São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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ELIO GASPARI

Enfim, a choldra ganhou uma na vida real

Está acontecendo na cidade de São Paulo uma aula de política pública. Ela pode ajudar candidatos de todos os partidos a fazer alguma coisa pela patuléia, a quem começarão a pedir votos.
No final de seu governo, o tucano Mário Covas integrou os bilhetes dos passageiros do metrô e dos trens. Traduzindo: o sujeito toma um, vai para o outro e paga uma só passagem. A iniciativa de Covas integrou cerca de 10% de uma rede onde ocorrem 30 milhões de percursos diários. O tucanato ficou de estudar a integração desse sistema com toda a sua rede de ônibus intermunicipais. Se isso tivesse acontecido, um terço dos transportes metropolitanos de SP caberiam numa só passagem. Seria coisa fina, pois calcula-se que haja 5,3 milhões de pessoas sem dinheiro para pagar passagens. Cerca 100 mil fazem a pé, todos os dias, percursos de mais de uma hora de duração.
A administração petista da cidade resolveu ir à luta e mirou num sistema de bilhetagem que permitisse a cobrança de uma tarifa única. No dia 19 de maio a novidade começou a funcionar. Coisa assim: a passagem permite que o cidadão use a rede municipal de ônibus durante duas horas. (O tempo é contado a partir da entrada no veículo. Portanto, duas horas de bilhete podem cobrir mais de três horas de transporte.) Não importa quantos ônibus o cidadão toma, nem onde os toma. Sistemas semelhantes existem em Nova York, Paris e Madri.
Em um mês, venderam-se 700 mil bilhetes. A demanda vai a 40 mil por dia. Somando-se idosos e estudantes, 1,7 milhão de paulistanos já têm o bilhete único, num universo de três milhões que usam os ônibus da prefeitura. Nesta semana o sistema deve bater a marca de 1,5 milhão de percursos.
O que a choldra leva nisso? O trabalhador que toma dois ônibus paga uma só passagem. Com tarifas de R$ 1,70, ele economiza R$ 68 em 20 dias. Milhares de trabalhadores vão se livrar da barreira que os afastava de patrões que não queriam pagar quatro passagens por dia. Em muitos casos os empregadores repassaram a economia aos empregados. Isso significa um aumento líquido de 10% para uma diarista de R$ 680.
Quem paga? Essa é a parte desmistificadora da teoria segundo a qual tudo que vai para o andar de baixo tem custos inaceitáveis e tudo o que vai para o andar de cima (juros de 16% ao ano, por exemplo) é uma fatalidade meteorológica. O novo sistema de bilhetagem derruba os esquemas pelos quais viaja-se sem pagar. Isso permite um aumento de arrecadação que pode ficar em 8%. A novidade tira freguesia dos transportes informais, pois eles passam a custar caro para quem toma duas conduções. A providência deverá trazer algumas dezenas de milhares de passageiros de volta ao mercado. As empresas de ônibus continuarão recebendo um antigo subsídio disfarçado. Ele custa R$ 280 milhões anuais e destina-se a custear as passagens dos idosos e o desconto dado aos estudantes. A prefeitura garante que a nova bilhetagem não provocará aumento de tarifas. Críticos do sistema sustentam que, como está, o passageiro paga R$ 1,70 e custa em torno de R$ 2.
O tucanato teve dois anos para cuidar da herança de Mário Covas. Nunca chamaram os petistas para discutir um projeto de integração. Diante da novidade, acordaram. Na semana passada, reabriram a discussão para integrar o metrô à rede intermunicipal de ônibus.
Agora a porca torce o rabo: usando-se a experiência da prefeitura petista, será possível integrar todos os ônibus, trens e o metrô de São Paulo em menos de um ano. Não se sabe quanto tempo os tucanos precisarão para criar um sistema próprio.
O novo bilhete dos ônibus municipais poderá ser o maior cabo eleitoral da prefeita Marta Suplicy na sua campanha pela reeleição.
Se os tucanos acham que vão ganhar a Prefeitura de São Paulo à custa da taxa de rejeição da doutora Suplicy (55% no início de maio, índice considerado terminal por alguns marqueteiros), podem estar cometendo um erro semelhante àquele que os levou a crer que Lula estava condenado a morrer no segundo turno.

