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ENTREVISTA DE 2ª
HELIO JAGUARIBE
Para cientista político, governo ignora importância do momento e pode criar "grave desencanto" com a política
Lula administra crise na base de "remendo", diz sociólogo
Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
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O sociólogo Helio Jaguaribe em frente ao Instituto de Estudos Políticos e Sociais, no Rio de Janeiro |
UIRÁ MACHADO
COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS
A atual crise política pela qual
passa o país pode ter conseqüências extremamente positivas ou
extremamente negativas. As atitudes do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva demonstram que ele
não percebeu a gravidade da situação e parecem conduzir a nação no sentido oposto ao desejável. Sem uma reforma profunda e
um novo projeto nacional, o Brasil não terá futuro histórico.
A avaliação é do sociólogo e
cientista político Helio Jaguaribe,
82, doutor "honoris causa" pelas
Universidades de Buenos Aires
(Argentina), Mainz (Alemanha) e
Federal da Paraíba, que afirma:
"Se [a crise] for administrada na
base do remendo (...), isso pode
produzir um profundo desencanto, do qual podem surgir as conseqüências mais indesejáveis".
Para ele, caso os desdobramentos da crise sejam positivos, teremos uma reforma político-partidária e o surgimento de um novo
projeto para o país. A outra face
dessa moeda, porém, pode levar a
um grave quadro de desânimo na
opinião pública brasileira e até
mesmo ao nascimento de um governo autoritário.
Na origem da crise, o sociólogo
identifica o sistema regulador das
eleições e dos partidos, que obriga
o presidente a constituir alianças
muitas vezes espúrias. Entre as
soluções, aponta o bipartidarismo e a união entre PT e PSDB, de
um lado, e PFL e PMDB, do outro.
Fundador do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) na
década de 50 (leia texto ao lado),
Jaguaribe mantém-se fiel à idéia
de um projeto capaz de conduzir
o país a um "futuro histórico".
O sociólogo afirma que "há uma
demanda brutal" para que a nova
geração de intelectuais se engaje
"ativamente na recuperação do
país". Segundo Jaguaribe, está na
hora de surgir um "novo Iseb".
Folha - Como o senhor vê a atual
crise política?
Helio Jaguaribe - Dada a estrutura jurídica reguladora das eleições
e dos partidos, quem assume a
Presidência da República não dispõe de maioria parlamentar para
poder governar. Sem maioria, é
preciso fazer alianças, muitas vezes espúrias. Isso tem sido feito de
duas maneiras.
Uma, da qual o caso típico foi
Fernando Henrique Cardoso, é
fazer um acordo entre dois grandes partidos, cada um deles dotado de certa consistência, mas com
programas e objetivos ideológicos
completamente diferentes.
A outra, como procedeu o PT,
fazendo alianças com partidos pequenos, praticamente fisiológicos, e, ao que tudo indica, "comprando" deputados para alcançar
uma maioria fictícia. Esse escândalo terrível que estamos vivendo
vem mostrando que o PT está
profundamente comprometido
com a prática de atos ilícitos.
Isso demonstra a necessidade
de que se reconstitua o sistema
partidário brasileiro, bem como o
sistema regulador das eleições.
Folha - Qual é a mudança que o
senhor imagina?
Jaguaribe - É preciso existir condições para a formação, dentro de
cada legislatura, de uma maioria
parlamentar estável e responsável, com programa único.
Primeiro, precisamos adotar o
voto distrital misto. Segundo, o financiamento de campanha tem
que ser exclusivamente público,
com a criminalização de doações
feitas de outra forma. Terceiro,
deve haver fidelidade partidária.
E, finalmente, em cada legislatura, formado o Parlamento, dá-se
um prazo de alguns dias para que,
se não houver um partido com
maioria, se constitua uma coligação partidária majoritária que
adote o mesmo programa com liderança única, de modo que funcione quase como um partido.
Folha - E quanto aos partidos?
Jaguaribe - O Brasil está com
uma situação partidária completamente inviável. Os dois partidos
que são os mais importantes e que
estão hoje em luta acerba, o PT e o
PSDB, são partidos que têm a
mesma ideologia, o mesmo programa. É uma disputa sem sentido, por cargos e lideranças. Não é
uma disputa programática. A vida pública não pode ser feita em
torno de disputas de lideranças,
mas sim em torno de disputas de
projetos nacionais.
Folha - Os dois partidos são
iguais?
