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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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ARTIGO

O enigma de Lula: ruptura ou continuidade?

FRANCISCO DE OLIVEIRA

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva por uma ampla votação, coadjuvada pelo acompanhamento do voto proporcional que lhe dá expressiva bancada no Congresso, tem tudo para parecer o encerramento não apenas da era FHC, mas, além dela, do longo ciclo da "via passiva" brasileira. Entendamo-nos a respeito do significado dessa controversa expressão, que vem de Gramsci, evidentemente: trata-se de pensar a expansão capitalista na periferia, contraditoriamente sem mercado, pela via autoritária de uma fortíssima coerção estatal. Ademais, forma de praticamente todos os casos de "capitalismo tardio" -não no sentido mandeliano.
Os votos dados a Lula foram, indefectivelmente, para a promoção de mudanças no sentido oposto à estagnação em que patinou o governo FHC depois do estrondoso êxito do Plano Real e a evidente deterioração do segundo mandato. É um caleidoscópio de protestos, promessas, possibilidades, frustrações, insegurança, falta de horizontes. É uma soma negativa, como na álgebra, onde menos com menos dá mais.
Isto é responsável pela conjuntura de confusão que se armou, ou, melhor dizendo, foi da indefinição caleidoscópica que surgiu a soma de votos de Lula. Ancorada, diga-se, no consistente colégio eleitoral construído pelo PT ao longo de seus 22 anos, mas que esbarrava sempre, nas eleições presidenciais que disputou anteriormente, numa intransponível rejeição, que era o nome eufemístico para a rejeição de classe, numa sociedade fortemente travejada pelos meios de comunicação de massa. A confusão continua na armação dos apoios e do governo e nas primeiras propostas. À altura da publicação destas notas, os titulares do governo já estarão em plena função, de modo que alguns pontos do enigma começarão a ser decifrados. O já anunciado ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central já começam a dissipar algumas das incógnitas. Aquela soma negativa não se constitui em hegemonia, mas apenas em vitória eleitoral: nem sequer esta pode ser tomada rigorosamente como a indicação do caminho para a hegemonia.


Lula tenta agora a formação de um consenso pela agregação de interesses do caleidoscópio (...) Em política, tal formação é sempre frágil e dependente de acordos "ad hoc"


A era FHC começou apoiando-se numa indefectível aliança de classes, para o qual o paradigma classista ainda retinha todo seu poder heurístico. Mas a via neoliberal escolhida não foi o produto da aliança: ao contrário, a aliança foi o produto da escolha neoliberal. Ou, em outras palavras, nunca os aliados "atrasados", ACM et caterva, deram o tom do governo FHC. O centro irradiador do consenso que FHC liderou era seu próprio grupo, o PSDB como partido, e o núcleo universitário-burguês-plutocrático como vanguarda. A base eleitoral formou-se com o êxito do Plano Real.
Mas FHC detonou a unidade do núcleo que lhe dava sustentação com as radicais mudanças operadas na propriedade do capital, e a estagnação produzida pelo "modelo" escolhido, de inserção na globalização, destruiu o apoio eleitoral. Em outras palavras, o paradigma classista, válido para o primeiro período da aliança, foi pelos ares. O que sobrou foi uma enorme indeterminação na política, que é o nome próprio do caleidoscópio. A vitória de Lula é o produto direto dessa indeterminação. A partir de seu próprio cacife, representado pelo PT, Lula tenta, agora, a formação de um consenso pela agregação de interesses do caleidoscópio. Não é a formação de um consenso pela prevalência de um centro irradiador, ao modo de FHC em sua primeira eleição. Em política, tal formação é sempre muito frágil e dependente, todo o tempo, de acordos ad hoc, que não se podem projetar. O que está ausente, portanto, é a previsibilidade na política, sem a qual não se opera a reprodução sistêmica.
Iniciativas como a proposição de um Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, uma espécie de fórum maior da articulação do caleidoscópio, são apresentadas como disposição para o diálogo, mas o que mostram é a ausência de hegemonia e o procedimento de agregação que a intuição de Lula percebeu rapidamente. Talvez o paradoxo da eleição esteja em que o único que não se enganou a respeito do resultado que o tornou presidente é o eleito. O que confirma sua trajetória, onde a intuição colocou-se sempre a serviço da experiência, mas não é suficiente para resolver o problema da hegemonia.
Na soma negativa disparatada do resultado eleitoral, nenhum setor se sobrepõe nitidamente a outro qualquer; o único insólito é o próprio PT. Mas suas bases sociais não detêm a capacidade para liderar o processo de construção da hegemonia. De fato, as forças do trabalho foram grandemente erodidas na era FHC, em parte como derivação da inserção na globalização e em parte como estratégia deliberada do grupo dominante. Uma agenda trabalhista, bancada pela base social, não está sendo reivindicada, e talvez não possa ser proposta.
Os outros grupos sociais e setores de classe tampouco podem propor seu programa como o programa do caleidoscópio, nem existe a possibilidade de definir classes ou setores de classe da burguesia que perderam ou ganharam com os oito anos de FHC, para então definir aliados: a metamorfose do capital em capital fictício anula essa possibilidade. O capital produtivo certamente perdeu muito no último período; de outro lado, o balanço dos bancos mostra uma lucratividade em permanente ascensão na era FHC. Mas que detentores do capital estão de um e de outro lado? Igual indefinição ocorre no que se refere ao capital estrangeiro, antiga pedra de toque dos programas do PT. Como controlam os setores de ponta, e na sua origem estão emaranhados com o capital financeiro, nem se pode discriminá-los, posto que são eles que trazem o capital de fora, nem se pode operar uma distinção que procurasse favorecer apenas o capital que "ajuda a criar empregos".
O que sobra é um desenvolvimentismo retrô, em que todos ganharão (?), de par com um programa social indefinido, em cuja ponta assoma o Fome Zero, que entretanto não tem consistência para impor-se como filtro por onde passará toda a definição de um programa mais completo. Explicando: o programa Fome Zero não tem viabilidade de inscrever-se como estrutural, no sentido de fazer parte da reprodução do capital, tal como o instituto da seguridade social se tornou no Welfare pós-Segunda Guerra Mundial, organizando o mercado de trabalho, então ainda o mais importante "preço" da economia. Nos termos de Polanyi, uma não-mercadoria que regula a economia. Não parece que programas tipo Fome Zero tenham essa virtualidade.
No futuro imediato, pois, o que vai se impor é, surpreendentemente, a continuação da política econômica de FHC, enfeitada com uma política social tipo Fome Zero. Que não é tão original assim, posto que programas compensatórios, que tampouco se inscrevem na estruturação da reprodução do capital, são já quase obrigatórios, urbis et orbis. Não há praticamente prefeitura, governo estadual e da União que não esteja tocando programas de Bolsa-Escola, Bolsa-Trabalho, Primeiro Emprego, inscritos no capítulo geral dos programas de geração de emprego e renda. Em muitos casos, a cesta básica foi incluída como um salário indireto na remuneração dos empregados do setor ainda formal de trabalho, e na sua impossibilidade, sobretudo no Nordeste eterno das secas, do desemprego, dos caminhões-cisternas e agora das cestas básicas. O salário mínimo tem mais dignidade semântica: chama-se mínimo.
Existe a possibilidade de ruptura ou ela foi apenas uma ilusão eleitoral? Contraditoriamente, a possibilidade é dada pela mesma indeterminação que torna tão fluidos e tão invisíveis os limites dos interesses de cada classe e cada setor da sociedade. Exatamente porque a crise final do governo FHC é uma crise de hegemonia. In altri tempi, ela seria uma crise revolucionária.


