São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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NO PLANALTO

Para um salário mínimo, um fisiologismo máximo

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

No concerto de posições políticas divergentes, o petismo tornou-se notável compositor. Compõe com todo mundo. No caso do salário mínimo, exibiu suprema astúcia. Pagou e não levou. Nunca se havia negociado tão mal tão bem.
O petismo diz que não há fisiologia em seus acertos com o Congresso. Não se deve discutir com peritos no assunto. O repórter relatará abaixo um caso que corrobora o pendor altruísta dos negócios de Brasília.
Lael Varella, eis o nome do nosso protagonista. É deputado federal, eleito por Minas. Pertence à tribo pefelê. Sob FHC, instalou um dreno nos cofres do Tesouro. Sob Lula, o duto continua ativo.
Na arena pública, Lael Varella é um espírito opaco; um mandato sem rosto, por assim dizer. Na esfera privada, é um ser luminoso. Possui distribuidora Chevrolet em Belo Horizonte e revendas Scania em Minas, Goiás, Espírito Santo e Brasília.
Aqui se demonstrou, há três anos, como os ares de Brasília fizeram bem a Varella. O olfato do empresário foi estimulado pelo oportunismo do deputado.
Varella farejou na Comissão de Orçamento do Congresso um portal de oportunidades. Criou em Muriaé, reduto eleitoral da Zona da Mata mineira, uma próspera entidade.
Chama-se Fundação Cristiano Varella -homenagem a um filho do deputado, morto em 1997. Controla uma emissora de TV e administra o Centro Brasileiro de Oncologia Maria da Glória Ferreira Varella. Tributo à mulher do parlamentar.
Membro do conselho da fundação, o deputado confiou a direção da entidade a três filhos: Luciano (diretor-presidente), Misael (diretor-executivo) e Lael Filho (diretor cultural).
A casa hospitalar da fundação foi integralmente erigida com verbas subtraídas das arcas do Tesouro. Dinheiro graúdo: R$ 19,7 milhões.
A grana foi liberada em convênios firmados com o Ministério da Saúde entre 1997 e 2002. Sob os auspícios de José Serra, ministro de então.
Embora erguido com verba sua, minha, nossa, o hospital do deputado não atendia à clientela do SUS. Só em 2002 credenciou-se ao sistema público de saúde.
Criada em 1995, só em setembro de 1999 a fundação dos Varella injetou o ramo hospitalar em seus estatutos. Foi uma sábia decisão.
Em seu primeiro ano de vida, a Fundação Cristiano Varella registrou resultado financeiro modesto: R$ 9.000. Em 2000, já em contato com o maravilhoso mundo das verbas públicas, anotou saldo de R$ 18,1 milhões.
Sob o tucanato, os aportes de Brasília caminharam mais rápido do que as obras do hospital. Com o caixa repleto, a fundação dos Varella buscou refúgio no mercado financeiro. Só em 2000, o saldo das aplicações lastreadas em títulos públicos produziu rendimentos de R$ 751 mil.
Na oposição, o PT rosnava contra a apropriação privada de recursos do Tesouro. No governo, o ex-PT rifa a viúva.
O PFL de Lael Varella é agora uma legenda de oposição. Mas o deputado votou a favor do salário mínimo de R$ 260. Seu voto foi ditado pelo pragmati$mo.
Em 2003, ano inaugural da era Lula, o governo brindou a Fundação Cristiano Varella com R$ 1,8 milhão. Em 2004, a entidade obteve mais R$ 1,3 milhão.
O dinheiro de 2004 saiu em conta-gotas. A primeira parcela (R$ 650 mil) pingou na conta da fundação em 16 de abril. A segunda (R$ 650 mil) gotejou em 21 de maio, no calor das tratativas para a aprovação do mínimo na Câmara.
Com o TCU no seu encalço, Varella cuidou para que sua fundação fosse credenciada ao SUS. A partir de 2003, além da grana dos convênios, passou a receber pelos pacientes que atendeu. Amealhou R$ 1,2 milhão entre janeiro e dezembro de 2003. Até março de 2004, recebeu mais R$ 424 mil.
À luz do interesse público, os milionários investimentos feitos na fundação privada de Muriaé revelaram-se ruinosos. Foi muito dinheiro, pouco benefício.
Esparramado por 18.500 m2, o hospital da família Varella oferece 127 leitos. Só 85 estão ativos, informa Sérgio Dias Henriques, administrador do "centro oncológico".
Segundo Dias Henriques, o hospital habilitou-se em dezembro de 2002 a realizar atendimentos de ponta. A informação destoa da ficha da fundação guardada nos arquivos do Ministério da Saúde.
Manuseando o documento, atualizado em 31 de maio de 2004, o repórter constatou que o hospital dos Varella não foi nem mesmo avaliado segundo as "normas básicas de atendimento hospitalar do Ministério da Saúde".
A mesma ficha anota que o hospital não foi considerado apto a praticar procedimentos oncológicos de "alta complexidade". Tampouco está habilitado para práticas menos complexas: videolaparoscopias, radioterapia e testes ergométricos, por exemplo.
Nas palavras de Dias Henriques, o hospital realiza "algo em torno de 250 internações por mês". Ou seja, 3.000 por ano. De novo, os arquivos de Brasília dizem outra coisa. Atestam que, em 2003, internaram-se 1.311 pessoas. A média mensal do ano passado (109) é cadente. Até março de 2004, houve 245 internações (81 por mês).
Ao rejeitar o mínimo de R$ 260, na quinta-feira, o Senado devolveu a bola à Câmara. Deputados menos afortunados que Varella preparam-se para a segunda rodada de negociaçõe$. Perceberam que, na Brasília de hoje, como na de ontem, uma mão suja a outra.


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