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"A mídia me condenou"
DA REDAÇÃO
Leia a íntegra da carta enviada pelo ex-ministro da Casa Civil José Dirceu em carta enviada a 512 deputados que irão julgar a sua cassação.
"Exmo. deputado,
No momento em que se aproxima o desfecho de meu processo disciplinar, dirijo-me aos
colegas para prestar alguns esclarecimentos.
Há 150 dias, estou no centro das atenções da
opinião pública sob a acusação de ter organizado e coordenado um esquema de corrupção
para favorecer parlamentares e partidos que
apóiam o governo Lula.
Todos nesta Casa sabem que um político,
quando acusado, mesmo injustamente, perde
totalmente as garantias e direitos fundamentais que as constituições democráticas estabelecem de forma a defender todos os cidadãos e
cidadãs de injustiças promovidas em nome da
coletividade. O ônus da prova passa do acusador ao acusado, em uma inversão de valores só
admitida no mundo político e nos regimes de
exceção.
A denúncia contra um político é como epidemia contagiosa. Feito o cordão de isolamento, quem não provar a condição de saudável
está irreversivelmente condenado à segregação. A atividade política, na maior parte do
mundo, é vista com repugnância e desprezo
por boa parte da sociedade. É considerada um
mal necessário, por uns, e até desnecessária,
por outros.
Políticos que acumulam poder e reconhecimento social acumulam, também, ressentimentos, incompreensões, mágoas e ódios despertados pelos mais diversos motivos. Audiências negadas, telefonemas não retornados,
convites recusados, a falta de um sorriso ou de
um cumprimento, uma pendência não resolvida, o atraso em um compromisso, o esquecimento de um nome ou de uma referência, uma
resposta atravessada, um pleito não atendido e
outros tantos desentendimentos ou decepções. Difícil quem não tenha motivos para desgostar de alguém com poder. Mesmo que só o
faça na solidão de sua consciência.
Por mais justas que sejam as reclamações,
muitas vezes os ressentimentos sedimentados
contra as pessoas que acumulam poder decorrem da incompreensão ou desconhecimento
do acúmulo de pressões, problemas, conflitos
e responsabilidades que pesam sobre os ombros de quem ocupa cadeiras estratégicas na
estrutura de um governo. Algumas personalidades conseguem resolver melhor esses conflitos, outras, não.
Embora esses sentimentos estejam subjacentes ao meu processo, reconheço que existem razões objetivas para que minha passagem pelo governo seja minuciosamente investigada por todas as instâncias republicanas.
Faço questão que todos os casos em que haja
qualquer suspeita sobre minha participação
em atos ilícitos sejam apurados com rigor, independência e isenção. Tanto no âmbito do
Poder Executivo (Polícia Federal, Controladoria Geral da União, Conselho de Ética Pública
ou comissões de sindicância), como no do Poder Legislativo (Comissões Parlamentares de
Inquérito) e do Poder Judiciário.
Tenho a consciência tranqüila e estou seguro de que nada fiz de ilegal ou ilícito. Cheguei a
ter dúvidas sobre minha responsabilidade involuntária em alguns dos fatos mencionados.
Será que nos 30 meses em que chefiei a Casa
Civil, trocando 25 telefonemas e participando
de oito a dez reuniões e audiências por dia,
com centenas de empresários, políticos e personalidades públicas do país não teria tido nenhum deslize que pudesse ser compreendido
como falta de ética ou atitude indecorosa?
Reconstituindo minha agenda e rememorando tudo que fiz no governo, concluí que
não tenho do que me envergonhar ou temer.
Depois de cinco meses sendo diariamente
massacrado na mídia, com minha vida e das
pessoas que me rodeiam sendo devassada, minha história tragada pela enxurrada da desmoralização, não se levantou uma voz, um cidadão, um empresário, um político, uma personalidade da sociedade civil para denunciar ao
país qualquer conversa enviesada, antiética ou
imoral que tenha tido durante minha passagem pela Casa Civil.
O único que me acusou foi desqualificado
pela própria Câmara dos Deputados, que lhe
cassou o mandato. Não apresentou prova alguma e até retirou a representação contra mim
por falta de consistência. Todas as demais referências apontadas como atentatórias ao decoro parlamentar foram constituídas com base
em suposições, ilações e interpretações decorrentes de uma falsa imagem construída a meu
respeito, que se propagou sem que eu percebesse sua relevância.
