São Paulo, Quarta-feira, 18 de Agosto de 1999
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ELIO GASPARI
Lula e o xaveco do coronel Chávez

Numa entrevista ao jornal argentino "La Nación", Luiz Inácio Lula da Silva disse que considera "fantástico" o que o coronel Hugo Chávez está fazendo na Venezuela. A notícia da conversão de Lula ao chavismo, uma modalidade do xaveco golpista latino-americano, é curta. Falta-lhe a elaboração necessária para se compreender direito o que ele viu de fantástico na Venezuela.
Com as informações disponíveis, seria injusto dizer que Lula aderiu ao golpismo de Chávez, mas já há dados suficientes para suspeitar de que um pedaço da esquerda brasileira está namorando o golpismo eleitoral.
Levado à Presidência da República por maioria de votos, o coronel Chávez conseguiu fazer pela via legal o que não conseguira em 1992, pelo caminho do golpe militar. Empossado, convocou eleições gerais para a formação de uma Constituinte. Venceu-as e hoje dispõe dos poderes que o Senado romano dava aos ditadores. Esmagou o Congresso, encurralou o Judiciário e desestruturou o Executivo. Governa a Venezuela como quer e já disse que pretende governá-la por seis anos e mais seis.
Pelo lado da solucionática, o coronel Chávez mobilizou as Forças Armadas, levou ex-guerrilheiros para o governo e entregou o Ministério das Relações Exteriores à veneranda figura de José Vicente Rangel, o candidato da esquerda em três eleições presidenciais. Lançou brigadas de atendimento às populações carentes, defenestrou corruptos e começou a administrar o país com um grau inédito de decisão e audácia.
Pelo lado da problemática, o coronel Chávez deu um golpe. Usou a vitória eleitoral para destruir as instituições. O que caracteriza um golpe não é apenas a maneira como se obtém o poder, mas o que se faz com as instituições depois que se chega ao palácio. Dois exemplos, opostos:
1) em 1974, os militares portugueses deram um golpe, acabaram com quase 50 anos de ditadura salazarista e, depois de uma confusão danada, restabeleceram as instituições democráticas;
2) o presidente peruano Alberto Fujimori, eleito pelo povo, golpeou as instituições e obteve na reeleição, pelo voto, a legitimação do golpismo.
O golpe do coronel Chávez ainda está fresco e, como os bebês, é bonitinho. Encana larápios, desmoraliza senadores, socorre os pobres e ergue altares patrióticos. Ainda é um baby-golpe, mas já lhe permitiu eleger a mulher para a Constituinte e colocar um irmão num governo estadual. Antes de proclamar a nova ordem, o coronel já se dissociara, nos foros internacionais, das moções que condenavam as violações de direitos humanos em Cuba, na China e no Irã.
O coronel Chávez vai ficar por aí por bastante tempo. É o caso de economizar a paciência alheia, voltando ao problema do namoro da esquerda brasileira com o xaveco. Esse é atroz.
O golpismo não é prerrogativa da direita nacional. A esquerda tem, a qualquer hora, um naco golpista. Se acaba golpeada, o problema está na sua inépcia como golpista, não numa eventual ingenuidade democrática. A revolta de 1935 foi uma tentativa de golpe militar. Em 1945, o Partido Comunista flertava com o golpe continuísta de Getúlio Vargas. Em 1964, toda a esquerda (e não só os comunistas) apoiava um eventual golpe de João Goulart.
Finalmente, o pessoal que estava naquilo que se denomina "luta armada" contra a ditadura militar não assaltava bancos e sequestrava diplomatas apenas para acabar com a ditadura, mas também para implantar um regime comunista, sem qualquer concessão eleitoral à choldra de quem supunha ser a vanguarda.
Foi de tanto apanhar que essa esquerda converteu-se à democracia. (A direita converteu-se depois de ter quebrado o país, se é que se converteu.) O xaveco venezuelano cai como uma luva para os golpistas do novo milênio. Ao contrário do peruano Fujimori, Chávez teve os seus poderes ampliados por delegação popular. Isso não faz diferença alguma.
Fernando Collor de Mello, nos 30 dias de euforia de seu plano econômico, poderia ter ido buscar num plebiscito os poderes que desejasse. No seu primeiro ano de mandato, FFH poderia ter tentado um golpe semelhante. Jamais aceitou proposições destinadas a encurralar o Congresso. Pode-se ter dos dois a opinião que se queira, mas ninguém lhes pode negar o respeito às instituições democráticas.
A sedução que Chávez começa a exercer sobre a esquerda é até atraente. Forma-se uma coligação, elege-se um candidato e, como o coronel, ele usa a vitória eleitoral como alavanca para um golpe desestruturador das instituições. Que instituições? Uma Câmara na qual se deu assento a um coronel que cortava seus inimigos em pedaços (com motosserra). Um Judiciário que não conseguiu rever as contas do juiz Laulau. Um Executivo que vendeu o patrimônio da Viúva à privataria e gastou o dinheiro pagando juros aos gatos gordos da banca internacional.
Basta imaginar quantos votos terá um candidato capaz de anunciar que convocará uma reunião com todos os comandantes das privatizações e os ex-diretores do Banco Central que hoje trabalham para a banca. Reunida a turma, jogará querosene, acenderá um fósforo e irá distribuir remédios na periferia.
O caminho golpista não serve à esquerda por duas razões. Primeiro, porque os golpes não funcionam. Acabam em embustes, ladroagens e irracionalismos. Às vezes podem até ser populares.
Ninguém se incomodou quando o marechal Costa e Silva baixou o Ato Institucional nº 5 e afogou o país na ditadura. Teve até uma certa popularidade. Junto com a suspensão do habeas corpus, mandou para a cadeia meia dúzia de banqueiros (de bicho). Obrigou todos os restaurantes do país a colocarem em seus cardápios um prato feito que se chamava Sunabão e custava algo como R$ 3. Como ninguém comia habeas corpus, pensou-se que comeria Sunabão, mas ele durou menos de seis meses, enquanto o AI-5 duraria dez anos.
Em 1977, o general Ernesto Geisel baixou o Pacote de Abril. Destinava-se a preservar o controle dos governos estaduais e a maioria do governo no Congresso, bem como a lhe dar margem de manobra para revogar, mais tarde, o AI-5. Dourou a pílula estendendo as férias dos trabalhadores brasileiros para 30 dias. Depois do pacote sua popularidade subiu.
Lula acha "fantástico" o xaveco venezuelano. Tudo bem. Há um provérbio da malandragem napolitana que diz o seguinte:
- Seja honesto, nem que seja por esperteza.
Seria o caso de dizer aos enamorados de Chávez:
- Sejam democratas, nem que seja por esperteza, porque isso que o coronel está fazendo na Venezuela é tudo o que a direita brasileira gostaria de fingir que vai fazer no Brasil.


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