São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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CRISE FEDERAL
Encarnando a figura do "cana' típico, diretor da PF sempre arriscou sua imagem ao defender colegas
Herança sindical molda ação de Chelotti

Juca Varella- 14.mar.97/Folha Imagem
O diretor da Polícia Federal, Vicente Chelotti, há 26 anos no órgão


da Sucursal de Brasília

A resistência do diretor da Polícia Federal, Vicente Chelotti, 47, em defender policiais acusados de corrupção pelo Ministério Público lembra um prosaico episódio ocorrido há 18 anos com o então aspirante a delegado Chelotti.
O ano era 1980. Chelotti, então com 30 anos, preparava-se para se tornar delegado depois de uma carreira de oito anos como agente da Polícia Federal.
Pouco antes da conclusão do curso, estourou uma crise na Academia Nacional de Polícia: um dos candidatos a delegado é flagrado em "atitude suspeita" no banheiro e é apontado como homossexual. Foi ameaçado de expulsão.
Já naquela época um líder entre seus companheiros, Chelotti compra a briga e arma um movimento de resistência para impedir a expulsão. Pressionada, a academia volta atrás e permite que o candidato "suspeito" conclua o curso.
Inconformada com o levante organizado por Chelotti, a cúpula da Polícia Federal decide não mandar à formatura representantes da direção do órgão, mas somente um delegado da CCJ (Coordenação Central Judiciária).
Dezoito anos depois, Chelotti está de novo às voltas com denúncias contra policiais -dessa vez, acusações bem mais graves. Agora, o diretor da PF contraria, mais uma vez, seus superiores hierárquicos para defender a permanência nos quadros do órgão de policiais investigados por corrupção.
A atitude de Chelotti nos dois episódios é sustentada pelo mesmo argumento: até que seja definida, em última instância judicial, a culpa de policiais próximos a ele, todos merecem a sua confiança.
Poucos dias antes de estourar a atual crise na PF, Chelotti foi avisado da campanha de "limpeza" no órgão que o Ministério Público iria fazer. Foi aconselhado a se preservar, tirando o delegado Jairo Kullmann da chefia da superintendência do órgão no Rio.
O diretor da PF não aceitou o conselho, mesmo tendo sido o responsável direto pela abertura de inquérito para investigar Kullmann e outros três delegados -dentre eles, seu próprio chefe de gabinete, Alberto Lasserre Filho- acusados de envolvimento em desvio de recursos de um convênio da PF com o INSS.
"Isso não é justo", disse Chelotti, argumentando que o inquérito ainda não havia sido concluído.
Chelotti é assim: acredita que a firmeza de suas atitudes será suficiente para protegê-lo e a seus amigos. Segundo um colega da PF, ele é "vítima de si próprio".
Essa confiança faz com que Chelotti dispense guarda-costas e faça ele próprio sua segurança com um revólver calibre 38 especial, que leva no carro.
Ele também encarna a figura do típico "cana" (gíria para policial): rude no trato, tem o pavio curto e recorre a palavrões quando a discussão fica mais acirrada.
Nos 26 anos como agente e delegado da PF, atuou em Pernambuco, no Rio Grande do Sul e no Distrito Federal em setores de combate ao narcotráfico e ao contrabando, em serviços de inteligência, na polícia fazendária e na segurança de autoridades. Três anos depois de se formar em advocacia, em 80, cuidava da segurança do presidente João Baptista Figueiredo.
Mesmo depois do início da atual crise na PF, Chelotti continuou com sua rotina. Casado, pai de dois filhos (Fabíola, 15, e Jean Carlo, 11), raramente almoça em casa, optando muitas vezes por comer sanduíche em seu gabinete.
Manteve seu horário de trabalho no prédio de vidros escuros da PF no setor de autarquias de Brasília: entra por volta de 8h20 e nunca sai antes das 20h.
Para o Palácio do Planalto, o comportamento de Chelotti na crise com o Ministério Público não demonstra que seja ligado à corrupção, mas sim que age de forma corporativista.
A certeza do governo sobre a honestidade de Chelotti é embasada em investigações feitas por serviços de inteligência das Forças Armadas, que, apesar de não serem simpáticos ao diretor da PF, não encontraram desvios na sua conduta.
Honestidade que foi avalizada pelo ministro Renan Calheiros (Justiça) em conversa com o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, autor das denúncias contra policiais federais.
