São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999 |
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NO EXTREMO DO PAÍS À margem da civilização, serra do Divisor terá virada do ano três horas após outras regiões Acre chega por último ao ano 2000
ANTÔNIO GAUDÉRIO Repórter fotográfico Os moradores do ponto mais ocidental do Brasil, a serra do Divisor, estarão entre os últimos do país a entrar no ano 2000. Para eles, a virada do ano ocorrerá três horas depois do que para a maioria da população brasileira. Mas nessa região inóspita, na divisa do Acre com o Peru, ninguém liga para calendário. No dia-a-dia da floresta, a virada do ano é um marco sem sentido. A 700 km de Rio Branco (AC), essa é uma região isolada e esquecida, onde o século 20 parece não ter chegado. Não há estradas, aeroporto, telefone, energia elétrica ou postos de saúde. A presença do Estado é praticamente nula. Há menos de um habitante por quilômetro quadrado. Os moradores, a maioria analfabeta, vivem da caça, da pesca, da agricultura de subsistência, da criação de porcos e da extração da borracha. Na rotina da floresta, matam onças, para evitar que ataquem seus porcos. E derrubam árvores centenárias, para construir suas canoas. Leia abaixo depoimentos de moradores da região -parque nacional considerado um dos mais ricos em biodiversidade do país. Orlei Matos da Silva - Aqui só
comemos carne de caça, não temos carne de boi, e os porcos são
para vender. Só matamos onça
quando ela começa a comer os
porcos. Depois que ela pega um,
nunca mais pára de voltar ao chiqueiro. Só matando. Damos para
os cachorros. Argemiro Oliveira Magalhães -
Desde menino aprendi a queimar
a mata para fazer roça para plantar mandioca. Caço paca, cotia,
anta e tudo que é bicho para comer. Mato a onça que me come os
porcos. Até hoje não sei se existe
outro jeito pra viver aqui na mata.
Mas eu queria mesmo era ser um
guarda florestal. Trabalhar aqui
guiando os gringos nas pesquisas,
cuidando da mata sem precisar
fazer roçado, nem criar porco,
nem matar bicho. Queria ganhar
um salário mínimo pra ser um fiscal da natureza. Um tempo atrás
caiu um raio lá no alto da serra, ficou bem uns 11 dias queimando.
Eu fui lá perto, olhei, não pude fazer nada, até que um dia de chuva
forte apagou. Se eu fosse uma autoridade aqui, com um rádio,
com um barco bom, eu ia atrás de
recurso. Quanto barco de caçador
já vi nesse rio? Caçando pra vender. Mas não posso fazer nada,
não sou ninguém. Deusdete Pereira de Moraes -
Eu não sei ler nem escrever, minha vida é derrubar uma árvore e
fazer um barco, aprendi com meu
tio quando era menino. Agora os
gringos não querem mais que a
gente derrube árvore. De alumínio, não sei fazer, não sei nem de
onde é que se tira alumínio. De
madeira sim, eu entendo, são
poucos os paus da mata que eu
não conheço. Tem a copaíba, que
dá um óleo que é o melhor remédio do mundo. Tem a açacu, que
dá um leite tão venenoso que, se
cai um galho dela num igarapé,
não sobra um peixe vivo, mata tudo. Tem a amesqueira, que a resina dela é um combustível violento, queima igual a gasolina. Tem o
matamatá, que é a árvore mais alta da Amazônia, solta uma cabaça
de castanha que, quando vem daquelas alturas, se pegar na cabeça
do cabra, deixa no cavaco. Se me
proibirem de fazer barco de madeira, vou com minha família pra
cidade assaltar e beber álcool. Osvaldo Pereira de Moraes -
Eu sou soldado da borracha. Vim
do Amazonas pra cá, pra tirar seringa pra fazer os pneus dos tanques de guerra dos americanos,
pra derrotar os alemães. Na época
tudo era feito com muita alegria, a
borracha valia muito dinheiro, e a
gente se embrenhava atrás dela
no meio da mata até a noite. Cansei de me perder nessa selva e aparecer sete dias depois, sem roupa. Francisco Pereira da Costa -
Como carne de qualquer bicho
que se mexa na mata, mas o que
eu mais gosto é o macaco. Ele é
muito esperto, difícil de matar,
mas o homem é o bicho mais traiçoeiro e mais covarde que existe
no mundo. Uma vez dei um tiro
num macaco barrigudo. Ele caiu,
mas continuou vivo, eu peguei
um pedaço de pau pra terminar
de matar, e ele levou as duas mãozinhas na cabeça, igualzinho a
uma criança. Outra vez dei um tiro num bando, e um deles arrancava folha das árvores e enfiava na
ferida do chumbo. Francisco Rebouças da Silva -
Aqui sou conhecido como o último brasileiro, pra cima só tem
mato e bicho, e no outro lado da
serra é Peru. Sou empregado, tenho carteira assinada, ganho um
salário mínimo por mês e sou da
união vegetal (Santo Daime, seita
da Amazônia que inclui uso de
chá alucinógeno). Já vi porco se
transformar em carro de corrida e
viajo de avião por quase todo o
mundo com minha mulher quando bebo o chá do cipó. Só quem
sabe qual é o cipó certo é o mestre
(da seita). Essa mata tem muito
remédio desconhecido. Ali pra
trás tem um pé de árvore que não
teve uma pessoa até hoje que soubesse dizer que pau é aquele. Até
uns gringos ficaram meia hora
olhando pra ela e falando enrolado, depois levaram umas folhas
pra estudar na terra deles. O repórter fotográfico Antônio Gaudério viajou à serra do Divisor a convite do Projeto Brasil - 500 Anos. Texto Anterior: Municípios: Prefeito no MA vive e estuda em S. Paulo Próximo Texto: Crime organizado: CPI paulista vai investigar políticos Índice |
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