São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

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NO PLANALTO

Salário de policial compra lancha de R$ 2 milhões

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Q uando vê esmola grande, a Justiça, que é cega, nem sempre desconfia. Agora mesmo um desses óbolos gigantes passeia pelos escaninhos do TRF de São Paulo. O tribunal age como são Tomé às avessas. Vê para não crer.
Chama-se Rubens Maurício Bolorino o beneficiário da caridade. Ao Imposto de Renda, ele informou que vive com modestos vencimentos de "funcionário público".
Na verdade, Bolorino brinca de esconde-esconde com o fisco. Leva uma vida que transborda os seus contracheques. Cometeu, porém, dois erros durante o jogo.
Subvertendo a lógica, Bolorino tornou-se milionário. Afrontando o bom senso, ostentou o excesso de pecúnia. Em maio de 2004, foi expurgado dos quadros da Polícia Civil de São Paulo. Demitiram-no do posto de investigador por "improbidade".
O ex-policial passou os feriados de Carnaval a bordo do principal símbolo do fausto em que vive: uma lancha modelo Phanton 46, avaliada em cerca de R$ 2 milhões.
A embarcação, apelidada de "Willow", foi fabricada na Inglaterra, em 2001, pela empresa Fairline. Mede, da proa à popa, 14,59 metros. Tem convés fechado, dormitório de casal, banheiro, cozinha, cabine de comando... Um luxo.
A Receita descobriu que a lancha "Willow" singra um rio de sonegação. Retida pelo fisco, a embarcação foi restituída a Bolorino pelo TRF paulista.
Aconteceu assim:
1) em março de 2002, a Receita pôs na rua a "Operação São Paulo". Mirava o contrabando comandado pela máfia chinesa. Em cinco meses, farejaram-se irregularidades na importação da lancha;
2) chamada a explicar-se, a empresa Suply Ltda., de São Paulo, suposta dona da "Willow", alegou tê-la comprado da Master Ltda., sediada em Manaus;
3) o fisco vistoriou as instalações da Master, uma saleta de 12 m2. A firma não emprega vivalma;
4) os auditores visitaram também os livros da Master. Importa "dezenas de milhões de dólares" em mercadorias. Cifras incompatíveis com o capital da empresa (R$ 10 mil) e com as "condições econômicas" dos sócios. Para a Receita, a firma é laranja;
5) a Suply, suposta compradora da "Willow", não informou à Receita que adquirira a lancha. Para o fisco, a empresa "está apenas cedendo o seu nome, com o objetivo de ocultar a identidade do verdadeiro proprietário". É laranja;
6) cavoucando mais fundo, a Receita soube que a britânica Fairline, a firma que fabricou a lancha, costuma ser representada no Brasil pela Milmar Ltda., do Rio, conhecida do fisco por praticar "subfaturamento na importação de barcos";
7) os auditores apalparam o "conhecimento de transporte marítimo" da lancha. Bingo. Foi transmitido pela Milmar, via fax, ao ex-policial Bolorino;
8) munidos de autorização judicial, os auditores realizaram 23 operações de busca e apreensão em julho de 2002. Recolheram documentos e arquivos magnéticos;
9) relatório confidencial de 6 de março de 2003 resume os resultados. Descobriu-se "a existência de um grande e complexo esquema de sonegação de tributos, envolvendo inúmeras empresas em nome de pessoas interpostas";
10) as arcas do esquema são fornidas à custa da "prática sistemática de subfaturamento de mercadorias importadas, com utilização de documentos e informações falsas (...)". Apreenderam-se 83 contêineres de mercadorias;
11) entre as empresas varejadas pelo fisco está a World Comercial do Brasil. Pertence ao ex-policial Bolorino e a Paulo Rui de Godoy Filho;
12) os papéis apreendidos na World, diz o fisco, atestam que Bolorino está vinculado ao "esquema de subfaturamento de importações". São seis as empresas envolvidas. Entre elas a Troni, do chinês Liu Kuo An. Todos negam as acusações;
13) quanto à lancha, a Receita concluiu: "Não há dúvida de que o senhor Bolorino é o proprietário". O ex-policial pagou seguro, manutenção e "inscrição" da "Willow". Por duas semanas, o repórter procurou, sem sucesso, Bolorino;
14) os importadores declararam à Receita que a lancha vale US$ 254,5 mil -cerca de R$ 661 mil. Pagou-se Imposto de Importação de R$ 132,4 mil. Negócio regular, dizem as empresas. Uma fraude, diz o fisco;
15) "O valor da embarcação é cerca de três vezes superior ao declarado." Laudo da empresa NM Survey & Salvage, "especialista em avaliações de embarcações, atribui à "Willow" valor de US$ 779 mil" (R$ 2,025 milhões). No site do fabricante, a lancha é cotada a "US$ 712,4 mil" (R$ 1,8 milhão). Sem acessórios;
16) o fisco decretou o "perdimento" da lancha. A firma Suply pediu na Justiça o cancelamento da medida. Perdeu na 1ª Vara Federal de Santos. Foi ao TRF paulista. O desembargador Nery Jr. impôs à Suply nova derrota;
17) a Receita decidiu enviar a "Willow" para a Amazônia. Planejava utilizá-la na fiscalização do trânsito de mercadorias na Zona Franca de Manaus;
18) a Suply ajuizou outro pedido de devolução da lancha, dessa vez na 23ª Vara Federal de São Paulo. Reivindicou que o ex-policial Bolorino, subitamente apresentado como co-proprietário da "Willow", fosse declarado "fiel depositário" da embarcação;
19) indeferida de novo na primeira instância, a petição da Suply e de Bolorino subiu pela segunda vez ao TRF. Os autos foram à mesa de Manoel Álvares, juiz federal convocado pelo tribunal. Ouvida, a Procuradoria da Fazenda Nacional empilhou argumentos contrários. Álvares deu de ombros. Em decisão liminar (provisória) confiou a guarda da lancha a Bolorino;
20) embarcada num navio da Marinha, a "Willow" estava a caminho da Amazônia quando foi interceptada no Rio de Janeiro. Voltou ao Guarujá. E foi entregue a Bolorino. Em tempo para que o policial desempregado pudesse zarpar no Carnaval. Um curioso ruído abafou o zunido dos motores da "Willow". Era o som de são Tomé revirando na tumba.


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