Para os serviços reservados de informação dos militares, o pecado de Chelotti na atual crise na PF está no fato de continuar honrando seu passado sindicalista.
Gaúcho de Faxinal do Soturno, Chelotti tornou-se líder entre seus pares justamente por atitudes tomadas em momentos de crise.
Em 94, na pior crise na PF, quando uma greve de policiais federais acabou com a intervenção do Exército, Chelotti já era um experimentado dirigente sindical.
Naquela época, ele era dublê de presidente da Associação dos Delegados da PF e vice-presidente da Confederação dos Delegados de Polícia, posições atingidas depois de passar quatro anos à frente da Associação Nacional dos Servidores do órgão.
Na onda do sucesso da ala sindical da PF, conseguido com as conquistas salariais da categoria, Chelotti firmou-se como líder.
Em seguida, começou um "namoro" com os tucanos do PSDB.
Em 94, quando Fernando Henrique Cardoso ainda era candidato a presidente, o Chelotti era apenas um líder sindical.
Várias reuniões eram realizadas no comitê de campanha de FHC para preparar o programa de governo. O coordenador dos estudos sobre segurança era o advogado Miguel Reale Júnior, cotado à época para assumir o Ministério da Justiça em um governo tucano.
Numa dessas ocasiões, apareceu Chelotti, chamado por um amigo para uma reunião sobre reforma da Constituição.
O palestrante convidado era Nelson Jobim, gaúcho como Chelotti e amigo da família do hoje diretor da PF havia mais de 20 anos. A partir dali, Chelotti passou a frequentar assiduamente as reuniões em que Jobim estava presente.
Naquele momento, revelou-se sua habilidade política. Percebeu que seria Jobim -e não Miguel Reale Júnior- o futuro ministro.
A sorte de Chelotti veio à tona quando o já ministro da Justiça Nelson Jobim teve de escolher o novo diretor da PF.
O primeiro nome da lista era o de Aroldo Boschetti Soster. Durou menos de uma semana na função.
Soster, que dirigia a PF de Santa Catarina, perdeu a cadeira numa situação até hoje não esclarecida. Na época, atribuiu-se sua queda à suposta incompatibilidade com os policiais sindicais.
Chelotti teve a sorte de estar no lugar certo na hora certa.
Indicado para dirigir a PF em 95, Chelotti retorna à sua veia sindical. Já na cerimônia de posse, constrange o ex-diretor Wilson Romão, coronel do Exército, com um discurso inflamado contra a até então tradicional presença de militares na cúpula do órgão.
Como se ainda estivesse presidindo uma assembléia da categoria, prega que a Polícia Federal deva "ser dirigida por policial federal", arrancando longos aplausos das cerca de 500 pessoas presentes.
Três meses depois, mais uma vez honra sua vertente sindical, afastando o último militar a chefiar escritórios do órgão nos Estados
Em maio de 95, constrange mais uma vez os militares, afirmando que iria devolver equipamentos de informática comprados na gestão de Romão por falta de planejamento orçamentário.
Passada a fase do enfrentamento, Chelotti começa a colher os dividendos das reivindicações que fazia, recebendo verbas para "vitaminar" a PF e reabrindo a academia de formação de policiais.
Seu inferno astral começou em novembro de 95, quando "vazou" para a imprensa fita com gravação irregular feita por policiais federais -entre eles Paulo Chelotti, irmão do diretor- em conversas telefônicas do então chefe do cerimonial do Palácio do Planalto, Júlio César Gomes dos Santos.
A gravação revelava a disposição do diplomata em interceder no Palácio do Planalto para que a empresa norte-americana Raytheon conseguisse finalmente fechar o acordo para fornecimento de equipamentos do Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), orçado em US$ 1,4 bilhão.
Desse episódio, ficou um rumor, negado sempre por Chelotti: o "grampo" nas ligações do diplomata teria registrado uma conversa telefônica de Júlio César com o próprio FHC na qual assuntos íntimos teriam sido discutidos.
Chelotti foi a FHC, pôs seu cargo à disposição e garantiu que não tinha nenhuma gravação.
Chelotti tem sim uma gravação com o presidente, mas, em vez de conversas íntimas, elogios à figura do diretor da PF, guardada por vaidade.
(LUCAS FIGUEIREDO)


Colaboraram Fernando Rodrigues, da Sucursal de Brasília, e Raymundo Costa, do Painel, em Brasília


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