Jaguaribe - São quase iguais. O
PT, na sua composição, é um
pouco mais esquerdista. Mas o PT
já não é mais um partido revolucionário. Os dois partidos são de
orientação social-democrata.
Folha - Eles deveriam se unir?
Jaguaribe - Deveriam formar,
pelo menos, uma
coalizão. A reorganização partidária que poderia
emergir dessa
enorme crise em
que estamos mergulhados deveria
conduzir à formação de uma aliança entre o PSDB e
o PT.
Do outro lado,
em vez de o PFL
ser aliado do
PSDB, o que é
uma coisa esdrúxula, deveria formar uma coalização de centro-direita. E, para isso, deveria incorporar os bons elementos do
PMDB. Teríamos uma posição
social-democrata, no primeiro
caso, e uma posição neoliberal, no
segundo.
Folha - Isso que o senhor está propondo é um bipartidarismo?
Jaguaribe - Um bipartidarismo.
É preciso acabar com o partido
anão. As pessoas acham que isso
acaba com as posições minoritárias. Ora, essas posições têm maneiras de entrar nos partidos como correntes.
Folha - O sr. atribui ao sistema
eleitoral e partidário a "culpa" por
essa crise. Isso não é tirar das pessoas a responsabilidade pela suposta corrupção?
Jaguaribe - Sempre que nos deparamos com um ato ilícito, temos que fazer uma distinção entre a responsabilidade individual
e as circunstâncias.
Nenhuma circunstância, enquanto pura circunstância, leva
ao crime. A prática
do crime é uma decisão individual de renúncia pessoal a uma
norma ética.
Mesmo dentro desse sistema absolutamente inadequado,
que decorre dessa legislação de má qualidade, não é necessário que as pessoas
usem a via do crime.
Folha - Apesar da crise, a popularidade do
Lula parece continuar
alta. Por quê?
Jaguaribe - Porque
há duas coisas que
precisariam ser postas em jogo. Do lado do povo, há
uma tendência de fazer uma distinção entre o presidente e o governo. Algo como: "Embora o
presidente seja bom, o governo é
ruim".
Do lado do presidente, bem, Lula é uma das pessoas mais extraordinárias que já ocuparam a
Presidência da República. A combinação de autenticidade com inteligência faz com que ele tenha
uma imagem espetacular.
Folha - Mas isso se mantém?
Jaguaribe - Não creio que por
muito tempo. Se Lula der a essa
crise um encaminhamento medíocre, ele acabará pagando o preço da falta de apropriada grandeza no trato da matéria.
Folha - Essa crise pode levar a
uma reforma política, como o sr.
disse. Mas essa crise não pode gerar um clima de desencanto?
Jaguaribe - Eu acho essa sua inquietação absolutamente legítima
e procedente. Essa crise pode ter,
simplificando as alternativas,
uma saída extremamente positiva
e uma extremamente negativa.
Se for administrada na base do
remendo, ela vai produzir um
grave desânimo na opinião pública brasileira. Diante de uma crise
dessas, uma pequena mudança de
ministros, como se isso tivesse alguma significação... Ora, isso não
leva a nada. Isso pode produzir
um profundo desencanto, do qual
podem surgir as conseqüências
mais indesejáveis.
Porém, se houver, como resultado da crise, uma reforma adequada, por um lado, e, por outro,
uma reestruturação do sistema
partidário, aí terá valido a crise.
Folha - Caminhamos para isso?
Jaguaribe - Devo dizer que, infelizmente, sobretudo pela atitude
do presidente Lula, não dá a impressão de que a coisa caminha
para o lado mais importante. Tira
fulano, põe ciclano... Dá a impressão de que as coisas não são tão
graves, que são erros individuais.
É uma coisa extremamente grave,
que tem que ser objeto de uma revisão profunda. E infelizmente ele
não está vendo as coisas assim.
Folha - A hipótese de um governo
totalitário assumir para "tomar
conta" da situação é plausível?
Jaguaribe - Não, é uma possibilidade extremamente remota. Agora, autoritário, aí sim. É possível
uma proposta autoritária do tipo
da do Chávez. E isso é um perigo
enorme que o país corre.
Folha - Há chance de aparecer
com força uma proposta de enxugamento do Estado a partir de uma
possível percepção de que o Estado
abriga a corrupção?
Jaguaribe - Certamente. Esse tipo de coisa tende a acontecer acoplado a uma liderança autoritária.
