São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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ELIO GASPARI

A vingança da choldra no palacete do Murtinho

Numa época de mudança de ares na formulação da política econômica, vem aí um bom livro. Daqueles que instruem o andar de baixo e, quando possível, educam o de cima. Chama-se "Laurinda Santos Lobo - Mecenas, artistas e outros marginais em Santa Teresa" e sai no início de dezembro. A pesquisadora Hilda Machado, da Universidade Federal Fluminense, começa mostrando um bairro do Rio (Santa Teresa), passa pelos hábitos de um grupo de maganos (a plutocracia carioca do início do século 20), fixa-se numa curiosa mulher (Laurinda, a "marechala da elegância"). Era sobrinha e parece ter sido amante de Joaquim Murtinho, o ministro da Fazenda de Campos Salles (1898-1902), ícone da austeridade fiscal, do respeito aos contratos, das privatizações, desemprego, quebradeira e recessão.
Laurinda foi a maior locomotiva da granfinagem da República Velha. Protegeu Villa Lobos, encheu seu palacete (construído por Murtinho) de quinquilharias européias e brasileiros poderosos. Na primeira guerra usava três anéis. Cada um com uma pedra: safira (bleu), brilhante (blanc) e rubi (rouge). Na segunda tinha três bustos de Churchill nas salas.
Campos Salles foi aquele presidente que FFHH gostaria de ter sido, desde que num segundo mandato pudesse ser JK. Joaquim Murtinho era sua ekipekonômica. Olhado pelas suas idéias, foi um mestre do liberalismo.
Olhado pelo juízo que fazia do povo a que pertencia (com feições meio indígenas) era um elitista: "Não podemos, como muitos aspiram, tomar os Estados Unidos da América do Norte como tipo para nosso desenvolvimento industrial, porque não temos as aptidões superiores da sua raça". Pacto social? "Seria contra os princípios de justiça proteger os ineptos, os imprevidentes, os viciosos, com o sacrifício dos que lutam, que se esforçam." Pode ter sido o primeiro brasileiro a usar a expressão "socialismo de Estado".
Esse é o Joaquim Murtinho dos discursos oficiais. Hilda Machado traz à cena, com frio rigor, o Joaquim Murtinho de Santa Teresa. Solteirão, teve muitas parceiras de interesse. Viveu cercado por centenas de cachorros, homeopata de três presidentes, tinha um pé na feitiçaria. Passou pelo ministério e pelo Senado.
Quando morreu, em 1911, aos 63 anos, era um dos homens mais ricos do Brasil. Acertou a conta da dívida externa e diz a lenda que o barão Rothschild pagou-lhe a construção de um palacete. Liberal, ganhou do Estado terras, concessões de ferrovia, banco e mina de ouro. Era dura a vida dos trabalhadores semi-escravizados em suas fazendas de erva-mate, em Mato Grosso. (As traficâncias de Murtinho podem ser vistas também em "Arquivo de Sombras - A privatização do Estado brasileiro nos anos iniciais da Primeira República", de Fernando Antonio Faria)
Homem frio, sabia se divertir. Deve-se a José Murilo de Carvalho o resgate da acusação, feita no plenário da Câmara e não desmentida, de que mandou retratar na cédula de 2.000 réis de 1900 a senhora Prates, conhecida prostituta carioca. Teria feito coisa parecida em pelo menos duas outras ocasiões.
O livro de Hilda Machado tem a rara virtude de mostrar que os pessoas que mandam nos palácios são as mesmas que se divertem nos salões. Suas descrições dos hábitos e das festas de Laurinda recriam o Rio do início do século 20, com um pouco de benevolência para a estampa e o gosto da senhora.
Seu grande momento é a narrativa do declínio. Nem Murtinho nem Laurinda deixaram descendência. Ela morreu em 1946. O palacete foi de mão em mão até que em 1965 foi arrombado e sistematicamente saqueado. Tudo indica que a casa de Murtinho e Laurinda foi depenada pelo andar de cima, pois os móveis da sala foram levados de caminhão. Depois levaram as telhas e as janelas, até que o esqueleto foi ocupado por lumpens e traficantes.
Em 1993 o que restou da casa foi transformado pela prefeitura do Rio de Janeiro num espaço cultural, onde se pode ouvir boa música ao ar livre. O Brasil é certamente o único país do mundo onde o grande ministro da Fazenda do início do século 20 meteu-se com bruxarias, namorou a sobrinha, ficou milionário no cargo e teve o palacete saqueado por conhecedores de bons móveis, imortalizando-se num monumento chamado "Parque das Ruínas".

Promoção
É possível que a embaixadora americana no Brasil, Donna Hrinak, seja convidada para o cargo de subsecretária de Estado para América Latina. No lugar, está Otto Reich.

Curso Madame Natasha de piano e português
Madame Natasha tem horror a música. Ela acredita que a eleição do companheiro Lula a levará a consensuar uma assistência priorizada ao novo governo. Natasha teme que Lula anuncie seu desejo de desenvolvimentar a economia, patamarizando o dólar.
Assim como o PT promete honrar os contratos com a banca, Natasha espera que ele respeite os contratos do idioma. Ela aprecia a bela, simples e elegante fala do andar de baixo. Implica com o patuá pernóstico que pretende ser culto quando é apenas confuso. Ela concedeu uma de suas bolsas de estudo ao diretório nacional do PPS pela seguinte pérola:
"Uma possível participação no governo, de ampla coalizão democrática, deverá levar em conta níveis de inserção do partido que expressem compartilhamento de responsabilidades".
Quiseram dizer seguinte:
"O PPS não aceita cargos mixurucas".

