São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI

Por que o doutor foi embora?

O ministro da Saúde, doutor Humberto Costa, fez divulgar uma nota respondendo a uma informação aqui publicada. A informação dizia:
"Um hierarca do Ministério da Saúde, valendo-se do nome de um grão-companheiro do Palácio do Planalto, mandou que fosse furada a fila de exames para a realização de transplantes de medula".
A nota disse:
"O Ministério afirma que não existe denúncia formal sobre irregularidades na fila de transplantes de medula óssea. Se qualquer pessoa tiver indícios ou provas nesse sentido, deve formalizá-los junto ao ministério para que sejam feitas investigações sérias e pormenorizadas sobre o caso".
Depois da divulgação da nota, o médico Daniel Tabak demitiu-se da direção do Centro de Transplantes de Medula do Instituto Nacional do Câncer.
O doutor Humberto deveria procurar saber se a decisão de Tabak de ir-se embora tem alguma coisa a ver com o inconformismo de um servidor da saúde pública diante de uma carteirada que alterou a ordem dos exames de compatibilidades para a realização de transplantes. Se o doutor Humberto não tiver interesse formal como ministro, pode ter como psiquiatra. Estudará as patologias do poder.
Há 500 pessoas na fila de transplantes de medula. Em Curitiba há 15 sem-companheiro em estado crítico esperando exames de compatibilidade.

O negócio é controlar a choldra

Para quem vive num mundo de novos controles, com listas de países classe A, sistemas de identificação digital e, brevemente, viajantes com a periculosidade classificada de acordo com uma escala de cores, saiu um grande livro. É "A Guerra contra os Fracos - A Eugenia e a Campanha Norte-Americana para Criar uma Raça Superior", do jornalista Edwin Black (tradução de Tuca Magalhães). Entre o final do século 19 e as primeiras décadas do 20, prosperou nos Estados Unidos uma busca da superioridade racial. Ela esterilizou 60 mil americanos, e 27 Estados adotaram leis purificadoras da patuléia.
O livro mostra que o racismo, a doença e os controles sociais formam uma teia mais complicada do que a simples observação: "Isso era coisa do Hitler". Antes fosse. As esterilizações americanas tiveram o apoio de grandes nomes da cultura do país: Theodore Roosevelt e Oliver Wendell Holmes (noves fora Alexander Graham Bell, inventor do telefone).
Com a palavra o presidente Roosevelt, em 1913: "A sociedade não deve permitir que degenerados reproduzam sua espécie".
Fala Oliver Wendell Holmes, um dos grandes juízes da história da Corte Suprema, no voto em que decidiu a esterilização de uma jovem de 18 anos, em 1927: "O princípio que sustenta a vacinação compulsória é amplo o bastante para cobrir o corte das trompas de Falópio. Três gerações de imbecis são suficientes".
(No Brasil o conceito de eugenia entrou na Constituição de 1934. A esterilização foi defendida pelo jurista Levi Carneiro e pelo médico Alberto Farani, mas não se fizeram leis punitivas.)
A esterilização era a fase final dos controles para prevenir uma "ameaça biológica". À época, parecia coisa racional. Passados menos de cem anos, soam como maluquice, mas a visão do passado permite o entendimento dos controles do presente.
O livro de Black ajuda a se duvidar de que a criação de novos controles seja solução adequada para problemas velhos.
Os eugenistas pressionaram o Bureau do Censo para que acrescentasse duas colunas aos seus questionários. Nelas seriam identificados os pais e as mães dos cidadãos. Pretendia-se montar um sistema no qual o "indivíduo possa ser localizado de um censo a outro, e de geração a geração. Tais investigações terão grande valor social e político".
Hoje o companheiro Bush acha que se deve dificultar o acesso da escumalha latino-americana aos Estados Unidos. Direito dele. Em 1926 os sábios de uma assessoria da Câmara dos Representantes aconselhavam: "Imigrantes do Noroeste da Europa nos fornecem o melhor material para a cidadania americana, e para a construção futura do desenvolvimento da raça americana. [...] O Sul e o Leste da Europa... têm enviado grande número de mascates, trabalhadores desqualificados, quitandeiros e engraxates".

