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NO PLANALTO
Salário de policial compra lancha de R$ 2 milhões
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Q uando vê esmola grande,
a Justiça, que é cega, nem
sempre desconfia. Agora mesmo
um desses óbolos gigantes passeia
pelos escaninhos do TRF de São
Paulo. O tribunal age como são
Tomé às avessas. Vê para não
crer.
Chama-se Rubens Maurício
Bolorino o beneficiário da caridade. Ao Imposto de Renda, ele informou que vive com modestos
vencimentos de "funcionário público".
Na verdade, Bolorino brinca de
esconde-esconde com o fisco. Leva
uma vida que transborda os seus
contracheques. Cometeu, porém,
dois erros durante o jogo.
Subvertendo a lógica, Bolorino
tornou-se milionário. Afrontando
o bom senso, ostentou o excesso
de pecúnia. Em maio de 2004, foi
expurgado dos quadros da Polícia Civil de São Paulo. Demitiram-no do posto de investigador
por "improbidade".
O ex-policial passou os feriados
de Carnaval a bordo do principal
símbolo do fausto em que vive:
uma lancha modelo Phanton 46,
avaliada em cerca de R$ 2 milhões.
A embarcação, apelidada de
"Willow", foi fabricada na Inglaterra, em 2001, pela empresa Fairline. Mede, da proa à popa, 14,59
metros. Tem convés fechado, dormitório de casal, banheiro, cozinha, cabine de comando... Um luxo.
A Receita descobriu que a lancha "Willow" singra um rio de sonegação. Retida pelo fisco, a embarcação foi restituída a Bolorino
pelo TRF paulista.
Aconteceu assim:
1) em março de 2002, a Receita
pôs na rua a "Operação São Paulo". Mirava o contrabando comandado pela máfia chinesa. Em
cinco meses, farejaram-se irregularidades na importação da lancha;
2) chamada a explicar-se, a empresa Suply Ltda., de São Paulo,
suposta dona da "Willow", alegou tê-la comprado da Master
Ltda., sediada em Manaus;
3) o fisco vistoriou as instalações da Master, uma saleta de 12
m2. A firma não emprega vivalma;
4) os auditores visitaram também os livros da Master. Importa
"dezenas de milhões de dólares"
em mercadorias. Cifras incompatíveis com o capital da empresa
(R$ 10 mil) e com as "condições
econômicas" dos sócios. Para a
Receita, a firma é laranja;
5) a Suply, suposta compradora
da "Willow", não informou à Receita que adquirira a lancha. Para o fisco, a empresa "está apenas
cedendo o seu nome, com o objetivo de ocultar a identidade do verdadeiro proprietário". É laranja;
6) cavoucando mais fundo, a
Receita soube que a britânica
Fairline, a firma que fabricou a
lancha, costuma ser representada
no Brasil pela Milmar Ltda., do
Rio, conhecida do fisco por praticar "subfaturamento na importação de barcos";
7) os auditores apalparam o
"conhecimento de transporte marítimo" da lancha. Bingo. Foi
transmitido pela Milmar, via fax,
ao ex-policial Bolorino;
8) munidos de autorização judicial, os auditores realizaram 23
operações de busca e apreensão
em julho de 2002. Recolheram documentos e arquivos magnéticos;
9) relatório confidencial de 6 de
março de 2003 resume os resultados. Descobriu-se "a existência de
um grande e complexo esquema
de sonegação de tributos, envolvendo inúmeras empresas em nome de pessoas interpostas";
10) as arcas do esquema são fornidas à custa da "prática sistemática de subfaturamento de mercadorias importadas, com utilização de documentos e informações
falsas (...)". Apreenderam-se 83
contêineres de mercadorias;
11) entre as empresas varejadas
pelo fisco está a World Comercial
do Brasil. Pertence ao ex-policial
Bolorino e a Paulo Rui de Godoy
Filho;
12) os papéis apreendidos na
World, diz o fisco, atestam que
Bolorino está vinculado ao "esquema de subfaturamento de importações". São seis as empresas
envolvidas. Entre elas a Troni, do
chinês Liu Kuo An. Todos negam
as acusações;
13) quanto à lancha, a Receita
concluiu: "Não há dúvida de que
o senhor Bolorino é o proprietário". O ex-policial pagou seguro,
manutenção e "inscrição" da
"Willow". Por duas semanas, o
repórter procurou, sem sucesso,
Bolorino;
14) os importadores declararam
à Receita que a lancha vale US$
254,5 mil -cerca de R$ 661 mil.
Pagou-se Imposto de Importação
de R$ 132,4 mil. Negócio regular,
dizem as empresas. Uma fraude,
diz o fisco;
15) "O valor da embarcação é
cerca de três vezes superior ao declarado." Laudo da empresa NM
Survey & Salvage, "especialista
em avaliações de embarcações,
atribui à "Willow" valor de US$
779 mil" (R$ 2,025 milhões). No
site do fabricante, a lancha é cotada a "US$ 712,4 mil" (R$ 1,8 milhão). Sem acessórios;
16) o fisco decretou o "perdimento" da lancha. A firma Suply
pediu na Justiça o cancelamento
da medida. Perdeu na 1ª Vara Federal de Santos. Foi ao TRF paulista. O desembargador Nery Jr.
impôs à Suply nova derrota;
17) a Receita decidiu enviar a
"Willow" para a Amazônia. Planejava utilizá-la na fiscalização
do trânsito de mercadorias na
Zona Franca de Manaus;
18) a Suply ajuizou outro pedido de devolução da lancha, dessa
vez na 23ª Vara Federal de São
Paulo. Reivindicou que o ex-policial Bolorino, subitamente apresentado como co-proprietário da
"Willow", fosse declarado "fiel depositário" da embarcação;
19) indeferida de novo na primeira instância, a petição da
Suply e de Bolorino subiu pela segunda vez ao TRF. Os autos foram à mesa de Manoel Álvares,
juiz federal convocado pelo tribunal. Ouvida, a Procuradoria da
Fazenda Nacional empilhou argumentos contrários. Álvares deu
de ombros. Em decisão liminar
(provisória) confiou a guarda da
lancha a Bolorino;
20) embarcada num navio da
Marinha, a "Willow" estava a caminho da Amazônia quando foi
interceptada no Rio de Janeiro.
Voltou ao Guarujá. E foi entregue
a Bolorino. Em tempo para que o
policial desempregado pudesse
zarpar no Carnaval. Um curioso
ruído abafou o zunido dos motores da "Willow". Era o som de são
Tomé revirando na tumba.
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