São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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ENTREVISTA

Para o historiador José Murilo de Carvalho, Bush pode até pôr país "no eixo do mal" sob eventual governo petista"

"Dificuldades de Lula serão proporcionais à esperança que criou"

RAFAEL CARIELLO
DA SUCURSAL DO RIO

Desde o início efetivo da democracia brasileira, em 1945, a qualidade do eleitorado brasileiro tem melhorado, e a eleição "quase certa" de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é o resultado dessa "revolução passiva". A conclusão é do historiador José Murilo de Carvalho, 63, doutor em ciência política pela Universidade de Stanford (EUA) e professor titular de história da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Na entrevista que concedeu à Folha -realizada, a seu pedido, por e-mail-, Carvalho diz que as dificuldades a serem enfrentadas por um possível governo Lula "serão proporcionais às esperanças que sua candidatura despertou".
Este é o cenário de uma possível administração petista traçado por ele: facilidade para compor uma base parlamentar com o PSDB, dificuldade para lidar com expectativas irrealistas de mudança e provável "saco de maldades do "companheiro" Bush" -aí incluída a possibilidade de o país ser listado no "eixo do mal", ao lado do Iraque, Cuba e Coréia do Norte.

Folha - É possível dizer, como querem os petistas, que uma vitória de Lula seria um momento inédito na história brasileira?
Carvalho -
A vitória de Lula, a essa altura quase certa, significará uma guinada em nossa história republicana. Em parte, por sua origem social. Mas a novidade não estará principalmente aí. Já tivemos presidentes de origem social parecida. O exemplo mais claro é o de Nilo Peçanha, eleito vice-presidente na chapa de Afonso Pena para o quatriênio 1906-1909. Com a morte do presidente, Nilo assumiu e governou por 17 meses, sob o lema "paz e amor". Hoje, provavelmente se autodesignaria Nilinho Paz e Amor. Nilo era mulato e filho de dono de padaria.
Mas Nilo, na cor mais povo que Lula, integrara-se ao mundo da elite republicana. Formara-se em direito e seguira os passos tradicionais da carreira política. Lula é mais povo pela biografia. Não se integrou à elite, percorreu o caminho típico de um operário do setor moderno da economia, experiência que lhe deixou a marca indelével de um dedo decepado.
As exigências do marketing o levaram a podar a barba, a usar terno e gravata, a corrigir a gramática, a aceitar beber um Romanée-Conti. Mas esse não é seu mundo. Pelo que representa, ele é um estranho no ninho da elite. Aí a grande novidade, aí o desconforto de alguns e a esperança de muitos.

Folha - Existia algo na sociedade brasileira (ou nos sistemas eleitorais) que impossibilitasse essa novidade? Algo mudou?
Carvalho -
No sistema eleitoral não havia obstáculo à novidade, ao menos desde 45. Em nosso sistema de eleição presidencial, cada cidadão vale um voto, o que não acontece nas eleições parlamentares. Daí a tese de Celso Furtado segundo a qual os presidentes tendiam a ser menos conservadores do que o Congresso, o que seria fonte permanente de tensão. O que mudou foi o eleitor. A eleição atual não só aponta para a escolha de Lula, como indica a eliminação de candidatos que representam o que de pior sobrevive em nossa política. Resumiria a mudança dizendo que se está consolidando no país uma opinião pública cada vez mais atenta, cada vez mais intolerante com a corrupção, com o clientelismo e outras malandragens de políticos. Algo se move entre nós, meio em surdina, como uma revolução passiva, como gosta de falar Luís Werneck Vianna, inspirando-se em Gramsci.

