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São Paulo, segunda-feira, 18 de agosto de 2003

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ESQUERDA NO DIVÃ

Para Immanuel Wallerstein, EUA não farão concessões necessárias para a Área de Livre Comércio das Américas

Conflitos deverão barrar Alca, diz cientista

Eduardo Knapp - 4.fev.2002/Folha Imagem
Immanuel Wallerstein, da Universidade Yale, que é um dos maiores ícones da esquerda mundial


MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Só é possível julgar um governo com base em seus atos e em suas políticas. No que se refere ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva, uma coisa é certa: ainda é muito cedo para julgá-lo. Talvez isso seja factível dentro de um ano.
A análise é do cientista social americano Immanuel Wallerstein, nascido em 1930, que é um dos maiores ícones da esquerda mundial, professor da Universidade Yale (EUA) e autor de, entre dezenas de publicações, "The Decline of American Power: The U.S. in a Chaotic World" (o declínio do poder americano: os EUA num mundo caótico) e de "Geopolitics and Geoculture" (geopolítica e geocultura).
Para Wallerstein, o sucesso ou o fracasso de Lula é diretamente atrelado a suas ações na esfera internacional, não na interna. Assim, ainda de acordo com o cientista social, o aspecto mais importante da atual administração brasileira é a evolução do Mercosul.
O cientista não acredita que um Mercosul fortalecido e a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) possam coexistir sem problemas. Ele não crê que a Alca se torne realidade, já que o Congresso dos EUA não deverá aceitar as concessões necessárias para a aprovação pelos outros países.
"Já foi muito complexo obter a aprovação do Nafta [Acordo de Livre Comércio da América do Norte], e as concessões só envolviam o México, visto que as economias canadense e americana já eram bastante integradas", diz.
Wallerstein estará no Brasil nesta semana, participando do seminário internacional "Hegemonia e Contra-Hegemonia: os Impasses da Globalização e os Processos de Regionalização", patrocinado pela Reggen (cátedra e rede Unesco/Universidade das Nações Unidas sobre economia global e desenvolvimento sustentável), que ocorrerá no Rio de Janeiro.
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
 
Folha - O governo Lula vem sendo acusado de executar políticas que não condizem com seu passado de esquerda. O sr. acredita que a estrutura econômico-financeira da cena internacional atual não permita a adoção de verdadeiras políticas de esquerda?
Immanuel Wallerstein -
Inicialmente, gostaria de dizer que não me sinto totalmente à vontade para analisar o governo Lula, já que não conheço muito bem suas políticas. Vou ao Brasil também para ter um melhor conhecimento do governo brasileiro atual. Mas creio que a situação do PT, no Brasil, seja comparável à do Congresso Nacional Africano [de Nelson Mandela], na África do Sul.
Quando chegaram ao poder, ambos os partidos eram uma expressão de movimentos populares e tinham a incumbência de transformar a situação político-social nacional. Uma vez no poder, ambos descobriram que eram obrigados a fazer uma série de acordos para poder governar. Ambos foram bastante criticados por intelectuais de esquerda por ter feito esses acordos e por não ter transformado a situação de seus países rapidamente.
Ambos os partidos contam com o apoio de movimentos populares não-governamentais. Na África do Sul, esse apoio vem sobretudo dos movimentos sindicais. No Brasil, apesar de alguns problemas no campo, o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] me parece bem menos impaciente do que sua questão deixa transparecer. O MST sabe que ainda resta muita coisa a fazer, porém parece estar disposto a dar mais tempo ao governo.
Por outro lado, é verdade que há inúmeras limitações relacionadas ao que qualquer governo pode fazer, em qualquer país do mundo. Isso é um fato irrefutável, contudo não tem muito a ver com os mercados, mas com a essência do poder e com as limitações inerentes ao exercício do poder. Todavia isso não significa que os governos não possam fazer nada.
Temos de julgar qualquer governo por seus atos e por suas políticas. Alguns são bem-sucedidos, outros fazem uma péssima gestão. No que concerne ao governo Lula, uma coisa é certa: ainda é muito cedo para julgá-lo. Talvez possamos fazê-lo daqui a um ano, mas ainda não seria justo julgá-lo agora. Para determinar o sucesso ou o fracasso de Lula no que se refere ao sistema-mundo, deveremos olhar para suas ações na área externa, não na interna.
Creio que a evolução do Mercosul seja o principal ponto que deveremos analisar. Se conseguir fortalecer o Mercosul e transformá-lo numa entidade econômica bem-sucedida, ele terá um imenso impacto no sistema-mundo e na economia-mundo. Trata-se do aspecto mais importante da atual administração brasileira. Certamente, o novo governo argentino o apoiará. Assim, tudo dependerá da disposição de Lula para colocar-se contra uma oposição americana razoavelmente forte.