Crédito oficial

O PFL conseguiu fulanizar as despesas dos funcionários da Presidência com cartões de crédito. O economista Clever Fialho, lotado no Departamento de Documentação do Planalto, foi colocado na condição de campeão dos plásticos no governo Lula. Em 2004, ele fez despesas que totalizam R$ 630.245,54, uma média mensal superior a R$ 100 mil.
O senador José Jorge pede que o comissário José Dirceu esclareça como um funcionário pode ser obrigado a gastar semelhante ervanário. É a seguinte a lista dos outros servidores do palácio com despesas superiores a R$ 100 mil neste ano:
Mauro Augusto Silva: R$ 226.959,27
Luiz Fernando de Aguiar: R$ 214.075,04
Anderson Aguiar: R$ 192.400,62
Josefa R. Araújo: R$ 150.294,93
José Carlos Fernandes: R$ 111.775,31.
O silêncio do comissariado deixa esses funcionários numa situação constrangedora.

Lula precisa desativar o FebeaPla

FebeaPla, com permissão de Sérgio Porto, é o Festival de Besteiras que Anima o Planalto.
Lula tornou-se seu principal colaborador e na semana passada pediu o seguinte aos povos do mundo:
"Nós temos que ajudar os países mais pobres, comprando as coisas deles. Se não, como é que eles vão produzir, gerar empregos? (...) Há países menores, e temos de facilitar as coisas para que consigam vender os produtos para nós, às vezes até pagando mais caro".
Tudo bem, fazendo-se de conta que ele não comprou um avião por US$ 56 milhões na pobre Europa quando poderia comprar um piorzinho no riquíssimo Brasil por metade do preço.
Admita-se que, em vez de comprar algodão aos Estados Unidos, um empresário brasileiro pense em comprá-lo ao Benin, um país africano tão pobre que ainda não erradicou o tráfico de crianças para a escravidão. Se dois negociantes importarem algodão pensando em ajudar as crianças do Benin, e um fizer sua encomenda nos Estados Unidos, é possível que um centavo de dólar dessa transação acabe na Unicef, financiando uma ONG que batalha no Benin. Uma coisa é certa, se a compra for feita aos vendedores do algodão africano, a grana irá, inteirinha, para o andar de cima do Benin, que deposita seu dinheiro em outros paraísos, desde o tempo de Chachá, o sujeito da nota aí de baixo.
Lula gerencia o lucro dos outros como se fosse dele. O governo ganharia bastante em eficiência se, em vez de se envolver nas contas dos empresários, o presidente cuidasse das compras de sua quitanda.
Uma coisa é Lula dizer que sua mãe nasceu analfabeta ou que Napoleão foi à China e Oswaldo Cruz inventou a vacina contra a febre amarela. São lapsos verbais associados a um conhecimento desordenado. Bem outra é fazer propostas sem nexo no papel de Sindicalista do Terceiro Mundo, fumando cigarrilhas holandesas Café Crème, andando num Ômega australiano com batedores montados em motocicletas americanas Harley Davidson, para encanto da poderosa e riquíssima escumalha nacional.

Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música. Ela faz o que pode em defesa do idioma. A senhora concedeu mais uma de suas bolsas de estudo aos doutores José Henrique Paim Fernandes e Daniel Silva Balaban, presidente e ordenador de despesas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.
Os doutores deram a seguinte explicação para uma dispensa de licitação num contrato assinado com a Fundação Getulio Vargas, no valor de R$ 3.220.057. Contrataram a FGV para o seguinte:
"Prestação de serviços de assessoramento no acompanhamento e análise dinâmica do ambiente externo da Contratante (o Fundo) de suas repercussões sobre a instituição e apresentação de proposta para tratamento de cada uma das questões respectivas, bem como elaborar e implementar o Projeto de Fortalecimento Institucional".
Madame entendeu que o texto quer dizer o seguinte:
A FGV deve cair fora dessa.

