São Paulo, Quarta-feira, 18 de Agosto de 1999
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JANIO DE FREITAS
A pretexto da droga

A conclamação do governo americano para que o Brasil se junte logo ao "socorro militar" à Colômbia não pode ser vista de modo linear e direto. É preciso considerar, neste caso e sempre, que os Estados Unidos não têm diplomacia, propriamente, tamanhas são sua carência de sofisticação e o ímpeto vocacional para o uso da força física (elemento maior na construção da nacionalidade nos Estados Unidos).
São excessivamente óbvias e repentinas, para que mereçam ser acreditadas, as ofensivas de propaganda sobre o drama da Colômbia e pela participação do Brasil, com outros latino-americanos, no "socorro militar" aos "amigos colombianos" que lutam com os "narcoguerrilheiros". O problema colombiano é verdadeiro, mas o governo americano tem outros e maiores motivos para usá-lo na criação de um clima tenso.
Wall Street não simboliza os Estados Unidos apenas pelo poder financeiro ali instalado. Cocaína colombiana pode ser comprada, abertamente, nas calçadas de Wall Street, simbolizando o que se passa em todos os Estados Unidos. O que só acontece, é claro, por consentimento geral. A cocaína da Colômbia, ou de qualquer parte, só pode ser uma perturbação para a vida americana (supondo-se que alguma autoridade local pense assim) porque as redes de distribuição de tóxicos nos Estados Unidos não são perturbadas. O mundo sabe que o grosso do lucro é investido pelo narcotráfico, com toda a razão, nos Estados Unidos.
O governo dos Estados Unidos e seus estrategistas têm dois problemas para sua concepção geopolítica de hegemonia, tão bem conhecida há tantas décadas. Um clima de conturbação na Colômbia, intensa o bastante para ser real ou fingidamente reconhecida no Ocidente, encaminha a solução para os dois problemas.
Por um tratado que Omar Torrijos arrancou do governo americano em 77, os Estados Unidos têm que cessar a ocupação da zona do canal do Panamá e permitir sua reincorporação ao território panamenho de fato e de direito, até as 12h de 31 de dezembro deste ano. Está cada vez mais claro, porém, que a concepção geopolítica, na qual a posse da zona do canal e sua base militar tem lugar de realce, está prevalecendo sobre o tratado. As restrições à devolução já extravasam os gabinetes de governo, sobem as tribunas do Congresso e até chegam a cuidadosas referências de imprensa.
Rasgar o tratado não exigiria escrúpulos difíceis no poder americano. Mas o barulho desse gesto não se limitaria ao som do papel. Além das reações de opinião pública, inclusive e talvez sobretudo nos Estados Unidos, haveria o risco de reações populares complicadas no Panamá, onde a morte de Torrijos, em inexplicado desastre aéreo, não aplacou a obsessão de recuperar o território na zona do canal.
A Colômbia está ali junto do Panamá, logo abaixo. Localização ideal para ver-se no papel de ameaça à função estratégica e comercial do canal, ameaça que se engrandece com a fantasia de guerrilheiros e traficantes assumindo o controle total da Colômbia e abrindo, aí, as portas sul e centro-americanas para os chineses. Estes, já muito citados, nas últimas semanas, a propósito de seus negócios no e com o Panamá.
Ao lado da mesma Colômbia está o outro problema. Chama-se Hugo Chávez e, com o propósito de transformar o seu país em República Bolivariana da Venezuela, é visto pelo governo e por grande parte da imprensa americana como uma possível sugestão de políticas latino-americanas refratárias às influências de Washington.


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