O programa de Lula está a meio caminho entre a continuidade de FHC e o equívoco de De La Rúa. Na prudência, é continuidade; na tentativa de consenso (...), é equívoco


Uma crise de hegemonia pode prolongar-se indefinidamente, sem resolução. Como a Argentina vizinha está mostrando. O peronismo perdeu suas bases e a possibilidade de impor sua agenda: na verdade a crise de hegemonia argentina já é visível desde a última e sanguinária ditadura. O menemismo realizou uma política, em muito parecida com a que FHC praticou logo em seguida, de aproveitar o momento de abertura indiscriminada e privatização selvagem como "acumulação primitiva" para relançar um desenvolvimentismo radical. Na hora em que a "acumulação primitiva" se esgotou, a acumulação de capital strictu sensu não se produziu. A dívida externa contraída mostrava que a reprodução do capital estava muito além das forças da acumulação interna, e neste sentido a tragédia argentina, como a brasileira, está em que, entrando no caminho da dívida, a autonomia da acumulação interna fica perdida. Ou se segue indefinidamente com as injeções de capital externo, ou o processo entra em stop and go. O radicalismo foi a tentativa de consenso por agregação de interesses depredados pela política de Menem/Cavallo, mas as bases internas da acumulação já não foram suficientes.
A enorme disposição nas bases sociais cujos limites são fluidos, as igrejas e a ainda poderosa Igreja Católica, ONGs cívico-republicanas, centrais sindicais de variada tendência, movimentos sociais como mesmo o MST, um sentimento difuso mas intenso de boa vontade, esse momento que Juarez Guimarães está chamando com muita felicidade de momento ético-republicano, mostra que a hegemonia pode ser construída. Mas é preciso que, como ele próprio assinala, a economia não subordine a política. Neste momento, o programa de Lula está a meio caminho entre a continuidade de FHC e o equívoco de De La Rúa. Na prudência, é continuidade; na tentativa de consenso por agregação para um desenvolvimentismo que está além da capacidade de acumulação de capital, é equívoco. O momento de indeterminação deveria fazer refletir, e pede-se uma urgente reflexão teórica. Podemos estar frente a uma nova forma de uma sociedade de controle, que nem é democracia, nem totalitarismo. O capital tem suas invenções. Veremos se esse equilíbrio precário consegue manter-se e se a iniciativa ético-republicana é capaz de desbloqueá-lo. In dubio pro reo.


Francisco de Oliveira, 68, é professor titular aposentado do departamento de sociologia da USP.

Esse texto, inédito, integra o primeiro número da revista "Margem Esquerda" (Boitempo), que será lançada no fim do mês em São Paulo.


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