A conseqüência disso é que, por mais inconsistentes que sejam as supostas evidências
contra mim, os formadores de opinião não
aceitam os argumentos que sustento. Todos
querem que eu assuma algo que não fiz só porque acreditam que eu controlava tudo no governo, no PT e no país, e nada poderia acontecer sem que eu soubesse ou comandasse.
A mídia me julgou e condenou no dia em
que um deputado corrupto resolveu se vingar
por eu ter negado qualquer proteção para livrá-lo do processo que viria. Muitos congressistas sabem do que estou falando. Chamo a
atenção porque isso pode acontecer com qualquer um de nós a qualquer momento. Quando
a mídia escolhe alguém para crucificar, justa
ou injustamente, não há reputação que resista
incólume.
Todos sabem que a pressão da mídia é o
combustível do Congresso. O prejulgamento
da opinião publicada aterroriza os homens públicos. Tudo que confirma a sentença previamente estabelecida merece destaque e grande
repercussão. Tudo que contesta a construção
dessa falsa realidade é ignorado ou desqualificado. É dessa maneira que figuras anônimas e
inexpressivas viram celebridades da noite para
o dia. Essa é a lógica que transforma em párias
os defensores dos políticos marcados pela ditadura da imprensa. Até mesmo quem zela pelos direitos constitucionais dos cidadãos é tratado como conspirador, como conivente com
a impunidade.
Em um ambiente como esse, não há como
ser julgado com justiça, serenidade e isenção.
Digo isso com franqueza, sem querer ofender
colegas, especialmente os que têm a difícil tarefa de julgar publicamente seus pares. Aliás,
quem me chamou a atenção para essa realidade foi o ex-presidente desta Casa Ibsen Pinheiro, que sofreu processo semelhante.
Não bastassem minhas convicções sobre o
fato de que não deveria ser julgado no Poder
Legislativo por atos supostamente praticados
no exercício do Poder Executivo, a pressão inconseqüente da mídia sobre o Congresso já seria razão suficiente para justificar minha busca
de amparo no Poder Judiciário. Além de lutar
pelos meus direitos constitucionais para preservar o mandato a mim delegado por mais de
meio milhão de eleitores, a iniciativa terá como conseqüência a solução de uma controvérsia jurídica: um mesmo cidadão pode pertencer a dois poderes republicanos distintos, simultaneamente? Um cidadão ser julgado em
um Poder por atos praticados no exercício de
outro Poder é invasão de prerrogativas? Invade os limites da independência entre Poderes?
O Supremo Tribunal Federal vai julgar e definir essa questão. Minha iniciativa não deve
ser entendida como fuga do julgamento político ou desrespeito às instâncias correcionais da
Câmara dos Deputados. É um direito legítimo
de buscar fórum mais neutro para evitar o
atropelo dos princípios e normas jurídicas, para evitar a consumação de um fuzilamento político motivado pela necessidade de se entregar
aos adversários e ao partido da mídia uma cabeça premiada com o selo da passagem pelo
governo.
Estou seguro da minha inocência. No entanto, ao contrário do que divulgam, se a tese
que levanto for acolhida pelo Supremo, não estarei imune a eventuais processos. Qualquer
pessoa ou partido político pode me denunciar
ao Ministério Público ou ao STF, inclusive com
base nos levantamentos das CPIs. Caso entendam que tenho responsabilidade nos fatos investigados, serei julgado e poderei ser punido,
inclusive com a perda dos direitos políticos. A
diferença é que tal julgamento se daria com base em fatos concretos, e não em disputas políticas apoiadas em denúncias vazias.
Por outro lado, se o STF entender que devo
ser julgado pelo Plenário da Câmara, não rogo
condescendência nem a clemência dos colegas. Quero ser julgado com rigor, serenidade e
justiça. Só peço uma coisa: se não tiver convicção de minha culpa, não permita que eu seja
injustamente banido da vida pública do país
pela segunda vez.
Obrigado pela atenção e consideração.
Deputado José Dirceu
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