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DEBATE/A TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO
CONTRA
A quem serve a transposição?
AZIZ AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA
É compreensível que em um
país de dimensões tão grandiosas,
no contexto da tropicalidade, surjam muitas idéias e propostas incompletas para atenuar ou procurar resolver problemas de regiões
críticas. Entretanto, é impossível
tolerar propostas demagógicas de
pseudotécnicos não preparados
para prever os múltiplos impactos sociais, econômicos e ecológicos de projetos teimosamente enfatizados. Tem faltado a eventuais
membros do primeiro escalão
dos governos qualquer compromisso com planificação metódica
e integrativa, baseada em bons conhecimentos sobre o mundo real
de uma sociedade prenhe de desigualdades. Nesse sentido, bons
projetos são todos aqueles que
possam atender às expectativas
de todas as classes sociais regionais, de modo equilibrado e justo,
longe de favorecer apenas alguns
especuladores contumazes. Pessoalmente, estou cansado de ouvir propostas ocasionais, mal
pensadas, dirigidas a altas lideranças governamentais.
Nas discussões que ora se travam sobre a questão da transposição de águas do São Francisco para o setor norte do Nordeste Seco,
existem alguns argumentos tão
fantasiosos e mentirosos que merecem ser corrigidos em primeiro
lugar. Referimo-nos ao fato de
que a transposição das águas resolveria os grandes problemas sociais existentes na região semi-árida do Brasil. Trata-se de um argumento completamente infeliz
lançado por alguém que sabe de
antemão que os brasileiros extra-nordestinos desconhecem a realidade dos espaços físicos, sociais,
ecológicos e políticos do grande
Nordeste do país, onde se encontra a região semi-árida mais povoada do mundo.
O Nordeste Seco, delimitado
pelo espaço até onde se estendem
as caatingas e os rios intermitentes, sazonários e exoreicos (que
chegam ao mar), abrange um espaço fisiográfico socioambiental
da ordem de 750.000 quilômetros
quadrados, enquanto a área que
pretensamente receberá grandes
benefícios abrange dois projetos
lineares que somam apenas alguns milhares de quilômetros nas
bacias do rio Jaguaribe (Ceará) e
Piranhas/Açu, no Rio Grande do
Norte. Portanto, dizer que o projeto de transposição de águas do
São Francisco para além Araripe
vai resolver problemas do espaço
total do semi-árido brasileiro não
passa de uma distorção falaciosa.
Um problema essencial na discussão das questões envolvidas
no projeto de transposição de
águas do São Francisco para os
rios do Ceará e Rio Grande do
Norte diz respeito ao equilíbrio
que deveria ser mantido entre as
águas que seriam obrigatórias para as importantíssimas hidrelétricas já implantadas no médio/baixo vale do rio -Paulo Afonso,
Itaparica, Xingó. Devendo ser registrado que as barragens ali implantadas são fatos pontuais, mas
a energia ali produzida, e transmitida para todo o Nordeste, constitui um tipo de planejamento da
mais alta relevância para o espaço
total da região. De forma que o
novo projeto não pode, em hipótese alguma, prejudicar o mais antigo, que reconhecidamente é de
uma importância areolar. Mas
parece que ninguém no Brasil se
preocupa em saber nada de planejamentos pontuais, lineares e
areolares. Nem tampouco em saber quanto o projeto de interesse
macrorregional vai interessar para os projetos lineares em pauta.
Segue-se na ordem dos tratamentos exigidos pela idéia de
transpor águas do São Francisco
para além Araripe a questão essencial a ser feita para políticos,
técnicos acoplados e demagogos:
a quem vai servir a transposição
das águas? Uma interrogação indispensável em qualquer projeto
que envolve grandes recursos,
sensibilidade social e honestas
aplicações dos métodos disponíveis para previsão de impactos.
Os "vazanteiros" que fazem horticultura no leito dos rios que "cortam" -que perdem fluxo durante o ano- serão os primeiros a
ser totalmente prejudicados. Mas
os técnicos insensíveis dirão com
enfado: "A cultura de vazante já
era". Sem ao menos dar qualquer
prioridade para a realocação dos
heróis que abastecem as feiras dos
sertões. A eles se deve conceder a
prioridade maior em relação aos
espaços irrigáveis que viessem a
ser identificados e implantados.
De imediato, porém, serão os fazendeiros pecuaristas da beira alta e colinas sertanejas que terão
água disponível para o gado, nos
cinco ou seis meses que os rios da
região não correm. É possível termos água disponível para o gado e
continuarmos com pouca água
para o homem habitante do sertão. Nesse sentido, os maiores beneficiários serão os proprietários
de terra, residentes longe, em
apartamentos luxuosos em grandes centros urbanos.
Sobre a viabilidade ambiental
pouca coisa se pode adiantar, a
não ser a falta de conhecimentos
sobre a dinâmica climática e a periodicidade do rio que vai perder
água e dos rios intermitentes-sazonários que vão receber filetes
das águas transpostas. Um projeto inteligente e viável sobre transposição de águas, captação e utilização de águas da estação chuvosa e multiplicação de poços ou cisternas tem que envolver obrigatoriamente conhecimento sobre a
dinâmica climática regional do
Nordeste. No caso de projetos de
transposição de águas, há de ter
consciência que o período de
maior necessidade será aquele
que os rios sertanejos intermitentes perdem correnteza por cinco a
sete meses. Trata-se porém do
mesmo período que o rio São
Francisco torna-se menos volumoso e mais esquálido. Entretanto, é nesta época do ano que haverá maior necessidade de reservas
do mesmo para hidrelétricas regionais. Trata-se de um impasse
paradoxal, do qual, até agora, não
se falou.
Por outro lado, se esta água tiver
que ser elevada ao chegar a região
final de seu uso, para desde um
ponto mais alto descer e promover alguma irrigação por gravidade, o processo todo aumentará
ainda mais a demanda regional
por energia. E, ainda noutra direção, como se evitará uma grande
evaporação desta água que atravessará o domínio da caatinga,
onde o índice de evaporação é o
maior de todos? Eis outro ponto
obscuro, não tratado pelos arautos da transposição.
A afoiteza com que se está pressionando o governo para se conceder grandes verbas para início
das obras de transposição das
águas do São Francisco terá conseqüências imediatas para os especuladores de todos os naipes.
Existindo dinheiro - em uma
época de escassez generalizada
para projetos necessários e de valor certo -, todos julgam que deve ser democrática a oferta de serviços, se possível bem rentosos.
Será assim, repetindo fatos do
passado, que acontecerá a disputa
pelos R$ 2 bilhões pretendidos
para o começo das obras.
O risco final é que, atravessando
acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa
sul da chapada do Araripe -com
grande gasto de energia!-, a
transposição acabe por significar
apenas um canal tímido de água,
de duvidosa validade econômica
e interesse social, de grande custo,
e que acabaria, sobretudo, por
movimentar o mercado especulativo, da terra e da política. No fim,
tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo
o espaço em mercadoria.
Aziz Ab'Sáber, 80, é geógrafo, professor-emérito da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP e professor convidado do Instituto de Estudos
Avançados da USP.
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