Dentro da sua hipótese, vejo dois
riscos. Primeiro, esse risco neoliberal de uma figura que, em nome
da má aplicação dos impostos,
queira reduzir a carga tributária
de maneira exagerada e jogar tudo em cima do mercado.
Por outro lado, o que me causa
muita apreensão é o seguinte. Na
medida em que as grandes metrópoles brasileiras estão submetidas
a formas incontroláveis de criminalidade e violência, isso está
criando uma situação de falta de
segurança que pode gerar uma
reação na direção do que chamaria de um fascismo policial. Isso é
um perigo muito grande.
Folha - Ou seja, na esfera social, o
fascismo policial, mas na esfera
econômica, o enxugamento do Estado. É animador?
Jaguaribe - Nada. É pegar o primeiro boi e sair do Brasil. A coisa
é muito séria. O sistema político
atual não está dotado de personalidades dotadas de capacidade de
enfrentar esses problemas ligados
à ordem pública.
Folha - O sr. diz que o país precisa
de um projeto. A quem compete
elaborá-lo?
Jaguaribe - O projeto nacional
pode ter duas origens. Ou surge
dos políticos capazes, ou surge de
setores da intelectualidade que estejam preocupados com o país.
Mas, nesse caso, o
projeto deixa de
ser um exercício
da inteligência
para ser algo dotado de significação política na
medida em que é
incorporado por
um partido político.
Na década de
50, o Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros)
formulou um
projeto nacional-desenvolvimentista. Esse projeto foi assumido
pelo segundo governo Vargas e
por Juscelino Kubitschek. Então,
deixou de ser uma proposta de intelectuais e passou a ser um projeto real que mudou o Brasil.
Nós estamos precisando disso,
de uma nova formulação que coloque o Brasil dentro dos países
que têm futuro histórico. Como
estamos andando, não temos a
menor condição de ter futuro histórico. Esse crescimento de 2% ou
3% é igual a ficar parado.
E precisamos conduzir uma integração sul-americana e uma
aliança entre Brasil e Argentina.
Se nós não fizermos a integração
sul-americana, o Brasil não tem
capacidade isoladamente de resistir às pressões internacionais.
Folha - Onde estão os intelectuais
para pensar esse projeto?
Jaguaribe - Eles sofreram uma
dispersão bastante séria com o
golpe de 64. Na vida universitária,
houve um retorno à vida intelectual. Mas ainda falta que essa gente se dirija para a coisa pública. O
que está faltando é o intelectual
orgânico, o homem com competência acadêmica que a utiliza para um projeto público.
Folha - O Iseb representou o engajamento do intelectual na vida
política e social do país. O sr. não
sente falta disso, hoje em dia?
Jaguaribe - Estamos precisando
de um novo Iseb. Claramente. Está na hora dos homens que estão
nos seus 30 anos se engajarem ativamente na recuperação do país.
Folha - Há espaço para isso?
Jaguaribe - Mais que espaço, há
uma demanda brutal.
Folha - O que o senhor acha que
um "novo Iseb" deveria propor?
Jaguaribe - O "novo Iseb" deveria ter uma preocupação em duas
vertentes. De um lado, a vertente
política-pública. Nada se pode fazer no Brasil se não se consertar o
nosso sistema político. Nada.
Na outra vertente... A idéia do
nacional-desenvolvimentismo
respondia a um momento histórico em que o processo de globalização não tinha atingido as proporções que atingiu hoje e, por essa razão, um país como o Brasil tinha viabilidade isolada. Eu não
creio que, nesse momento, nós
possamos dizer que
temos viabilidade
histórica isolada.
A minha proposta
seria substituir o nacional-desenvolvimentismo pelo regional-desenvolvimentismo. Quem tem capacidade histórica é a
América do Sul. Ela
pode ser convertida
num grande interlocutor internacional, e
o Brasil pode liderar.
Há, ainda, exigências que não existiam,
que são a necessidade
de uma profunda
consciência ecológica
e uma profunda
consciência social.
Mas, para conseguir levar isso adiante, é fundamental fazer uma aliança com a Argentina.
Folha - Mas então as perspectivas
não são muito animadoras...
Jaguaribe - São mais do que parecem. O presidente da Argentina
atua em dois campos. No estratégico, concorda com a aliança. No
teatral, para o público interno, se
comporta como temos visto. Mas
isso é um problema psicológico
que se resolve com terapia.
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