São Paulo, segunda-feira, 18 de outubro de 2004

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EDUARDO CAMPOS

Campos diz que razão é estratégica, pois processo de enriquecimento de urânio é mais barato que o dos EUA

Ministro nega acesso visual de inspetores às centrífugas

Ana Carolina Fernandes - 9.jan.2004/Folha Imagem
As usinas nucleares Angra 1 (ao fundo) e Angra 2; a meta do governo é fazer o país enriquecer 100% do urânio consumido por elas


MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Às vésperas da visita de inspetores da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) à fábrica de enriquecimento de urânio em Resende (Rio de Janeiro), marcada para amanhã, o ministro Eduardo Campos (Ciência e Tecnologia) insiste em negar acesso visual às centrífugas.
O ministro alega que elas são mais econômicas que as centrífugas americanas, daí ser um segredo a ser protegido.
"Aquela tecnologia, que custou muito, não será de forma alguma devassada", disse ele à Folha na última sexta-feira, por telefone.
Eduardo Campos avalia que o programa nuclear brasileiro vive um bom momento.
A meta do governo, de acordo com ele, é fazer o país enriquecer 100% do urânio consumido pelas duas usinas nucleares já construídas -Angra 1 e Angra 2. O destino de Angra 3 segue indefinido até o final do ano.
A meta não cabe no mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é para mais cinco anos, adianta o ministro. A fábrica de Resende, depois que entrar em funcionamento, poderá enriquecer 60% do combustível dessas usinas, serviço feito hoje fora do país.
Embora negue planos de o Brasil exportar urânio enriquecido nos próximos anos, Eduardo Campos atribui à entrada do país no seleto mercado de produtores do combustível a polêmica sobre o alcance das vistorias.
"Conquistar posições contraria forças e é natural que essas forças apostem num processo de desinformação", afirma.
 

Folha - O modelo da vistoria está definido ou ainda é objeto de discussão até terça-feira?
Eduardo Campos -
Tudo o que envolve o processo de salvaguarda está praticamente discutido. Em setembro, fizemos a proposta por escrito, eu fui a Viena e lá definimos os princípios que iriam reger essa visita. A gente quer a salvaguarda da AIEA, quer facilitar o trabalho deles, mas queremos uma forma alternativa, que não seja nem a proposta anterior nossa nem a proposta de uma visualização total. Por isso chegamos a um ponto de equilíbrio.
A agência cumpre sua obrigação, tem total segurança de que está inspecionando de forma correta e nós temos segurança também de que aquela tecnologia, que custou muito, não será de forma nenhuma devassada.

Folha - O que o governo admite que os inspetores inspecionem e por quê?
Campos -
Eles já fazem o controle físico do urânio, fizeram uma inspeção quando construímos o piso, que mostra que não há nenhum tipo de vazamento nem tubulações para desvio do material. Nós apresentamos uma proposta para que eles tenham acesso visual a toda a tubulação.
A forma física da centrífuga e a maneira pela qual ela se apóia é que não consideramos necessário visualizar. Se o piso foi inspecionado, se o controle do que entra e do que sai é contabilizado e se terão agora controle permanente das tubulações, imaginamos que estamos bem próximos de um acordo final.

Folha - O que estamos preservando exatamente?
Campos -
Uma tecnologia própria, nacional. Ela faz com que esse processo de enriquecimento de urânio seja extremamente eficiente porque economiza muita energia. Esse conjunto de centrífugas, da forma como se apóia e está disposto, o formato dele, faz com que o gasto de energia seja 25 vezes menor do que o das centrífugas que os americanos desenvolveram depois de investir US$ 3 bilhões.

Folha -E quanto nós investimos?
Campos -
No programa todo, as centrífugas, o submarino a propulsão nuclear, US$ 1 bilhão. O programa todo, exceto as usinas de Angra 1 e Angra 2.

Folha - E são muito fortes até aqui as pressões da AIEA para ampliar as inspeções?
Campos -
A agência tem buscado o diálogo sempre, nunca houve nenhum tipo de problema, a relação é extremamente positiva. Tanto que ao longo deste ano recebemos 90 técnicos enviados pela agência para capacitação. Se nós não contássemos com o respeito da agência, não seríamos escolhidos para treinar esse pessoal.

Folha - O Brasil pretende assinar o protocolo adicional ao TNP (Tratado de Não-Proliferação Nuclear), que permitiria à agência ampliar as vistorias no país?
Campos -
A posição do Brasil tem sido historicamente a seguinte: nós assinamos o TNP e cumprimos integralmente o que está no tratado. Existe uma conferência marcada para 2005 de avaliação do tratado. Nós achamos que será a hora correta de tomar uma posição.

Folha - Como avalia as notícias de que o país quer limitar o trabalho da agência? Deu no "Washington Post" em abril.
Campos -
Tem muita notícia equivocada, sobretudo na imprensa internacional. Esse é um mercado importante: 17% da energia do mundo tem fonte nuclear, e essa fonte tende a crescer na matriz energética.
Então há a possibilidade de o Brasil entrar num mercado extremamente seleto, de poucos países. Conquistar essas posições contraria forças, e é natural que essas forças apostem num processo de desinformação.
O Brasil tem todas as suas unidades do programa inspecionadas pela agência. Não há uma só unidade que não seja inspecionada. Somos um dos poucos países em que até unidades militares são inspecionadas pela agência. Somos sócios-fundadores da agência, temos uma história de muito respeito, e o clima tem sido de muita cordialidade.

