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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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ELIO GASPARI

A lista de Berzoini

A divulgação, abençoada pelo Palácio do Planalto, de uma lista de 176 mil supostos devedores de R$ 65 bilhões à Previdência Social é um ato mistificador e demagógico, prenúncio do recurso a processos intimidatórios como forma de fazer política.
A lista foi divulgada pelo ministro Ricardo Berzoini com a seguinte chancela: "Esses são os que temos certeza que devem". Falso. Esses são os que o INSS e o doutor Berzoini acham que devem. Acreditar que empresas como o Bradesco, o Itaú e a Sadia ou partidos como o PT sejam caloteiros da Previdência, como a Transbrasil, a construtora Encol e a massa falida da Editora Bloch é pretender igualar gente séria com usinas de maracutaias. Se um cidadão contesta na Justiça uma cobrança que lhe faz o INSS, o ministro da Previdência não pode qualificá-lo como devedor. A menos que não se importe em prejudicar-lhe a reputação e o crédito.
O doutor Berzoini apresentou sua lista como se fosse uma novidade. Falso. Seus antecessores vazavam regularmente essa lista, que aliás vem sendo grosseiramente vazada pela burocracia previdenciária há quatro semanas. Faz parte do anedotário nacional uma lista que o ministério divulgou em 1997. Era encabeçada pela empresa Cotia & Hoch de Papéis, com um débito de R$ 308 milhões. Tratava-se uma pequena fábrica de papel higiênico das cercanias de Sorocaba, com 150 empregados. Devia R$ 3,4 milhões e tudo se resumiu a um erro de digitação dos comissários de Brasília.
A Lista de Berzoini desdenha o direito dos cidadãos de recorrerem à Justiça. Até aí, nada demais, porque a choldra está aí para pagar sem reclamar. Berzoini pegou seu próprio partido e também o ministro do Desenvolvimento, Luis Fernando Furlan, um dos donos da Sadia, empresa de alimentos que dá serviço a 33 mil pessoas em 12 fábricas, faturou R$ 5 bilhões em 2002 e paga R$ 7 milhões mensais ao INSS.
A Lista do ministro acusa uma extinta subsidiária da Sadia de dever R$ 22.281. Nas últimas semanas, listas apócrifas davam a Sadia como devedora de R$ 71 milhões. Ela admite muito mais que isso. Seu contencioso administrativo e judicial com o INSS é de de R$ 126 milhões. (Há 40 dias a empresa ganhou um pleito administrativo de R$ 38 milhões). A maior parte desse ervanário relaciona-se com uma pendenga tributária que envolve frangos e pintos. O Supremo Tribunal Federal já julgou caso e deu razão à empresa, mas para o INSS cada pinto é um caso a parte.
O processo usado por Berzoini intimida os empresários sérios e faz rir à bandidagem. Para uma comandita de salteadores como a da Encol, o melhor negócio do mundo é sair numa lista de devedores ao lado do Itaú
De três uma:
1) O doutor Furlan, ministro do Desenvolvimento, é um caloteiro, como diz a lista do ministro da Previdência. Não pode continuar no ministério.
2) A lista de Berzoini é uma leviandade de comissários interessados em mostrar que são capazes de tudo. Ele não pode continuar ministro.
3) Tanto faz.

O governor do Edifício-Sede

Madame Natasha tem horror a música e promiscuidade idiomática. Ela concedeu mais uma de sua bolsas de estudo ao doutor Henrique Meirelles, presidente do Banco Central do Brasil. Ele distribui aos nativos um cartão de visitas onde se qualifica como "governor" da instituição.
Se Meirelles estivesse em Boston, onde viveu alguns anos, presidindo um banco que se finou, tudo bem. No Brasil, onde participa de um governo hegemônica e majoritariamente monoglota, corre o risco de ser convidado para uma reunião de governadores na Granja do Torto.
Meirelles produziu o cartão do banqueiro doido. Ao mesmo tempo em que informa ser "governor", diz que o BC tem "Edifício-Sede". Os monoglotas americanos serão capazes de acreditar que "Edifício-Sede" é algum personagem da história brasileira.