Folha - O que significa, na história do país, um parlamento em que a maior bancada é de um partido de esquerda, o PT?
Carvalho -
Um partido de esquerda com maior bancada na Câmara é absoluta novidade. O fenômeno sugere que, se eliminados traços do sistema eleitoral que falseiam a representação, sobretudo os referentes à desigualdade entre eleitores de diferentes Estados e à lista aberta que desloca votos para candidatos não escolhidos pelo eleitor, talvez possamos reduzir a distância entre a representatividade do presidente e dos congressistas apontada por Celso Furtado. Essa redução facilitaria a formação de bases parlamentares.
Uma coalizão exclusivamente de esquerda me parece matematicamente impossível. O que é possível e o que me parece a melhor solução para o país seria uma coalizão de centro-esquerda, da qual o PSDB deveria fazer parte. É de se esperar que as cicatrizes da campanha, sobretudo do segundo turno, não impeçam tal aliança. Do contrário, o PT teria que depender da direita, numa esdrúxula coalizão de esquerda-direita.

Folha - A que se deve o mau desempenho de José Serra? A uma inabilidade para compor politicamente? Ao peso de ser governo?
Carvalho -
Às duas coisas. Independentemente do que dirá a história, oito anos de governo FHC trouxeram desgaste inegável para o presidente. Era tarefa quase impossível a um candidato carregar a herança do situacionismo e ao mesmo tempo convencer o eleitor de que representaria mudança. Serra não se revelou um candidato à altura da tarefa. Foi racional, quando se pedia carisma e emoção; foi desajeitado, quando se pedia desenvoltura no trato com o povo; e ingênuo, quando se pedia jogo de cintura. Daria um ótimo candidato a primeiro-ministro.

Folha - Como a história vai julgar os oito anos de FHC?
Carvalho -
A história costuma discordar dos contemporâneos. Foi o caso de Getúlio Vargas, deposto duas vezes. De JK, derrotado na sucessão. A nos guiarmos pela grande aceitação popular de Lula, o governo de FHC seria avaliado muito negativamente.
Minha impressão, no entanto, é que a história lhe será mais simpática. As razões para uma avaliação futura positiva seriam sobretudo as seguintes: a estabilidade da moeda, o aumento da transparência nas ações governamentais, a luta pela responsabilidade fiscal, o comportamento consistentemente tolerante e democrático do presidente, o prestígio internacional que conferiu ao país, o acerto de contas com as vítimas da ditadura, a luta constante em favor dos direitos humanos, os avanços na área da educação fundamental e, finalmente, a passagem tranquila do governo ao sucessor.

Folha - Um governo Lula pode encontrar dificuldades se não conseguir atender as demandas sociais reprimidas que a sua candidatura parece representar? De que tipo?
Carvalho -
As dificuldades serão proporcionais às esperanças que sua candidatura despertou. Terá que evitar o perigo do abraço mortal do apoio conservador que, ao lhe dar base de governo, pode lhe descaracterizar o programa. Terá que lidar com a cobrança dos setores mais militantes que o apóiam, dentro e fora do PT, que exigirão mudanças rápidas.
Terá ainda que haver-se com a armadilha criada pela grande expectativa de mudança que gerou na população, totalmente desproporcional em relação às possibilidades realistas de atendimento. A vontade de não desapontar tanta esperança e a necessidade de ter que deixar por menos será o fantasma que perseguirá o governo.

Folha - Lula e Serra já manifestaram restrições à Alca tal como ela é proposta pelos EUA. Que tipo de dificuldades o presidente pode ter com o governo George Bush?
Carvalho -
Do companheiro Bush, um eventual governo Lula pode esperar um saco sem fundo de maldades: imposição de sua agenda antiterrorista, exigência de enquadramento nas políticas do FMI, abertura de nosso mercado, fechamento do dele. Quem sabe, até mesmo encaixar o Brasil no eixo do mal? A gerência das relações exteriores exigirá muita firmeza para não ceder e muita competência para evitar reações amadorísticas.

Folha - O sr. vislumbra alguma possibilidade de transformação da desigualdade social no país?
Carvalho -
Não consigo visualizar a sobrevivência de nossa democracia política se ela não for capaz de produzir alguma democracia social. Se há um ponto em que um eventual governo Lula pode e deve imprimir sua marca é este. Será seu desempenho nesse campo que nos dirá no futuro se sua eleição significou de fato uma virada na história do país.


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