Folha - Quando o sr. diz que o Brasil está entrando num mercado seleto, é o da produção e venda de urânio enriquecido no mercado externo?
Campos -
Ainda não, porque não temos sequer o suficiente para abastecer Angra 1 e Angra 2. Esse conjunto de centrífugas que estamos fazendo em escala industrial responderá por 60% da demanda de Angra 1 e Angra 2. Não temos como falar neste momento em exportação de urânio bruto porque o Brasil não exporta o produto. Sobre o urânio enriquecido, queremos chegar primeiro à auto-suficiência, o que ainda não alcançaremos com essa unidade.
Agora, é óbvio que, depois de desenvolver a auto-suficiência, nós podemos avaliar a possibilidade de entrar no mercado de exportação, mas essa é uma decisão futura. O projeto na verdade tem um viés inicial que é pegar a nossa tecnologia, aplicar em escala industrial e retirar a dependência que nós temos da importação desse serviços [de enriquecimento], que nos custam cerca de US$ 11 milhões por ano. O urânio é nosso, duas etapas nós já fazemos aqui -a mineração e as pastilhas-, as duas que nós não temos nos custam esse valor.

Folha - Contam que essa tecnologia contou com importação clandestina de equipamentos e outras fórmulas menos ortodoxas. É lenda?
Campos -
O programa nuclear como um todo tem 50 anos, mas a tecnologia de centrifugação tem 20 anos. Nunca objetivamente ninguém de responsabilidade aspeou essas declarações, não há nenhuma comprovação disso. Na verdade, são desenvolvimentos feitos a partir do esforço de técnicos da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) e do pessoal da Marinha. Isso é mais onda.

Folha - Como o sr. definiria o estado do programa nuclear, ele vive um processo de paralisia?
Campos -
Ele viveu um período de grande aceleração até os anos 80, depois entrou num processo de muito constrangimento de recursos e vive agora um momento de retomada, diante de uma nova conjuntura, de priorização por parte do governo. Ele vive um momento bom hoje.

Folha - De que forma o governo materializa essa prioridade?
Campos -
A geração de energia é uma prioridade no mundo inteiro, sobretudo num país que viveu um processo de apagão. A matriz energética no mundo inteiro vai sofrer uma grande mudança: os motores a combustão tendem a sair de cena pelo esgotamento das fontes fósseis de combustível, o mundo está investindo na retomada de programas nucleares, em energia alternativa, energia solar, eólica.

Folha - O sr. já previu que seriam necessários investimentos de US$ 1,5 bilhão para concluir o programa. Esse dinheiro vai sair?
Campos -
Veja bem, um programa como esse não é um programa de um governo, para concluir em dois anos ou em seis, se o presidente Lula for reeleito. É um programa que tem um longo curso.

Folha - Quais são as metas até o final do mandato do presidente Lula?
Campos -
A meta é nos aproximarmos da auto-suficiência no fornecimento de combustíveis para as duas usinas. A próxima etapa é ter 100%, mas essa não concluiremos até 2006.
Até lá, a meta é 60% do urânio enriquecido consumido pelas usinas. Depois, num horizonte de mais dois ou três anos, o Brasil teria 100% do seu fornecimento do combustível.

Folha - E Angra 3 e o submarino a propulsão nuclear?
Campos -
Até o final do ano, a ministra Dilma Rousseff [Minas e Energia] apresenta o relatório do grupo que ela criou envolvendo um conjunto de ministérios, Ciência e Tecnologia, Defesa.
Até o final do ano, o governo vai se pronunciar em relação à Angra 3. E o projeto do submarino está andando.

Folha - O contribuinte brasileiro já tem um retorno visível do que o Estado investiu no programa nuclear?
Campos -
Eu acho que o programa nuclear tem baixo conhecimento da sociedade sobre sua importância, como o espacial. São programas concebidos em outro momento político e institucional no país, passaram por muito tempo com grande viés militar. A questão nuclear, pelas razões sabidas, sempre foi mais ligada ao uso bélico no mundo todo. Mas hoje está ligada à medicina, por exemplo. Não fossem esses investimentos, não estaríamos preparados para apoiar o agronegócio com irradiação -outro exemplo.
O conhecimento nuclear é estratégico, as pessoas às vezes não percebem. Sem contar a geração de energia. A energia nuclear responde por 4,5% da energia consumida no Brasil, um número extremamente significativo. A tecnologia usada para a propulsão do submarino poderá ser apropriada para outros geradores, até mesmo para a área de energia, ela tem a sua valia, além de o país poder dispor de um submarino, feito aqui para as tarefas da Marinha, mais barato que os velhos submarinos que nós temos.

Folha - Essa tecnologia fortalece as chances de o Brasil de disputar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU?
Campos -
Não existe essa relação direta. Acho que isso é uma ilação. Nossa preocupação é tecnológica, ter a tecnologia para gerar energia e ter suporte do programa nuclear para atividades econômicas. As razões são claramente econômicas.


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