Folha - Sim, mas, se observarmos o exemplo da União Européia [UE], veremos que os países mais abastados acabaram pagando a conta da integração, que foi responsável pela diminuição da distância entre os mais ricos e os mais pobres. Ora, no caso do Mercosul, caberia ao Brasil bancar essa integração, porém o país não tem dinheiro para fazê-lo corretamente. Como é possível ultrapassar esse obstáculo?
Wallerstein -
É verdade que, na Europa, houve uma certa redistribuição de dinheiro feita pela UE. No entanto os padrões de vida em Portugal e na Grécia continuam bem mais baixos que na Alemanha e na França, mesmo depois das transferências de fundos. E ainda não sabemos que tipos de transferência serão feitos aos novos membros da UE, que são do Leste Europeu e menos ricos.
É óbvio que o Brasil não tem tanto dinheiro quanto a Alemanha. Contudo provavelmente também seja verdade que a distância entre o Brasil e o Paraguai não é tão importante quanto a existente entre a Alemanha e os países mais pobres da UE.
Não sei exatamente o que deverá ser feito nem o que poderá ser feito a curto prazo. No entanto sei que algo deverá ser feito nesse sentido. O Brasil é um país razoavelmente forte no sistema-mundo e tem uma economia vibrante, podendo ter um papel de liderança na região do Mercosul.

Folha - Como a Alca se insere nesse contexto?
Wallerstein -
Como qualquer tipo de acordo econômico, a Alca será boa para alguns e ruim para outros. Contudo não falo aqui de Estados, mas de grupos econômicos dentro dos países que negociam esses acordos. Porém, em termos gerais, a Alca é uma medida de força dos EUA. O Mercosul é outro tipo de estrutura. Ambos são fadados a entrar em conflito, pois não são compatíveis entre si.
Ademais, os EUA são contrários ao Mercosul e buscam forçar o advento da Alca. Entretanto é pouco provável politicamente que as negociações da Alca sejam bem-sucedidas, apesar de sua criação ser uma parte importante da política externa dos EUA. Não creio que os americanos estejam preparados para fazer as concessões necessárias, como liberalizar o comércio de suco de laranja, de produtos têxteis ou de aço, para conseguir a aprovação da Alca.
Questões internas americanas dificultarão muito sua aprovação, já que grupos bastante sólidos serão contrários às concessões. Afinal, elas os atingirão em cheio. Será difícil para qualquer administração dos EUA conseguir apoio do Congresso a uma iniciativa como a Alca. Já foi muito complexo aprovar o Nafta, e as concessões só envolviam o México, visto que as economias canadense e americana já eram bastante integradas.

Folha - Em seus livros, o sr. diz que os EUA estão em declínio. Como o sr. detectou esse fenômeno?
Wallerstein -
O poder americano conheceu um importante declínio nos últimos 30 anos por causa do enfraquecimento de sua economia no que diz respeito à sua posição no sistema-mundo e por conta de sua incapacidade em sustentar sua atitude militarista na cena internacional, pois isso é economicamente insustentável a longo prazo. O problema é que os falcões da atual administração dos EUA admitem que o país está em declínio, mas pensam que, para restabelecer a hegemonia americana, é necessária uma posição militarista quase machista.
A Guerra do Iraque nada mais é do que parte desse esforço para intimidar o mundo todo. Com essa atitude, os falcões da atual administração esperam provocar dois fenômenos. Primeiro, que os europeus desistam de pensar de forma independente, permanecendo na influência americana. Segundo, que os países em desenvolvimento renunciem à proliferação de armas nucleares. Não acredito que essas coisas venham a ocorrer.
A proliferação nuclear continuará a existir e atingirá vários pontos do planeta, chegando ao leste da Ásia. Talvez até o Brasil e a Argentina tentem dotar-se dessa tecnologia. Isso não ocorrerá por causa da política externa dos EUA, mas porque esses países crêem precisar proteger-se de alguma forma de perigos cada vez mais difusos.
Com o tempo, por causa da posição hegemônico-militarista americana, os europeus se distanciarão dos EUA, que, na verdade, já são bem menos fortes do que pensam ser. E o restante do planeta também perceberá que superestimou a potência americana.



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