São Paulo, domingo, 18 de março de 2001

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ELIO GASPARI

Araguaia: a polêmica do surdo com o mudo

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA aprovou um pedido das famílias dos guerrilheiros mortos no Araguaia entre 1972 e 1974 para que se cobre ao Estado brasileiro uma explicação do que lhes aconteceu.
Boa oportunidade para desatar um nó de maluquice que envenena a história do Brasil. Até os jabutis do Araguaia sabem que pelo menos 60 pessoas foram mortas. Cerca de 15 em combates. Os demais foram executados. Ao contrário do que diz o governo, não se fez "acerto de contas" algum com esse pedaço do passado. Esse tipo de raciocínio leva a supor que se acertou a conta da expulsão do professor Fernando Henrique Cardoso da USP, pagando-lhe uma aposentadoria de R$ 5.000 por mês. Se é assim, a cada dois anos FFHH recebe pela perda de uma cátedra, o que no Araguaia vale a perda de uma vida. Não se fechou a conta das famílias que não sabem onde estão sepultados seus cadáveres. Também não se fechou a conta de uma sociedade que, por não ser composta por cretinos, tem o direito de saber o que sucede na sua história.
No início de 1972 o Partido Comunista do Brasil ultimava o treinamento e a estrutura do início de uma "guerra popular" semelhante à que levara Mao Tse-tung ao poder na China. As Forças Armadas desceram no Araguaia para dar um show. Mobilizaram 3.200 homens (1.500 em ação simultânea) e atolaram. Os comandantes militares da época fizeram tudo errado. Retiraram-se ao final do ano.
Os guerrilheiros eram 70, disfarçados. Alguns estavam na região desde 1966. Ajudavam a população e dela receberam apoio. Nessa fase morreram 13. Pelo menos quatro depois de capturados. Fizeram sete prisioneiros, entre os quais o atual deputado José Genoino. Os guerrilheiros assassinaram pelo menos três moradores da região. Nenhum deles em combate. Todos executados.
Em outubro de 1973 o Exército voltou. A tropa desceu na floresta com a diretriz de não fazer prisioneiros e prisioneiros não fez. (Pouparam-se inúmeras crianças e adolescentes que acompanhavam a guerrilha.) Em três meses a "guerra popular" estava acabada e, em menos de um ano, morto o último guerrilheiro. Segundo um relatório lacônico da Marinha, uma ex-estudante de pedagogia morreu em outubro de 1974. Segundo a memória de um combatente, o último guerrilheiro a morrer na floresta pode ter sido um camponês. Pediu comida numa casa e os moradores deram-lhe ovo cozido com pesticida. É um morto sem nome. Talvez tenha se chamado Batista e é tudo o que por ora se sabe.
Neste ano completam-se 35 anos da chegada do primeiro guerrilheiro ao Araguaia e 29 do desembarque do primeiro soldado. Para os comandantes militares da época a guerrilha não existiu. Nada do que nela sucedeu é oficialmente reconhecido.
Essa prepotência deu ao PC do B o monopólio do patrimônio histórico da guerrilha. Vale lembrar que em 1972 a direção desse partido considerava a ditadura comunista da Albânia o "destacamento avançado do socialismo na Europa".
Os poucos dirigentes do PC do B que planejaram a "guerra popular" produziram a única guerrilha que começa com o abandono do teatro de operações pelo seu principal chefe político e termina com a saída da zona de combates de seu último chefe militar. O secretário-geral do PC do B, João Amazonas, estava em Anápolis, a caminho do mato, quando soube que a tropa chegara à região. Voltou para São Paulo. Angelo Arroyo, maior patente a bordo do naufrágio, registrou que, na segunda quinzena de janeiro de 1974, diante do cerco do inimigo, ele e seus companheiros "decidiram voltar". Para onde? Para São Paulo.
Ficaram na floresta pelo menos quinze combatentes descalços, sem roupas, armas ou comida suficientes. Viviam como bichos. Oito em dez eram jovens saídos das faculdades ou profissionais liberais. Todo o arsenal dos guerrilheiros cabia no armamento de uma patrulha de 15 homens do Exército.