Chachá, o grande empresário nacional (e global) do século 19

Está nas livrarias a biografia do primeiro empreendedor brasileiro da globalização do século 19. Chamou-se Francisco Félix de Souza e ficou conhecido no mundo como Chachá. Foi o homem mais rico do seu tempo, amealhou uma das maiores fortunas do mundo, calculada, com possível exagero, em 120 milhões de dólares em 1840 (US$ 3 bilhões hoje). Para se ter uma idéia do tamanho desse patrimônio, o banqueiro americano J.P. Morgan morreu em 1912 deixando US$ 80 milhões.
Chachá foi o maior traficante de escravos dos tempos modernos. Pode-se estimar que empresou a remessa de algumas centenas de milhares de negros para o Brasil. Não se sabe precisamente quando nasceu. Pode ter sido em 1754, talvez em 1768. Era baiano de Salvador. Talvez fosse mulato claro ou, quem sabe, caboclo. É certo que chegou à África em 1792, aos 38 anos (ou 24), e de lá nunca saiu. Também não se sabe por que atravessou o oceano, mas é possível que fugisse de alguma coisa. Teve pelo menos 63 filhos. Vestia-se com paletó e colete, sempre protegido por um enorme guarda-sol. Morreu em 1849. Sua vida está contada no belo livro "Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos", do embaixador Alberto da Costa e Silva.
Mesmo sendo o brasileiro que melhor conhece a história africana, Costa e Silva tirou leite de pedra. Chachá foi uma espécie de vice-rei do Benin, suserano do porto de Ajudá, mas sua vida ficou registrada em menos de 50 documentos da época. Há referências a ele em algo como 200 relatórios e memórias. Ora é o príncipe de Joinville, contando que as patrulhas inglesas capturaram 34 navios da esquadra negreira de Chachá, ora é um viajante inglês vendo, no Benin, já velha, a princesa Nã Agontimé, com sua linda história. Ela tinha sido a mãe carnal (ou de criação) de um príncipe. Derrotada numa sucessão dinástica, foi vendida como escrava, junto com sua pequena corte de 60 mulheres. O jogo palaciano virou, e seu filho pediu a Chachá que a procurasse. Ele mandou duas embaixadas ao Brasil e uma a Cuba. Nunca se soube de onde ela foi resgatada. Pierre Verger, o primeiro grande estudioso da vida de Chachá que levanta uma "sedutora hipótese": ela foi escrava no Maranhão, onde fundou o santuário da Casa das Minas. Costa e Silva admite essa possibilidade. A Casa foi aberta por um lote de escravas africanas que chegaram num mesmo navio e até hoje as vodunsis guardam em segredo o nome da fundadora. (O livro conta mais.)
Vai-se atrás da história de Chachá e ganha-se um painel erudito do mundo do comércio de escravos. A cena do branco embarcando negros para a escravidão é economicamente verdadeira, mas factualmente errada. Quem embarcava os negros eram os negros. Eles e suas tramas são os personagens do livro de Costa e Silva.
É mais fácil viver num país onde o patrono da indústria é o Barão de Mauá (que faliu), falando português com sotaque inglês e morando em Santa Teresa. Lendo-se Costa e Silva conhece-se a vida do possível patrono do comércio internacional brasileiro do século 19. Chachá (que morreu meio falido) certamente falava português com sotaque fongbé. Pode ter morado num daqueles morros de Salvador parecidos com o dos Prazeres, no Rio. De Santa Teresa, vê-se o morro dos Prazeres, e dos Prazeres vê-se Santa Teresa. Tem gente que acredita que esses morros fazem parte de civilizações diferentes.


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