São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

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NO PLANALTO

Bancos privados são racistas, acusa Ministério Público

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

A humanidade só foi igualitária no oco das cavernas. Coberto de pêlos, o proto-homem via no vizinho de rochedo um primata assemelhado. Mas a evolução produziu o autodenominado homo sapiens, um macaco pelado que, metido a inteligente, tornou-se indefeso de si mesmo.
Na era moderna, a primeira vítima do ocaso do humanismo foi a tese da integração racial. Nos EUA, o furacão Katrina fez boiar a África desassistida que estava metida no fundo de um mar de boas intenções. Na Europa, o trabalho escasso e a xenofobia sufocaram o cosmopolitismo social-democrata. Quanto mais escuro, menos bem-vindo é o imigrante.
No Brasil, o descaso social do ex-PT consolidou a idéia da exclusão inevitável. Quem comete o descuido genético de nascer preto e pobre está condenado a sobrar. Incomodado com o antidarwinismo que infelicita a turba, o Ministério Público do Trabalho decidiu agir.
Três procuradores, à frente o vice-procurador-geral do Trabalho Otavio Brito Lopes, forçam as portas das mais vistosas casas bancárias do país. Acusam Bradesco, Itaú, Unibanco, HSBC e ABN-Anro de "discriminar pretos e pardos". Em ações judiciais protocoladas na última terça-feira, pedem que sejam condenados a pagar indenização de R$ 150 milhões (R$ 30 milhões para cada réu) por supostos danos morais à coletividade. Mais multa diária de R$ 500 mil (R$ 100 mil por banco) até que a "discriminação" seja revertida. Restritas a Brasília, as ações serão estendidas a outros Estados.
Os procuradores declararam guerra à banca munidos de uma arma inusitada: a estatística. Cruzando dados do IBGE com informações internas dos bancos, concluíram o seguinte: o percentual de "pretos e pardos" que a banca emprega em Brasília -15,1% no Bradesco; 23,2% no Itaú; 23,7% no HSBC; 25% no ABN-Anro; e 10,1% no Unibanco- não condiz com a presença de nativos de pele escura na população economicamente ativa do Distrito Federal: 54%.
O argumento dos procuradores é frágil. Estão comparando alhos com bugalhos. A estatística que utilizaram inclui todo tipo de trabalhador, de camelôs semi-alfabetizados a financistas pós-graduados. Nem todos estão, obviamente, aptos a trabalhar em bancos.
Curiosamente, o Banco do Brasil está ausente da lista do Ministério Público. Alegou-se que, diferentemente dos concorrentes privados, o bancão oficial contrata funcionários por meio de concursos públicos. Com dois telefonemas, o repórter descobriu o seguinte:
1) o Banco do Brasil emprega 87.176 pessoas, das quais 3.622 se negaram a declarar a própria cor;
2) entre os demais, 1.609 declararam-se pretos, 13.075 pardos e 353 indígenas. Tudo somado, dá 17,25%. O que faria do Banco do Brasil, segundo os critérios do Ministério Público, uma instituição quase tão racista quanto o Bradesco (15,1%) e bem mais preconceituosa que o Itaú (23,2%), o HSBC (23,7%) e o ABN-Anro (25%). Só ganharia do Unibanco (10,1%);
No esforço para demonstrar a tese da discriminação de raça e de gênero no sistema bancário privado, os procuradores ainda sustentam em suas petições que, uma vez empregados, pretos, pardos e mulheres recebem salários inferiores aos dos bancários brancos. De resto, seriam preteridos no preenchimento de cargos de chefia dos bancos.
O diabo é que a brancura funcional não é um fenômeno exclusivo dos bancos. Está presente em todos os setores. Experimente-se, por exemplo, contar o número de procuradores negros nos quadros do Ministério Público. Tente-se quantificar os juízes negros. Nas novelas, os negros não enchem os dedos de uma mão. Nas redações de jornal, não passam de uma dezena. Não haveria tribunal capaz de julgar tantas culpas.
Ouvidos pelos procuradores, os bancos alegaram que a escassez de negros nas suas folhas de pagamento não decorre de discriminação, mas de problemas sociais pelos quais não se julgam responsáveis. Responderam a uma acusação débil com uma meia-verdade.
Se não servem para transformar agências bancárias em senzalas, os números do IBGE mostram o retrato de uma tragédia social que passa, sim, pela casa-grande da alta finança. A encrenca é tonificada pela perenização de uma política que produz juros gordos e crescimento magro numa ponta e lucros exorbitantes na outra.
Cevados pelos juros de Antonio Palocci, os 15 maiores bancos brasileiros lucraram, no primeiro semestre de 2005, R$ 12,606 bilhões. Um resultado 34% mais expressivo do que os R$ 9,401 bilhões apurados no mesmo período de 2004. Sob Lula, o rendimento médio real do trabalhador cresceu 1,1%.
Por vezes, a pessoa que planta a tempestade no governo é a mesma que colhe bonança do outro lado do balcão. Tome-se, por eloqüente, o caso do Unibanco. No passado, dois de seus ex-dirigentes, Walter Moreira Salles e Marcílio Marques Moreira, foram também ministros da Fazenda. No presente, seu conselho de administração é presidido pelo cara pálida Pedro Malan, morubixaba da pasta da Fazenda durante a era FHC.
O vaivém marca também o histórico do Banco Central. A instituição foi presidida, entre outros, por Pérsio Arida (ex-sócio do Banco Oportunitty e atual conselheiro do Itaú), André Lara Resende (ex-sócio do Banco Matrix) e Armínio Fraga (ex-homem de ouro do megaespeculador George Soros e dono de uma empresa de investimentos). Hoje, é comandada por Henrique Meirelles (ex-presidente mundial do BankBoston).
No Brasil, sempre que alguém fala em roubo a banco, é preciso perguntar se de fora para dentro ou de dentro para fora. Parece óbvio que a desativação da bomba social passa pela destruição de uma rede de privilégios que permitem que o rentismo obsceno prevaleça sobre a produção. Mas isso não é coisa que se resolva com meia dúzia de ações judiciais.
(As petições do Ministério Público contra os bancos estão disponíveis, na íntegra, no seguinte endereço eletrônico: www.folha.com.br/052582)


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