A epidemia que o Brasil esqueceu

Saiu um livro que fazia falta. É "A Gripe Espanhola em São Paulo, 1918", do professor Cláudio Bertolli Filho, da Universidade Estadual Paulista. Em menos de um ano a gripe matou mais de 20 milhões de pessoas, 1,5% da população mundial. Nenhuma doença liquidou tanta gente em tão pouco tempo. As estatísticas oficiais dizem que morreram 35 mil brasileiros, 12,3 mil no Rio e outros 12,3 mil no Estado de São Paulo, 5.500 na Capital. O defunto ilustre da epidemia foi o presidente eleito Rodrigues Alves.
Até esse trabalho de Bertolli existiam apenas memórias e monografias sobre a Espanhola no Brasil. Quando a gripe chegou, São Paulo era uma cidade de 500 mil habitantes (25% do número de desempregados que nela vivem hoje). Orgulhava-se de ter condições sanitárias superiores a Berlim, Madri e Amsterdã, mas é possível que isso fosse uma das muitas lorotas sociais da época. A avenida Paulista fora inaugurada em 1891 e, nada mais europeu: no inverno de 1918 a temperatura caiu a três graus negativos.
O trabalho do professor é um estudo acadêmico, com as agruras e virtudes do gênero. Ele mostra como falharam os médicos e os administradores, produzindo uma cidade pestilenta e deserta, onde congestionavam-se cemitérios. Empilhavam-se caixões numa mesma cova (como se faz hoje na periferia, sem epidemia alguma).
A ação desastrosa do prefeito Washington Luiz, zelando por um orçamento cuja prioridade ia para o pagamento dos juros da dívida externa da cidade. Seu primeiro ato relacionado com a gripe aconteceu dez dias depois dela ter chegado à cidade. Ele tratava a epidemia como se fosse um episódio de menor relevância. Quem sabe, era receio de afetar a imagem que tinha de seu governo. Foi esse o critério da ditadura militar, em 1974, quando tentou controlar uma epidemia de meningite restringindo o noticiário a seu respeito.
Bertolli desmonta o mito da "epidemia democrática" que atacava as pessoas sem levar em conta a classe social a que pertenciam. O índice de mortes nos bairros abastados fica na metade dos bairros pobres. Uma vez terminada a epidemia, ela foi varrida da história da cidade. Quando Washington Luis assumiu o governo do Estado, não mencionou o episódio.

Faoro

Cinco episódios deixados por Raymundo Faoro, um cidadão inflexível enriquecido por um senso de humor rápido como a luz.

1) Resposta de Faoro a um general que lhe ofereceu números de telefones especiais, para a eventualidade de ele sofrer alguma ameaça. (Militares desordeiros tinham sequestrado o bispo de Nova Iguaçu abandonando-o despido e pintado de vermelho numa beira de estrada):
"General, a minha segurança pessoal é um problema do aparelho de segurança do Estado. Não acho certo aceitar o privilégio de telefones especiais".

2) Em 1978, o banqueiro José de Magalhães Pinto, dono do Banco Nacional e candidato a presidente da República, mandou-lhe um emissário, convidando-o para a vice. Sua resposta:
"Da República, não quero. O que eu aceito é ser vice-presidente do banco dele".

3) A um curioso que lhe contou ter achado os dois volumes de "Os Donos do Poder" na seção de parapsicologia de uma livraria:
"Talvez esse seja o lugar certo".

4) A uma secretária que lhe perguntou qual o tratamento que gostaria de receber:
"Chame-me de Vossa Majestade".

5) A um político que lhe perguntou se aceitaria algum cargo no governo federal:
"Quero ser embaixador em Haia, desde que a função se torne vitalícia e hereditária".

