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NO PLANALTO
Bancos privados são racistas, acusa Ministério Público
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
A humanidade só foi igualitária
no oco das cavernas. Coberto de
pêlos, o proto-homem via no vizinho de rochedo um primata assemelhado. Mas a evolução produziu o autodenominado homo sapiens, um macaco pelado que,
metido a inteligente, tornou-se
indefeso de si mesmo.
Na era moderna, a primeira vítima do ocaso do humanismo foi a
tese da integração racial. Nos
EUA, o furacão Katrina fez boiar a
África desassistida que estava metida no fundo de um mar de boas
intenções. Na Europa, o trabalho
escasso e a xenofobia sufocaram o
cosmopolitismo social-democrata. Quanto mais escuro, menos
bem-vindo é o imigrante.
No Brasil, o descaso social do
ex-PT consolidou a idéia da exclusão inevitável. Quem comete o
descuido genético de nascer preto
e pobre está condenado a sobrar.
Incomodado com o antidarwinismo que infelicita a turba, o Ministério Público do Trabalho decidiu
agir.
Três procuradores, à frente o vice-procurador-geral do Trabalho
Otavio Brito Lopes, forçam as
portas das mais vistosas casas
bancárias do país. Acusam Bradesco, Itaú, Unibanco, HSBC e
ABN-Anro de "discriminar pretos e pardos". Em ações judiciais
protocoladas na última terça-feira, pedem que sejam condenados
a pagar indenização de R$ 150 milhões (R$ 30 milhões para cada
réu) por supostos danos morais à
coletividade. Mais multa diária de
R$ 500 mil (R$ 100 mil por banco)
até que a "discriminação" seja revertida. Restritas a Brasília, as
ações serão estendidas a outros
Estados.
Os procuradores declararam
guerra à banca munidos de uma
arma inusitada: a estatística. Cruzando dados do IBGE com informações internas dos bancos, concluíram o seguinte: o percentual
de "pretos e pardos" que a banca
emprega em Brasília -15,1% no
Bradesco; 23,2% no Itaú; 23,7%
no HSBC; 25% no ABN-Anro; e
10,1% no Unibanco- não condiz
com a presença de nativos de pele
escura na população economicamente ativa do Distrito Federal:
54%.
O argumento dos procuradores
é frágil. Estão comparando alhos
com bugalhos. A estatística que
utilizaram inclui todo tipo de trabalhador, de camelôs semi-alfabetizados a financistas pós-graduados. Nem todos estão, obviamente, aptos a trabalhar em bancos.
Curiosamente, o Banco do Brasil está ausente da lista do Ministério Público. Alegou-se que, diferentemente dos concorrentes privados, o bancão oficial contrata
funcionários por meio de concursos públicos. Com dois telefonemas, o repórter descobriu o seguinte:
1) o Banco do Brasil emprega
87.176 pessoas, das quais 3.622 se
negaram a declarar a própria cor;
2) entre os demais, 1.609 declararam-se pretos, 13.075 pardos e
353 indígenas. Tudo somado, dá
17,25%. O que faria do Banco do
Brasil, segundo os critérios do Ministério Público, uma instituição
quase tão racista quanto o Bradesco (15,1%) e bem mais preconceituosa que o Itaú (23,2%), o
HSBC (23,7%) e o ABN-Anro
(25%). Só ganharia do Unibanco
(10,1%);
No esforço para demonstrar a
tese da discriminação de raça e de
gênero no sistema bancário privado, os procuradores ainda sustentam em suas petições que, uma
vez empregados, pretos, pardos e
mulheres recebem salários inferiores aos dos bancários brancos.
De resto, seriam preteridos no
preenchimento de cargos de chefia dos bancos.
O diabo é que a brancura funcional não é um fenômeno exclusivo dos bancos. Está presente em
todos os setores. Experimente-se,
por exemplo, contar o número de
procuradores negros nos quadros
do Ministério Público. Tente-se
quantificar os juízes negros. Nas
novelas, os negros não enchem os
dedos de uma mão. Nas redações
de jornal, não passam de uma dezena. Não haveria tribunal capaz
de julgar tantas culpas.
Ouvidos pelos procuradores, os
bancos alegaram que a escassez
de negros nas suas folhas de pagamento não decorre de discriminação, mas de problemas sociais
pelos quais não se julgam responsáveis. Responderam a uma
acusação débil com uma meia-verdade.
Se não servem para transformar
agências bancárias em senzalas,
os números do IBGE mostram o
retrato de uma tragédia social que
passa, sim, pela casa-grande da alta finança. A encrenca é tonificada
pela perenização de uma política
que produz juros gordos e crescimento magro numa ponta e lucros exorbitantes na outra.
Cevados pelos juros de Antonio
Palocci, os 15 maiores bancos brasileiros lucraram, no primeiro semestre de 2005, R$ 12,606 bilhões.
Um resultado 34% mais expressivo do que os R$ 9,401 bilhões apurados no mesmo período de 2004.
Sob Lula, o rendimento médio
real do trabalhador cresceu 1,1%.
Por vezes, a pessoa que planta a
tempestade no governo é a mesma que colhe bonança do outro
lado do balcão. Tome-se, por eloqüente, o caso do Unibanco. No
passado, dois de seus ex-dirigentes, Walter Moreira Salles e Marcílio Marques Moreira, foram
também ministros da Fazenda.
No presente, seu conselho de administração é presidido pelo cara
pálida Pedro Malan, morubixaba
da pasta da Fazenda durante a era
FHC.
O vaivém marca também o histórico do Banco Central. A instituição foi presidida, entre outros,
por Pérsio Arida (ex-sócio do
Banco Oportunitty e atual conselheiro do Itaú), André Lara Resende (ex-sócio do Banco Matrix)
e Armínio Fraga (ex-homem de
ouro do megaespeculador George
Soros e dono de uma empresa de
investimentos). Hoje, é comandada por Henrique Meirelles
(ex-presidente mundial do BankBoston).
No Brasil, sempre que alguém
fala em roubo a banco, é preciso
perguntar se de fora para dentro
ou de dentro para fora. Parece óbvio que a desativação da bomba
social passa pela destruição de
uma rede de privilégios que permitem que o rentismo obsceno
prevaleça sobre a produção. Mas
isso não é coisa que se resolva
com meia dúzia de ações judiciais.
(As petições do Ministério Público contra os bancos estão
disponíveis, na íntegra, no
seguinte endereço eletrônico:
www.folha.com.br/052582)
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