São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

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NO PLANALTO

FHC fez um bom governo medíocre

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Quatro anos depois de ter vendido a tese de que a felicidade do país dependia de sua reeleição, FHC paga a conta da longevidade no poder. Passou a temer pelo que o futuro dirá dele quando puder se pronunciar.
Se for inevitável que diga que ajudou a afundar o aliado Serra, quer ao menos que lhe renda homenagens pela elegância no trato com os adversários, especialmente Ciro e Lula.
Tanto melhor se colar o palanfrório de que, no ano da graça de 2002, esteve mais preocupado em garantir um prefácio suave para o sucessor do que em evitar um epílogo acerbo para si próprio.
Ao convidar os presidenciáveis para a conversa desta segunda-feira, FHC pôs o verbete da enciclopédia acima da conjuntura eleitoral. Por seu gosto, protelaria a transição, fazendo-a na hora própria, depois do segundo turno.
Dói-lhe fundo na alma o reconhecimento, implícito no convite, da hipótese de vitória da oposição. Aparecerá no programa televisivo de Serra nesta semana. Poderia continuar simulando a crença no vigor eleitoral do candidato. Mas a possibilidade de um ocaso turbulento, com as finanças em chamas, fez tremer sua autoconfiança.
A ruína do real compromete, aos 44 minutos do segundo tempo, um título que FHC imaginava estar no papo. O título de presidente da estabilidade econômica. Daí o esforço para entregar ao deus mercado mais uma oferenda: a sujeição dos candidatos, sobretudo de Ciro, aos termos do acordo com o FMI.
FHC deve arrancar dos presidenciáveis o compromisso de honrar o acordo, tão indesejável quanto inevitável. Só um tolo dispensaria os US$ 24 bilhões de desembolsos previstos para 2003, primeiro ano da nova administração.
Não se deve esperar, porém, por capitulações ao gosto do mercado, escoimadas de floreios retóricos. As pesquisas mostram que, até aqui, a crítica ao modelo FHC vem rendendo votos. Renunciar a ela soaria a suicídio eleitoral.
Aos olhos do eleitorado, a história do governo FHC não é mais do que uma ponte ligando o sucesso ao "por outro lado". Com um abismo no meio.
Ele manteve a inflação baixa. Por outro lado, permitiu que a arapuca do populismo cambial envenenasse o ambiente econômico.
Saneou o sistema bancário. Por outro lado, proporcionou lucros indecentes à banca.
Forçou o aumento dos índices de produtividade da indústria nacional, expondo-a à concorrência externa. Por outro lado, gerou desemprego e estagnação econômica.
Introduziu na cena política o conceito de responsabilidade fiscal. Por outro lado, produziu uma mastodôntica divida pública.
Manteve a rota de inserção do Brasil no mundo globalizado. Por outro lado, provocou uma extraordinária dependência do país ao capital estrangeiro.
Obteve recordes de arrecadação de tributos. Por outro lado, desdenhou pragmaticamente da necessária reforma tributária.
Estimulou a ação de Ruth Cardoso à frente do meritório programa Comunidade Solidária. Por outro lado, manteve intocada a perversa distribuição de renda.
Privatizou à larga. Por outro lado, não se tem notícia de um palito de fósforos que tenha sido produzido com o dinheiro da venda dos bens da viúva.
Representou o país com galhardia nos fóruns internacionais. Por outro lado, fez pouco caso de plagas natais.
Conservou abertas para o Brasil as portas de organismos financeiros internacionais. Por outro lado, submeteu o interesse nacional a sufocantes metas de desempenho orçamentário.
Premido pelas circunstâncias, instituiu um ambicioso programa de combate à violência urbana. Por outro lado, permitiu que a iniciativa se perdesse nos desvãos da engrenagem pública.
Distribuiu terras à farta. Por outro lado, esquivou-se de proporcionar infra-estrutura aos assentados.
Governou com maioria no Congresso. Por outro lado, entregou-se à fisiologia com volúpia inaudita.
Confiou o núcleo do governo a pessoas honradas como Pedro Malan, Pedro Parente, Paulo Renato e outros. Por outro lado, entregou os fundões da administração pública a jáderes e padilhas.
Não se meteu em imoralidades. Por outro lado, enterrou vários escândalos vivos.
Não roubou. Por outro lado, permitiu que roubassem.
FHC realizou, como se vê, um bom governo. Tão bom que, decorridos oito anos, angaria nas pesquisas índices de aprovação em torno de 20%, 25%. Por outro lado, fez um governo medíocre. O que justifica a ira dos cerca de 80% de brasileiros que desejam mudanças.


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