Aviso amigo

Diverte-se bastante o usuário do computador do palácio do Planalto que conseguiu uma lista de todas as remessas de dólares de parlamentares feitas pela linha das contas CC5.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota, desde 1971 segue os ensinamentos do companheiro José Genoino e a cada 15 anos é informado (pelo companheiro) que fez bobagem. O idiota acha que o presidente do PT deveria radicalizar o expurgo dos radicais e a divulgação das obras do governo. Acredita que o deputado deve pedir a Duda Mendonça uma campanha publicitária mostrando o alcance social das duas primeiras obras físicas da administração federal. Ela são:
1) O projeto de churrasqueira do Alvorada, com traço de Oscar Niemeyer, vanguarda do Fome Chique.
2) A iluminação do campinho de peladas da Granja do Torto, vanguarda do projeto Treva Zero.

ENTREVISTA

Azuete Fogaça

(60 anos, professora de sociologia da educação da Universidade Federal de Juiz de Fora.)

- Como a senhora avalia os primeiros cinco meses de governo de Lula nas áreas de educação e saúde?
- Não avalio. Além do equívoco do presidente, que anunciou como prioridade do seu governo na área de educação a alfabetização de adultos, nada de sério foi dito e nada de importante está sendo feito. Na saúde, tivemos o horrível recuo da propaganda de cigarros e, novamente, nada de relevante começou a ser feito. Com todas as suas prepotências, em cinco meses o primeiro governo tucano já tinha as bases do Provão, dos parâmetros curriculares e, sobretudo, da orientação dos recursos do Fundef. O presidente fala em dar grande prioridade à alfabetização de adultos quando o que há na nossa rede pública de ensino é um processo de analfabetização das crianças.

- O que é isso?
- Uma situação na qual o garoto vai ao colégio e chega ao fim da quarta série, com dez anos, sem saber ler, analfabeto. Na rede pública, 30% dos meninos e meninas da quarta série não sabem ler. Isso compromete o todo o desempenho desses estudantes. Eles não aprendem matemática porque não entendem os problemas. Esses números são velhos e públicos. Além disso temos uma panela queimando no fogo: é a crise da educação básica, onde estão 50 milhões de pessoas. Eu não gosto da expressão porque soa demagógica, mas é lá que mora o futuro do Brasil. Uma pesquisa feita em Minas Gerais, junto a 600 mil estudantes da rede pública, sugere que a capacidade de apreensão do jovem brasileiro está abaixo do padrão pedagógico razoável. O PT herdou um quadro inflado na quantidade de alunos e defeituoso na qualidade do ensino. Temos turmas de 45 alunos numa sala, professores mal capacitados e escolas mal equipadas. Isso o PT sempre soube e duvido que tenha esquecido.

- A que a senhora atribui o fato de a educação, que era uma jóia da coroa do pensamento inovador petista, estar sem projeto?
- Eu não sei. Vou lhe responder com hipóteses, quase dúvidas. Será que vamos repetir a história das gavetas da literatura? No tempo da ditadura todo mundo dizia que tinha escrito isso ou aquilo, mas a censura impedia que publicasse. Acabou a ditadura e viu-se que as gavetas estavam vazias. Será que os projetos do PT não ficam em pé? Será que seus quadros não sabem fazer o que defendiam? Sinceramente, não acredito nisso. Eu acho que o PT tem idéias, projetos e quadros. O problema pode estar em outro lugar. O governo de Lula fez opções econômicas que o obrigam a buscar ações sociais de atrito zero. Aquelas que o tornam popular nos grotões e inibem as reivindicações da classe média porque ele é popular nos grotões. Quando você fala em alfabetizar adultos e em Fome Zero, não faz atrito. Tem apelo popular, mas cheira a demagogia, populismo. Uma coisa assim: o ministro da Saúde cede na propaganda de cigarros e anuncia que vai limitar a propaganda de cerveja. Você entrega o presente e dobra a promessa para o futuro. O populismo social parece ser a contrapartida da política econômica dita global. Essa política é a que Lula precisa fazer ou é a que gosta de fazer?


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