Dois estilos para licitar obras públicas

Os doutores Lídio Duarte, presidente do Instituto de Resseguros do Brasil, e Carlos Wilson, presidente da Infraero, deveriam se encontrar. Ambos administram marcos do modernismo arquitetônico do Estado Novo no Rio de Janeiro.
Em 2002 a Infraero decidiu expandir o aeroporto Santos Dumont e se recusou a chamar um concurso público de arquitetos para a escolha de um projeto que alterará uma das mais belas paisagens do mundo. Segundo os aerotecas, o concurso não podia ser convocado porque a obra era urgente. Tão urgente que não saiu.
O doutor Carlos Wilson aprenderia com Lídio Duarte a arte da rapidez. O IRB acaba de abrir uma licitação para o projeto de reforma da sua sede. O edital foi publicado no dia 23 de dezembro (data que atrai editais). Os interessados tiveram até o dia 6 para entregar a documentação habilitadora (seis dias de verdade). Amanhã será conhecido o vencedor. Tudo em menos de um mês. O trabalho custará, no máximo, R$ 300 mil (a obra toda sairá em R$ 10 milhões). Os projetos devem ficar prontos em cem dias, mas em 20 deve-se acabar a parte relativa a dois andares. Quem já reformou uma garagem sabe quanta racionalidade há nesse prazo, a menos que o empreiteiro já esteja familiarizado com a propriedade.
A reforma do prédio do IRB é uma empreitada de arquitetura três vezes menor que a expansão do Santos Dumont. Levando-se em conta que a Infraero já consumiu mais de três anos com a parolagem da urgência (para não fazer concurso), o Duarte poderia ensinar ao doutor Carlos Wilson como tocar uma disputa entre arquitetos. Ou Carlos Wilson pode mostrar a Duarte as virtudes da paciência.

Na dúvida, feche a biblioteca

Entre 2000 e 2001, o Itamaraty botou perto de R$ 1 milhão no Centro Brasileiro de Relações Internacionais, instituição montada no Rio, na casa onde viveu Afonso Arinos de Melo Franco. Presidida pelo ex-ministro Luis Felipe Lampreia, o Cebri seria similar aos conselhos de relações exteriores existentes em Nova York e em Chicago. Neles, o mundo dos negócios e a academia acompanham e ajudam a formular alternativas de política externa para os Estados Unidos.
Lá, boa parte do dinheiro veio das viúvas de magnatas. Cá, veio da Viúva de Caxias. O empresariado pingou ninharias. (Nem a metade do que o andar de cima gasta para ir jantar na Festa do Peão Financeiro, ou do Homem do Ano, em Nova York.)
Mudou o governo, mudaram os ventos e, com eles as simpatias do andar de cima. A biblioteca do Cebri, com 3.000 volumes, está fechada. Falta de pessoal e de recursos. Sabendo-se que também está fechada a biblioteca do Itamaraty e a da PUC, com um bom acervo, só atende aos alunos, resta aos pesquisadores brasileiros passar no consulado americano. Podem pedir uma bolsa para estudar na biblioteca do Congresso.

Fritura fria

FFHH tem sido cruel e injusto com Gustavo Franco, presidente do Banco Central durante o seu governo. Nos últimos dias o ex-presidente disse, em duas ocasiões, que em janeiro de 1999 Franco era o responsável pela manutenção do câmbio de R$ 1,20 por dólar. Segundo FFHH, "se ele não caísse, teria caído o presidente". Exagerou no embaçamento do retrovisor.
Quem manteve esse câmbio (que ajudou sua reeleição) foi FFHH. Sumiu de sua memória o ministro da Fazenda Pedro Malan, defensor quinzenal da sobrevalorização, tanto em Brasília como em Washington.
Gustavo Franco não ficou irredutível. Ele admitia coordenar a mudança. Demitido, já estava em seu apartamento de São Conrado quando FFHH e Malan discutiram o tamanho da desvalorização. O ministro queria algo entre 3% e 4%. Foi FFHH quem puxou para 8%. Fantasia. Ao final de janeiro o tombo estava em 42%.
Franco é valente, capaz de morrer pelas suas idéias. Não ajuda a biografia de um monarca servir à patuléia fritura velha.

Risco Santos

Vagou o cargo de chefe da Alfândega do porto de Santos. A titular, Diva Kodama, aposentou-se. Poderia ter continuado no cargo, mas isso não vem ao caso.
Essa alfândega é o objeto do desejo de muita gente boa. O ministro Antonio Palocci faria bem se não deixasse um lugar desses vago nem por 15 minutos. Na dúvida, nomearia interinamente, o cardeal Eugenio Salles.
Já aconteceu uma coisa esquisita com a vaga. No dia 8 o Secretário da Receita, Jorge Rachid, divulgou 24 portarias, todas numeradas. A de número 24 exonerava Diva Kodama, mas faltou a de número 23. Pode ser que tenha sumido no interesse da boa administração.
Rachid corre o risco de preencher uma vaga em Santos abrindo outra em São Paulo. O atual superintendente, Maurício Prado de Almeida, talvez não tenha vocação para síndico de loteamento.

