São Paulo, terça-feira, 18 de outubro de 2005

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"A mídia me condenou"

DA REDAÇÃO

Leia a íntegra da carta enviada pelo ex-ministro da Casa Civil José Dirceu em carta enviada a 512 deputados que irão julgar a sua cassação.
 
"Exmo. deputado,
No momento em que se aproxima o desfecho de meu processo disciplinar, dirijo-me aos colegas para prestar alguns esclarecimentos. Há 150 dias, estou no centro das atenções da opinião pública sob a acusação de ter organizado e coordenado um esquema de corrupção para favorecer parlamentares e partidos que apóiam o governo Lula.
Todos nesta Casa sabem que um político, quando acusado, mesmo injustamente, perde totalmente as garantias e direitos fundamentais que as constituições democráticas estabelecem de forma a defender todos os cidadãos e cidadãs de injustiças promovidas em nome da coletividade. O ônus da prova passa do acusador ao acusado, em uma inversão de valores só admitida no mundo político e nos regimes de exceção.
A denúncia contra um político é como epidemia contagiosa. Feito o cordão de isolamento, quem não provar a condição de saudável está irreversivelmente condenado à segregação. A atividade política, na maior parte do mundo, é vista com repugnância e desprezo por boa parte da sociedade. É considerada um mal necessário, por uns, e até desnecessária, por outros.
Políticos que acumulam poder e reconhecimento social acumulam, também, ressentimentos, incompreensões, mágoas e ódios despertados pelos mais diversos motivos. Audiências negadas, telefonemas não retornados, convites recusados, a falta de um sorriso ou de um cumprimento, uma pendência não resolvida, o atraso em um compromisso, o esquecimento de um nome ou de uma referência, uma resposta atravessada, um pleito não atendido e outros tantos desentendimentos ou decepções. Difícil quem não tenha motivos para desgostar de alguém com poder. Mesmo que só o faça na solidão de sua consciência.
Por mais justas que sejam as reclamações, muitas vezes os ressentimentos sedimentados contra as pessoas que acumulam poder decorrem da incompreensão ou desconhecimento do acúmulo de pressões, problemas, conflitos e responsabilidades que pesam sobre os ombros de quem ocupa cadeiras estratégicas na estrutura de um governo. Algumas personalidades conseguem resolver melhor esses conflitos, outras, não.
Embora esses sentimentos estejam subjacentes ao meu processo, reconheço que existem razões objetivas para que minha passagem pelo governo seja minuciosamente investigada por todas as instâncias republicanas. Faço questão que todos os casos em que haja qualquer suspeita sobre minha participação em atos ilícitos sejam apurados com rigor, independência e isenção. Tanto no âmbito do Poder Executivo (Polícia Federal, Controladoria Geral da União, Conselho de Ética Pública ou comissões de sindicância), como no do Poder Legislativo (Comissões Parlamentares de Inquérito) e do Poder Judiciário.
Tenho a consciência tranqüila e estou seguro de que nada fiz de ilegal ou ilícito. Cheguei a ter dúvidas sobre minha responsabilidade involuntária em alguns dos fatos mencionados. Será que nos 30 meses em que chefiei a Casa Civil, trocando 25 telefonemas e participando de oito a dez reuniões e audiências por dia, com centenas de empresários, políticos e personalidades públicas do país não teria tido nenhum deslize que pudesse ser compreendido como falta de ética ou atitude indecorosa?
Reconstituindo minha agenda e rememorando tudo que fiz no governo, concluí que não tenho do que me envergonhar ou temer. Depois de cinco meses sendo diariamente massacrado na mídia, com minha vida e das pessoas que me rodeiam sendo devassada, minha história tragada pela enxurrada da desmoralização, não se levantou uma voz, um cidadão, um empresário, um político, uma personalidade da sociedade civil para denunciar ao país qualquer conversa enviesada, antiética ou imoral que tenha tido durante minha passagem pela Casa Civil.
