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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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JANIO DE FREITAS

Viagens reveladoras

A constatação do quanto se transferiu para a Argentina do que era esperado do governo Lula, e vice-versa, ofereceu-se plena e oficialmente onde menos convinha ao presidente brasileiro: subscrita, em documento, pelo próprio Luiz Inácio Lula da Silva.
As análises, e o propósito aparente, do documento assinado em Buenos Aires pelos presidentes Néstor Kirchner e Lula expõem o que seria a deliberação política dos dois países em defesa, contra as pressões dos Estados Unidos, dos seus interesses econômicos internacionais. Mas, sem intenção de fazê-lo, acima de tudo o Consenso de Buenos Aires documenta a contraposição dos dois governos e a diferença entre os dois presidentes.
É um despropósito, por exemplo, que Lula tenha assinado um trecho como o item 19, mas tem todo o sentido que Kirchner o fizesse, autorizado pelas atitudes do seu governo diante do FMI e demais credores da Argentina.
Diz o documento comum: "Expressamos que a administração da dívida pública deve ter como horizonte a criação de riqueza e de emprego,(...) a redução da pobreza, o fomento da educação e da saúde". É tudo o que o governo Lula não faz, com sua política de cortar gastos necessários com saúde, segurança, educação e tudo o mais, para fazer maiores pagamentos da dívida e dos juros.
Já alguns parágrafos antes, encontrava-se este trecho: "propomos impulsionar todas as ações necessárias com vistas a reduzir as elevadas taxas de desemprego que castigam nossas sociedades, gerando condições propícias para o desenvolvimento dos negócios e do investimento produtivo". De verdade aí, em relação ao Brasil, só a altitude e o castigo do desemprego. Ambos crescentes com a política econômica arrochante do governo Lula. Não é à toa que a Argentina está crescendo em torno de 8%, neste ano, e no Brasil a torcida é para que o crescimento não fique abaixo de 1%.
Como o restante do documento nada acrescenta às atitudes já óbvias dos dois países, em relação ao Mercosul e às propostas americanas de livre comércio, o texto do Consenso de Buenos Aires resulta em confissão involuntária do que o governo brasileiro sabe que deveria fazer, mas faz o oposto. A velha pregação de Lula e do PT é praticada por Kirchner.

A visitante
Por falar em Buenos Aires, a viagem de Benedita da Silva continua, nos jornais e no governo. Mas o maior problema, nesse caso, nem está no repõe ou não repõe o dinheiro público despendido em passagens e hospedagem, da ministra e sua acompanhante. Esse aspecto material é mais simples, apesar da longa relutância de Benedita da Silva, com o consequente desgaste para o governo.
Em contestação à notícia, extraída do "Diário Oficial", de que viajaria para participar de um ato religioso, Benedita da Silva afirmou que o motivo principal e oficial de sua viagem era uma reunião com a ministra de assuntos sociais argentina. Deu-se o quiproquó: Janaína Figueiredo, primorosa correspondente em Buenos Aires, logo correu ao ministério argentino, para inteirar-se do que deveria cobrir. E, ficou impresso no "Globo", a reunião com Benedita da Silva era desconhecida no ministério argentino.
Houve, no dia seguinte, o encontro das duas ministras. Nada seria mais fácil, porém, do que um ministro brasileiro, em Buenos Aires, pedir uma horinha breve a um ministro argentino e ser recebido. Em condições normais, por cortesia. No caso de Benedita, ao que tudo indica, por necessidade.
Maior do que o gasto é o problema ético do álibi de Benedita da Silva, sugerido pelo vazio na agenda da ministra argentina. Faz lembrar outra resposta que deu, quando foi descoberto que dois filhos seus, um deles menor de idade, se haviam tornado, ilegalmente, funcionários da Câmara Municipal do Rio: Benedita da Silva "nem sabia" do emprego dos filhos.

O cortador
O governo pode burlar a exigência constitucional relativa a verbas para a saúde, pelo truque de retirar-lhes mais R$ 3 bilhões a R$ 3,5 bilhões e disfarçar o vazio, contabilmente, com o deslocamento de verbas que são, por suas finalidades, de outros ministérios. Todo eleitor sabe que não é a primeira burla do governo Lula.
Mas a presunção de que estão acometidos Lula e Antonio Palocci insulta a inteligência geral, com o argumento de que verbas de saneamento e do Fome Zero também contribuem para a saúde. Melhor ainda fazem os governos que não cortam verbas da saúde para pagar juros, postos nas alturas.
Em sua intervenção no confuso caso da Receita Federal, o noticiário proveniente atribuiu a Antonio Palocci Filho esta ameaça ao secretário e ao corregedor do fisco: "Sou médico e, como cirurgião, sei cortar". Alfaiates e costureiras também sabem. E, caso se trate só de cortar na carne, açougueiros também. Todos com a vantagem de não cortam verbas de que a população precisa desesperadamente.
Cortar verbas da saúde é ir longe demais.


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