Ave Cesar Lula

Se Lula cuidasse do desemprego da escumalha como cuida de sua propaganda, não haveria desocupado no Brasil ao fim deste mês.
Ele discursou em Monterrey para uma platéia de governantes. Foi o único a consumir cerca de metade de sua fala (630 palavras em 1.457) num exercício de autolouvação que pouco ou nada tinha a ver com o espírito da reunião ou com o interesse dos presentes. (A aprovação da reforma da Previdência, por exemplo.) Deu uma rajada de seis "estou otimista", valeu-se 12 vezes da primeira pessoa do singular e referiu-se duas vezes ao "meu governo".
Num lance barato, deu-se à divulgação de sua agenda: "No próximo dia 30 estarei em Genebra para, junto com o presidente Chirac e o secretário-geral da ONU, aprofundar idéias e convidar os líderes mundiais a se engajarem nesse esforço global (contra a fome)".
De volta ao Brasil, onde roda num Ômega australiano, anunciou a compra de um avião novo, europeu.

Entrevista

Benjamin Steinbruch

(50 anos, presidente executivo da Companhia Siderúrgica Nacional)

- O ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Paul O'Neill, acaba de publicar um livro de memórias revelando que as sobretaxas impostas ao aço estrangeiro pelo governo Bush em 2002 atendiam a interesses exclusivamente eleitorais. Não havia argumento comercial que as justificasse. A medida custou cerca de US$ 500 milhões às exportações brasileiras, e o senhor foi um dos grandes prejudicados. A revelação de O'Neill surpreendeu-o?
- No detalhe, um pouco. No atacado, não. Nós sabíamos que não havia concorrência desleal de parte dos exportadores. O que havia era falta de competitividade num segmento da siderurgia americana. O governo dos Estados Unidos não pratica o discurso que propaga. Ele é um competente defensor da produção e dos empregos dos americanos. As sobretaxas impostas ao aço brasileiro, europeu e asiático podem ter segurado uns 50 mil empregos de americanos. No Brasil, essa sobretaxa deve ter custado uns 10 mil empregos em linhas de produção que não se abriram. O grosso da sobretaxa sobre o aço brasileiro ficou em 43%. Isso inviabilizou as nossas vendas para os Estados Unidos. Nesse sentido, seria mais certo falar em fechamento do mercado americano do que em sobretaxa. Eles defenderam os interesses deles e nós ficamos chupando o dedo.
- O que deveria ter sido feito na defesa dos interesses brasileiros?
- O Brasil se defenderá na guerra do comércio internacional se fizer duas coisas. Primeiro, devemos estudar e colecionar estatísticas para negociar direito. Depois, devemos nos defender sem medo. Quando eu digo sem medo refiro-me à disposição de retaliar. Só é respeitado quem se mostra capaz de brigar. A Organização Mundial do Comércio considerou ilegais as sobretaxas americanas, mas isso aconteceu por iniciativa dos exportadores europeus e asiáticos, que recorreram e retaliaram. Nós não os acompanhamos e acredito que essa decisão, tomada há uns três meses, foi um erro.
- A bola da vez parece ser a produção de camarão. Os produtores americanos pediram ao governo que sobretaxe as exportações de seis países, inclusive o Brasil. O que o senhor sugere aos produtores de camarão?
- Devem se preparar do ponto de vista técnico e jurídico. Depois, o governo deve comprar a briga, como Bush comprou o caso das siderúrgicas. Com uma diferença: o aço americano não é competitivo, e o nosso camarão é. Os empresários brasileiros devem saber que os negociadores americanos sentarão à mesa sabendo muito mais sobre o camarão cearense do que nós sabemos sobre o da Luisiânia. Nesse sentido, em vez de vermos demônios nas memórias de Paul O'Neill, devemos ver um país e um governo que, antes de tudo, defende seus interesses, sua produção e os empregos de seus trabalhadores.

Nos astros

Estava escrito: consolidou-se em Monterrey uma velha implicância entre o presidente mexicano Vicente Fox e Lula.


Texto Anterior: Memória: Crime foi há 2 anos; nova investigação causou reviravolta
Próximo Texto: 4º Fórum Social Mundial: Antiamericanismo domina protestos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.