O único que me acusou foi desqualificado pela própria Câmara dos Deputados, que lhe cassou o mandato. Não apresentou prova alguma e até retirou a representação contra mim por falta de consistência. Todas as demais referências apontadas como atentatórias ao decoro parlamentar foram constituídas com base em suposições, ilações e interpretações decorrentes de uma falsa imagem construída a meu respeito, que se propagou sem que eu percebesse sua relevância.
A conseqüência disso é que, por mais inconsistentes que sejam as supostas evidências contra mim, os formadores de opinião não aceitam os argumentos que sustento. Todos querem que eu assuma algo que não fiz só porque acreditam que eu controlava tudo no governo, no PT e no país, e nada poderia acontecer sem que eu soubesse ou comandasse.
A mídia me julgou e condenou no dia em que um deputado corrupto resolveu se vingar por eu ter negado qualquer proteção para livrá-lo do processo que viria. Muitos congressistas sabem do que estou falando. Chamo a atenção porque isso pode acontecer com qualquer um de nós a qualquer momento. Quando a mídia escolhe alguém para crucificar, justa ou injustamente, não há reputação que resista incólume.
Todos sabem que a pressão da mídia é o combustível do Congresso. O prejulgamento da opinião publicada aterroriza os homens públicos. Tudo que confirma a sentença previamente estabelecida merece destaque e grande repercussão. Tudo que contesta a construção dessa falsa realidade é ignorado ou desqualificado. É dessa maneira que figuras anônimas e inexpressivas viram celebridades da noite para o dia. Essa é a lógica que transforma em párias os defensores dos políticos marcados pela ditadura da imprensa. Até mesmo quem zela pelos direitos constitucionais dos cidadãos é tratado como conspirador, como conivente com a impunidade.
Em um ambiente como esse, não há como ser julgado com justiça, serenidade e isenção. Digo isso com franqueza, sem querer ofender colegas, especialmente os que têm a difícil tarefa de julgar publicamente seus pares. Aliás, quem me chamou a atenção para essa realidade foi o ex-presidente desta Casa Ibsen Pinheiro, que sofreu processo semelhante.
Não bastassem minhas convicções sobre o fato de que não deveria ser julgado no Poder Legislativo por atos supostamente praticados no exercício do Poder Executivo, a pressão inconseqüente da mídia sobre o Congresso já seria razão suficiente para justificar minha busca de amparo no Poder Judiciário. Além de lutar pelos meus direitos constitucionais para preservar o mandato a mim delegado por mais de meio milhão de eleitores, a iniciativa terá como conseqüência a solução de uma controvérsia jurídica: um mesmo cidadão pode pertencer a dois poderes republicanos distintos, simultaneamente? Um cidadão ser julgado em um Poder por atos praticados no exercício de outro Poder é invasão de prerrogativas? Invade os limites da independência entre Poderes?
O Supremo Tribunal Federal vai julgar e definir essa questão. Minha iniciativa não deve ser entendida como fuga do julgamento político ou desrespeito às instâncias correcionais da Câmara dos Deputados. É um direito legítimo de buscar fórum mais neutro para evitar o atropelo dos princípios e normas jurídicas, para evitar a consumação de um fuzilamento político motivado pela necessidade de se entregar aos adversários e ao partido da mídia uma cabeça premiada com o selo da passagem pelo governo.
Estou seguro da minha inocência. No entanto, ao contrário do que divulgam, se a tese que levanto for acolhida pelo Supremo, não estarei imune a eventuais processos. Qualquer pessoa ou partido político pode me denunciar ao Ministério Público ou ao STF, inclusive com base nos levantamentos das CPIs. Caso entendam que tenho responsabilidade nos fatos investigados, serei julgado e poderei ser punido, inclusive com a perda dos direitos políticos. A diferença é que tal julgamento se daria com base em fatos concretos, e não em disputas políticas apoiadas em denúncias vazias.
Por outro lado, se o STF entender que devo ser julgado pelo Plenário da Câmara, não rogo condescendência nem a clemência dos colegas. Quero ser julgado com rigor, serenidade e justiça. Só peço uma coisa: se não tiver convicção de minha culpa, não permita que eu seja injustamente banido da vida pública do país pela segunda vez.
Obrigado pela atenção e consideração.
Deputado José Dirceu


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