A tropa executou até mesmo aqueles que se renderam. Alguns foram degolados por moradores da região que os emboscavam para receber a recompensa oferecida pelo comando militar. A segurança do Brasil grande foi preservada à moda do cangaço. (A cabeça cortada servia como comprovante do serviço.)
Entre o início dos combates e a morte do último guerrilheiro, em 1974, o PC do B não reforçou o armamento nem o efetivo, apesar do pedido do chefe da guerrilha. Admita-se que isso fosse impossível. Ainda assim, a direção do PC do B iludiu a boa-fé daqueles que nela acreditavam. Em abril de 1974, quando não havia mais guerrilha, a rádio de Tirana transmitia um noticiário em português narrando as vitórias das forças populares. Cinco meses depois, o jornal Araguaia anunciava que "a guerrilha conseguiu se implantar firmemente na região". Mentiras mixurucas se comparadas à entrevista de um suposto "Comandante Lobo", dada no início de 1975. Ele informou que a guerrilha dominava uma área maior que a da França. Hoje, num histórico oficial de 3.000 palavras da vida do partido, a guerrilha do Araguaia domina 33.
Vive-se a polêmica do mudo com o surdo. Os comandantes militares não contam como prevaleceram, e o PC do B não revelou como sua guerrilha encurralou-se. Uma tentativa de debate interno foi aberta à época por Pedro Pomar, dirigente da organização. Ele foi assassinado em 1976 por um comando do Centro de Informações do Exército. Deveu-se ao seu filho, Wladimir, a perseverança que tornou pública a discussão, em termos diferentes do que se faz aqui. Teve algum sucesso, pois o PC do B parou de proclamar-se vitorioso.
Como tudo o que acontece na floresta, a guerrilha do Araguaia tem suas lendas.
A primeira é a de que o Exército nunca discutiu o assunto. Meia verdade. O general Álvaro Pinheiro, atual comandante da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, publicou um artigo intitulado "Guerrilha na Amazônia: uma experiência no passado, o presente e o futuro". Saiu no início de 1995 na "Military Review" e foi divulgado pelo repórter Luiz Maklouf de Carvalho. Passa lotado pela narrativa dos métodos da ofensiva final, mas é informativo. Como capitão, Álvaro Pinheiro combateu no Araguaia e foi ferido no ombro durante uma emboscada contra a guerrilheira Dina. Ela escapou, ferida no pescoço. Desse combate nasceu uma lenda local. Ao entrar na mata, Dina virava borboleta.
A segunda lenda estabelece que não restou sobrevivente além de Arroyo. Restaram dois, que o acompanharam depois daquilo que um deles definiu como o "salve-se quem puder". Sabe-se o nome de um. É Micheas Gomes de Almeida (o Zezinho da guerrilha). Tem 66 anos e sua existência foi revelada em 1997, quando o professor Romualdo Pessoa Campos Filho publicou seu minucioso e essencial livro "A Guerrilha do Araguaia - A Esquerda em Armas" (Editora da Universidade Federal de Goiás). Em outubro de 1997, Zezinho deu uma entrevista aos repórteres Euler Belém e Helvécio Cardoso, do jornal "Opção", de Goiânia. Nessa época, vivia em São Paulo. Ele não revela o nome do terceiro sobrevivente.
Quando Zezinho deixou Arroyo num lugar seguro, não foi mandado de volta para resgatar outros companheiros. Fizera um curso de capacitação militar na China e era um grande conhecedor da mata. Teria regressado e acredita que morreria, mas sustentou: "Se tivessem dito que era para eu ter voltado, eu teria voltado".
É de justiça reconhecer que o pouco que se sabe do Araguaia deve-se ao fato de o PC do B ter saído da clandestinidade. Falta que se faça o mesmo com os arquivos militares e com a memória de seus combatentes. Sobretudo para entregar os mortos aos familiares.
Para quem quiser ler a íntegra do artigo do então coronel Álvaro Pinheiro, o endereço é: http://www.google.com/search?q=cache:www.airpower.maxwell.af.mil/apjinternational/apj-p/ppinheiro.html+alvaro+pinheiro&hl=en

Bálsamo
O núcleo de sábios políticos do Planalto continua certo de que a CPI da privatização é um absurdo que deve ser combatido.
Alguns deles, contudo, já admitem que teria sido melhor para o governo se ela tivesse funcionado no ano passado.