Velharia
Durante oito anos a choldra teve que aturar a quiromancia financeira da ekipekonômica. Agora surgiu o primeiro bruxo petista. O professor Guido Mantega informa que dentro de três ou quatro meses o dólar estará valendo em torno de R$ 3,00.
Resta saber que explicação vai dar se essa profecia não se cumprir.

O nome do jogo é indexação
Mudou o patamar da curiosidade dos mercados diante do novo governo. Antes, pedia-se que ele se comprometesse a honrar os compromissos da ruinosa administração que herdará. Lula assinou os compromissos de FFHH come se ele mesmo os tivesse feito. Agora, a linha divisória mudou de lugar e foi colocada em cima da exigência de que não haverá indexação. O argumento é simples: havendo inflação, todo mundo sofre e a economia se contrai, mas não explode. Indexando-se preços, a inflação explode e, mais tarde, a economia vai junto. (Os preços já indexados, como as tarifas públicas e a gasolina, são obra da mão divina do mercado.)
A nação petista chegou a Brasília dando à administração, cujo candidato foi derrotado, o direito de comportar-se como vitoriosa. Caiu na armadilha e agora não há o que fazer.
Eleito com uma agenda, Lula está sendo levado a raciocinar com a agenda dos outros. Ouvindo-se Antônio Palocci Filho, pensa-se que se ouve Pedro Malan brincando de imitar uma cruza de Lula com José Dirceu.

Dúvidas atrozes
Ainda não se decidiu o dia em que Lula tomará posse nem o lugar onde vai morar. Seu coração balança entre o Palácio da Alvorada e a Granja do Torto. É melhor que essas decisões sejam tomadas logo. Caso contrário, o presidente eleito ficará na situação de ter disputado o cargo quatro vezes ao longo de 12 anos e, depois de tê-lo conseguido, não ter decidido onde vai morar nem o dia exato em que comparecerá ao gabinete de trabalho. A data da posse, vale lembrar, está na Constituição desde 1988.
O presidente da República pode morar onde quiser. Num hotel, na Granja do Torto ou no Palácio da Alvorada, mas só o Alvorada será (e continuará sendo) a residência oficial do chefe do poder Executivo. Hoje o Alvorada tem 70 funcionários e o Torto, desativado, tem dez. Quando o general João Figueiredo morava no Torto, os serviçais eram 23.
Se Lula quiser morar no Torto, convém benzer a casa. Lá moraram os presidentes João Goulart e João Figueiredo. Ambos deixaram o Planalto pela porta dos fundos.

Fome Zero
Onde há, sobra. Em Nova York surgiu um supermercado virtual, o FreshDirect. Para formar cadastro e freguesia, oferece US$ 50 em alimentos frescos entregues em casa. Inteiramente grátis. Os companheiros não pagam nem a taxa de entrega e é proibido dar gorjeta.
Para quem quiser se divertir, o endereço é www.freshdirect.com.

Entrevista

Eli Diniz
(Professora de Ciência Política do Instituto de Economia da UFRJ, autora de "Globalização, Reformas Econômicas e Elites Empresariais".)

- O que a senhora acha que pode sair da iniciativa dos empresários na negociação do pacto social que Lula propõe?
- Acho que a proposta encaminhada pelo presidente eleito, além de inovar, é promissora. Ela traz o empresariado para uma nova forma de concertação, com os trabalhadores à mesa. Desde os anos 30 o corporativismo brasileiro só contempla negociações de empresários com o governo. A curta experiência das câmaras setoriais foi extinta pelo atual presidente porque contrariava o espírito neoliberal de técnicos como Pedro Malan e Gustavo Franco. A proposta de Lula significa uma ruptura com o estilo tecnocrático do atual governo. Ela tem sido bombardeada aprioristicamente, sobretudo pela imprensa. O pacto, bem com o conselho de desenvolvimento, podem articular consensos que nos levem ao tão falado projeto nacional. Estão cobrando coisas que ele não pode dar. Estão sugerindo que ele atropela o Congresso. São críticas inadequadas. Tanto o pacto como o conselho são instrumentos complementares de gestão.
- O que pode sair desse pacto?
- Podem sair os consensos capazes de permitir o combate à fome e as reformas agrária e tributária. A vitória de Lula expressou um grande anseio de mudança, inclusive entre o empresariado. As nossas pesquisas mostravam a existência de um núcleo de insatisfação junto a boa parte do empresariado. Algo no sentido da busca de uma nova estratégia de desenvolvimento. Ao contrário do que se pode ver nas críticas feitas nos órgãos de comunicação, essa não foi uma agenda que apareceu de uma hora para outra. Um conselho, bem coordenado, pode manter aceso o debate da busca de novos rumos para o país .O problema secular da desigualdade social vai para uma mesa onde estarão sentados governo, empresários e trabalhadores. Todos com algum tipo de desejo e de interesse em enfrentá-lo.
- A primeira coisa que a Fiesp propôs foi um congelamento dos salários.
- Isso faz parte do processo. Cada ator expressa a sua visão particular. Compete a uma instância superior orientar os debates, os pleitos e os caminhos dos consensos. Acredito que no essencial haja uma posição agregadora de nomes expressivos do empresariado. Foi esse elemento de agregação que permitiu a formação de pactos nas sociedades européias e foi disso que resultou o apoio dado na Alemanha e nos países nórdicos ao estado de bem-estar social. O empresariado brasileiro nunca teve essa experiência. Historicamente, ele se habituou a tramitar os seus interesses junto ao Estado, mas foi cego para o aspecto da responsabilidade social. O pacto que Lula está propondo e o conselho que se está organizando são uma maneira de conduzir essa mudança.



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