São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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JANIO DE FREITAS

Caráter mínimo

É difícil imaginar o que R$ 15 podem representar no mês miserável de milhões de brasileiros. Muito mais difícil, porém, é imaginar o futuro, e não precisa ser o futuro distante, que resultará da convivência contraditória entre os tantos problemas do Brasil e a classe política retratada, com perfeição, no dá ou não dá R$ 15 a mais ao salário da humilhação, dito salário mínimo.
A política implica conduta mais maleável do que a maioria das demais atividades. O que não se confunde com inexistência de limites. Ou seja, não se confunde com o que temos visto em todos os níveis da prática política no Brasil, e de que a votação do mínimo no Senado merece ficar como símbolo.
Nenhum déficit neste país de déficits tem conseqüências mais terríveis do que o déficit de decência pessoal na política. É deste que se irradia a imoralidade nacional, a imoralidade que permeia toda a vida pública e lança extensões à vida privada, sobretudo se empresarial.
Em um Senado composto por 81 figuras, não passa de uma dúzia, se a isso chegar, o número dos que não se passaram atestados autodenunciadores. A bancada do PFL que votou com unanimidade nos R$ 15 a mais é a bancada que sustentou as sucessivas extorsões do governo Fernando Henrique, fosse pelo salário mínimo ou por tantas outras medidas de então. Um único furou a unanimidade do PSDB na inversão de tudo o que os peessedebistas disseram e fizeram até tão pouco tempo. O PPS, pseudocomunista, enlaçou-se no PFL e no PSDB e se pôs contra qualquer melhoria do salário mínimo. Três quartos da grande bancada do PMDB votaram contra os votos que deram durante os oito anos do governo passado. No falecido PT, só Serys Slhessarenko (MT), Flávio Arns (PR) e, redimindo-se de atitudes recentes, Paulo Paim (RS) mantiveram a face, a meio de Mercadante, Suplicy, Cristovam Buarque, Roberto Saturnino e outros inversores de si mesmos.
Favoráveis ou contrários ao governo, os que se têm mostrado em atitudes modificadas foram hipócritas antes ou o são agora? Nenhum provaria, porque ninguém poderia fazê-lo, que as condições nacionais ou a mudança de governo trouxeram situações tão novas que lhes impusessem a repentina inversão, iniciada com os primeiros atos de Lula, de atitudes e palavras mantidas por anos e anos, quando não demarcadoras da vida pessoal inteira. Suas inversões não estão ocorrendo só em decisões superficiais, mas também, com freqüência, em decisões que envolvem princípios.
Por isso, os R$ 15 não estiveram em questão quando o mínimo salário mínimo foi aprovado pela Câmara ou quando o Senado lhe deu o mínimo acréscimo que o governo Lula não admite. Em questão, de fato, nessa como nas votações precedentes de deputados e senadores que há e meio exibem as inversões individuais e partidárias, o que está em questão é a (i)moralidade política, é a dignidade devida a instituições. É, em termos pessoais de cada político, o caráter. Aí está, antigo e se agravando como nunca, o grande déficit da política brasileira, o déficit que cultiva e se alimenta dos problemas que o Brasil não soluciona.



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