
Sardenberg foi enquadrado na Lei de Improbidade Administrativa, ferramenta entregue em 1992 pelo Congresso a procuradores e promotores. Utensílio de inestimável serventia no combate aos desvios de conduta de gestores públicos. Propiciou a destituição de prefeitos larápios. Alguns foram ao xilindró.
A reclamação que o governo protocolou no STF pôs de pé uma tese inusitada. Dividiram-se os funcionários públicos em duas categorias: os "agentes políticos" e os demais servidores.
Somente a segunda categoria, composta de modestos barnabés, estaria sujeita aos rigores da Lei de Improbidades e à caneta de juízes de primeira instância. Funcionários de primeira classe teriam direito a "foro privilegiado".
Prevalecendo esse entendimento, "agentes políticos" pilhados em ações de improbidade só poderiam ser julgados nos tribunais. Presidente da República, ministros, senadores e deputados federais no STF; governadores no STJ; deputados estaduais, prefeitos e vereadores nos Tribunais de Justiça.
Em decisão provisória, o ministro Nelson Jobim acolheu a tese marota do governo. E suspendeu liminarmente a condenação imposta a Sardenberg. Promotores do Paraná e procuradores da República recorreram contra a decisão, que será agora analisada pelo pleno do STF.
Confirmando a decisão de Jobim, o Supremo transformará a Lei de Improbidades Administrativas num aleijão. De quebra, afrontará a Constituição, que excluiu os atos de improbidade da lista de crimes que sujeitam autoridades a julgamentos em foro especial.
No rastro de Sardenberg, outras cinco pessoas tentam suspender no STF processos judiciais em que são acusados de usar jatos oficiais para lazer pessoal: o procurador-geral Geraldo Brindeiro e os ministros Pedro Malan, Paulo Renato, Sérgio Amaral e Alberto Cardoso.
O eventual benefício concedido aos ministros e ao procurador será uma gota no oceano de prejuízos que irá desaguar de uma decisão enviesada do STF. Mencione-se, por eloquente, um detalhe que vem sendo omitido no debate que anima os porões de Brasília.
Vai ao lixo um naco da chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, festejada por Pedro Malan como um dos feitos do governo FHC. Aprovada em 2000, a lei tipificou como ato de improbidade administrativa o manuseio irresponsável dos orçamentos públicos.
Ora, quem gerencia tais orçamentos são justamente os "agentes políticos". Os mesmos que o governo deseja colocar a salvo de procuradores, promotores e juízes de primeira instância.
De cara, corre-se o risco de tornar sem efeito dezenas de denúncias e de inquéritos civis abertos pelo Ministério Público, país afora, para apurar malfeitorias de prefeitos e vereadores. Restará a impressão de que o crime pode compensar. Desde que cometido acima de um determinado escalão.
Não perca a sessão de quarta-feira. Começa às 14h, com transmissão ao vivo pela TV Justiça, captada nas capitais pelas redes a cabo. Tome um calmante e prepare um balde de pipoca. Esconda o controle remoto, para não cair na tentação de mudar de canal ao primeiro data venia.



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