Monarquia
FFHH quer chutar o pau da barraca de sua biografia.
É parlamentarista, mas abriu o balcão do Planalto para dar ao presidencialismo a arma mortífera da reeleição. (Para seu benefício e de seus correligionários.)
Faltando 21 meses para a fim de seu reinado virou parlamentarista com o mandato alheio.
Desse jeito, confessará que, como todos os outros mortais, é monarquista, desde que lhe caiba o papel de rei.

Vamos estar falando como bocós
Madame Natasha tem horror a música e considera "gerundismo" uma palavra horrorosa. Pede desculpas, mas não lhe ocorre outra. Ela achou na Internet um manifesto contra essa praga verbal. Não sabe quem é o autor e se dispõe a dar-lhe o devido crédito.
Tem o prazer de publicá-lo, como parte do esforço para conter a propagação do estilo 0800 de relação entre as pessoas. Nem todo gerundista é um 0800, mas todo 0800 é gerundista.
Ao manifesto:
"Este artigo foi feito especialmente para que você possa estar recortando, estar imprimindo e estar fazendo diversas cópias, para estar deixando discretamente sobre a mesa de alguém que não consiga estar falando sem estar espalhando essa praga terrível que parece estar se disseminando na comunicação moderna, o gerundismo. (...)
O importante é estar garantindo que a pessoa em questão vá estar recebendo essa mensagem, de modo que ela possa estar lendo e, quem sabe, consiga até mesmo estar se dando conta da maneira como tudo o que ela costuma estar falando deve estar soando nos ouvidos de quem precisa estar ouvindo. (...)
Mais do que estar repreendendo ou estar caçoando, o objetivo desse movimento é estar fazendo com que esteja caindo a ficha nas pessoas que costumam estar falando desse jeito sem estar percebendo.
Nós temos que estar nos unindo para estar mostrando a nossos interlocutores que, sim, pode estar existindo uma maneira de estar aprendendo a estar parando de estar falando desse jeito. (...)
Tudo começou a estar acontecendo quando alguém precisou estar traduzindo manuais de atendimento por telemarketing: daí a estar pensando que "we'll be sending it tomorrow" possa estar tendo o mesmo significado que "nós vamos estar mandando isso amanhã" acabou por estar sendo só um passo.
Pouco a pouco a coisa deixou de estar acontecendo apenas no âmbito dos atendentes de telemarketing para estar ganhando os escritórios. Todo mundo passou a estar marcando reuniões, a estar considerando pedidos e a estar retornando ligações.
A gravidade da situação só começou a estar se evidenciando quando o diálogo mais coloquial demonstrou estar sendo invadido inapelavelmente pelo gerundismo.
A primeira pessoa que inventou de estar falando "eu vou estar pensando no seu caso" sem querer acabou por estar escancarando uma porta para essa infelicidade linguística estar se instalando nas ruas e estar entrando em nossas vidas. (...)
A única solução vai estar sendo submeter o gerundismo à mesma campanha de desmoralização à qual precisaram estar sendo expostos seus coleguinhas contagiosos, como o "a nível de", o "enquanto" e outros menos votados.
A nível de linguagem, enquanto pessoa, o que você acha de "tá" insistindo em "tá" falando desse jeito? (...)"

Jabuticaba
Assim é a vida. O professor Lawrence Summers deixou o Banco Mundial (uma entidade pública), tornou-se secretário do Tesouro dos Estados Unidos e agora foi presidir a Universidade de Harvard.
Em Pindorama acontece o contrário. Os professores saem das faculdades, vão para o governo e se tornam sócios de bancos privados ou empresas de intermediação financeira. Só da PUC carioca saíram seis, num processo de acumulação patrimonial jamais ocorrido na história das universidades.

Rápida e direta
Durou quarenta minutos o encontro a sós do ministro José Serra com o governador Tasso Jereissati, na tarde de quarta-feira.



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