|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JANIO DE FREITAS
Apenas um reflexo
Muito ao contrário do pasmo geral, a eleição de um
parlamentar lamentável como
Severino Cavalcanti à presidência da Câmara é uma contribuição altamente positiva para todos os cidadãos e, entre eles, sobretudo para os de reação mais
tristonha ou mais indignada.
O susto que acometeu milhões
de pessoas ao saberem, no despertar da terça-feira, que pela
madrugada a Câmara as brindara com a escolha de Severino
Cavalcanti, foi expressão de
uma realidade trágica nacional:
o Brasil não está se dando conta
da degradação generalizada
que o acomete. E assunta-se,
quando nota um sinal além dos
já incorporados.
A eleição de Severino Cavalcanti não é um fato em si mesmo, começado e concluído nos
seus próprios limites. Não foi um
golpe de esperteza que levou ao
resultado da votação. Foram os
votos de 300 deputados em 498
presentes, dois terços da Câmara. Um corpo legislativo onde a
tarefa de legislar, se o caso não
for de voto secreto, realiza-se segundo o montante de adesões
compradas pelo governo.
Desde que a esporádica aquisição de votos foi transformada
em norma, pela Presidência de
Fernando Henrique, não há caso de votação aberta que o governo tenha perdido, depois de
despejar nela a proporção de favorecimentos adequada. Todos
com recursos públicos: nomeações de apadrinhados a granel,
empréstimos privilegiados, dinheiro vivo para alegados projetos sociais, portas abertas para
intermediação de compras e de
contratações. Nada a ver com a
defesa, devida pelo deputado, de
interesses do seu Estado.
É corrupção. Corrupção pura.
Pura e grossa. Grossa e escancarada. Chamada no jornalismo
pátrio de "atenção do governo
com a base", "atendimento das
necessidades dos deputados", e
outras formas verbais de complacência ou integração.
A eleição de Severino Cavalcanti não existiria se outra fosse
a composição da Câmara. A
composição da Câmara não seria como é se outras fossem as
Assembléias estaduais e as Câmaras municipais, alicerces da
pirâmide eleitoral do sistema legislativo. Mas não só nessa face
das instituições políticas a corrosão age. O Executivo, em tal matéria, nada deve. Já por ser o
agente de grande parte da degradação do Legislativo, mas
também por si mesmo. Para ficar nos últimos anos, o governo
Fernando Henrique deixou um
longo rastro, com a privatização
das telefônicas e outras, com o
Sivam, e por aí, além da corrupção instituída como método de
relacionamento entre governo e
Congresso. E o que veio depois só
honrou esse legado.
A começar do que se passou
entre a campanha de Lula e o
seu governo. Nem um só eleitor
de Lula votou para ter um governo como o atual. Todos votaram contra as políticas que lhes
são impostas, votaram no discurso da mudança, do esperançoso destemor de inovar. Receberam o que haviam repudiado.
O eleitorado vitorioso, para dizer com todas as letras, foi vítima de um golpe eleitoral. Um
golpe branco.
O efeito desse retrocesso institucional e político sobre o sentimento de cidadania é notório,
não só na decepção, mas no
desânimo com o compromisso e
a expectativa: "eu nunca mais
voto para presidente" é uma
frase hoje comum. A mais
importante frase criada pelo
discurseiro Lula, ainda que não
a pronunciasse.
Das instituições políticas às
circunstâncias da vida individual ou coletiva, uma sugestão
basta como referência ao processo de degradação do Brasil: reveja, de memória, como está o centro da sua cidade, apesar de rica,
a velha Calcutá transferida e
agravada para o centro da sua
capital, da sua cidade média
(das cidades pequenas nunca se
chegou a pensar e oferecer oportunidade muito melhor). Nem
precisa chegar à visão causticante das periferias.
Nossas cidades: desemprego,
favelização ininterrupta, filas
da miséria nos corredores de
hospitais, nos postos de saúde,
no INSS, milhões incontáveis de
crianças maltratadas pelas ruas,
roubos, assaltos, insegurança e
medo fora e dentro de casa. Por
seu lado, o meio rural espipoca
em focos de conflito e morte, que
não se sabe se prenunciam, incentivados pela inércia voltada
para juros e superávits, uma explosão que não se faria de focos
isolados.
Sempre se disse que a Câmara
dos Deputados é um reflexo do
país. Convém começarmos a entender que a eleição de Severino
Cavalcanti não é, portanto, um
fato isolado, limitado ao âmbito
da Câmara. É um reflexo talvez
espantoso, mas muito fiel à realidade que nos engolfa.
Texto Anterior: Ação de hackers e prostituição marcam cidade Próximo Texto: Casa Severina: Verbas da Câmara superam as de 8 Estados Índice
|