São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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ELIO GASPARI

Malan: o bicho-papão tucano

Como é que o governo sai dessa? No dia em que Lula chamou a ekipekonômica de "cega" e acusou-a de ter subordinado a oitava economia do mundo a "meia dúzia de banqueiros", o risco Brasil caiu 9,1%, o papel da dívida valorizou-se 5,85%, o dólar caiu 0,25% e a Bolsa subiu 6,34% -a maior alta desde novembro passado.
Está mal na foto o ministro Pedro Malan, aparecendo na televisão com uma expressão de John Kennedy na crise dos mísseis para anunciar que a onda petista inquieta o mundo e pode arruinar o Brasil.
O que Malan e o tucanato estão fazendo é terrorismo. Quem arruinou o Brasil foi a ekipekonômica. Lula pode ter exagerado dizendo que os banqueiros eram só meia dúzia. Mesmo assim, a 12 dúzias não chegam. Nenhum brasileiro adulto vai votar em Lula achando que ele é o candidato da banca ou do patronato. Nenhum investidor estrangeiro deixa seu dinheiro no Brasil porque a barba de Lula finalmente está bem cortada. O doutor Armínio sabe disso, eles ficam pelos juros de 21%.
Se a conversa que a ekipekonômica teve com FFHH há uns dez dias tivesse sido transmitida ao vivo, os brasileiros saberiam o tamanho do risco Pindorama, que nada tem a ver com Lula. O discurso público da ekipe não se destina a lançar luz sobre o debate.
Tome-se, por exemplo, a maior pancada levada por Lula nos últimos dias. Trata-se de um artigo da colunista americana Georgie Anne Geyer, uma das mais respeitadas jornalistas na cobertura da América Latina. A senhora tem horror a Fidel Castro, chama Lula de esquerdista, duvida de sua moderação, mas reconhece que ele está sendo eleito num quadro de falência social da politica de liberalização econômica praticada na América Latina. Há uma diferença entre os conservadores de boa cepa e a raça nativa. Uns acham que estão certos, mas reconhecem onde fracassaram. Os outros acham que nunca erraram e atribuem seus fracassos aos adversários.

Cavalaria tártara: o bicho-papão petista

O PT respondeu a Malan com uma elegância inglesa. Como se houvesse uma bancada de lordes proletários. O senador Mercadante e o doutor Antônio Palocci trataram o ministro como se fossem todos marqueses. Fino trato e boa educação. Pena que, na hora de reagir ao depoimento de Regina Duarte, a nação petista tenha descido a cavalaria tártara. Seu esquadrão avançado é a Central Única dos Trabalhadores. A senhora Duarte foi premiada com uma nota oficial da CUT, como se uma entidade sindical tivesse algo a ver com o que diz uma trabalhadora.
O PT parece ter dois sistemas nervosos. Num, discute com Malan dentro das normas do cavalheirismo. Uma espécie de PT-Romanée-Conti. No outro, nega a Regina Duarte o direito de se dizer assustada. PT-Pitu.
A brava nação petista precisa unificar o seu canto de guerra e a noção que tem de democracia. Ou desmobiliza os tártaros e fica com os lordes, ou diverte a patuléia, soltando a cavalaria em cima da ekipekonômica por uma semana.

A blindagem da Receita continua

Prossegue a blindagem da Receita Federal. No exercício das funções de ministro da Fazenda, o atual secretário, doutor Everardo Maciel, alterou a legislação que rege o Conselho de Contribuintes. Como todo assunto tributário, quanto mais relevante a medida, mais chato é entendê-la.
O Conselho de Contribuintes é a última instância do cidadão, das empresas e de seus interesses (nem sempre nessa ordem). É composto por 14 câmaras em que somam-se mais de cem cadeiras. Metade é preenchida pela sociedade e a outra metade, por representantes da Fazenda. Os conselheiros tem mandato de três anos.
O doutor Everardo Maciel antecipou o prazo de preenchimento das vagas da Fazenda no Conselho. Coisa assim: o mandato de um conselheiro terminava no dia 31 de dezembro, e o governo poderia reconduzi-lo até o dia 31 de março do ano seguinte. Pela mudança, se a vaga estará disponível no dia 31 de dezembro (o último de Everardo na Receita), ela poderá ser preenchida desde já. Maciel criou a figura do cargo pré-preenchido.
A portaria de Maciel sugere que ele atribuiu ao ministro o direito de criar novas câmaras, com mais lugares. Resta saber se o doutor Pedro Malan vai colocar sua assinatura nessa transação.
Já se chegou no Brasil a um patamar de civilização política no qual o presidente José Sarney deixou ao seu sucessor uma vaga no Supremo e outra no Tribunal de Contas. Não é justo nem faz o gênero de FFHH e Malan que, ao apagar das luzes de seus mandarinatos, um braço da burocracia saia por aí catando e criando cargos para preenchê-los de acordo com sua vontade. Em muitos casos, faz isso contra o que se supõe ser a vontade do próximo governo.
Estima-se que o doutor Everardo tenha aberto o caminho para nomear pelo menos 15 conselheiros. Ficaria muito mais bonito se entregasse essa dádiva ao seu sucessor. Mostraria que confia nele, merecendo a recíproca.

O Senado voltou a ajudar a história

Graças ao apoio do senador Lúcio Alcântara, os professores Paulo Bonavides e Roberto Amaral botaram na rua a terceira edição de seu monumental trabalho, os "Textos Políticos da História do Brasil". São nove volumes com mais de dez quilos e 10 mil páginas. Trazem 1.175 documentos, do óbvio (a carta de Caminha) a peças mais raras, como editoriais e papéis da crise de 1964, na deposição do presidente João Goulart.
O trabalho é editado pelo Senado. Tiraram mil exemplares e produziram um CD. Cada disco sairá por R$ 25. Considerando o peso do cartapácio (mais de dez quilos) e o preço (R$ 400), a versão magnética deixa o papelório para uso quase exclusivo de bibliotecas. Uma edição anterior dos "Texto Políticos" continua na internet.
Bonavides e Amaral trabalham há quase 25 anos nesse projeto. Antes de conseguirem o apoio do Senado, copiaram documentos a mão e chegaram a pagar revisores com dinheiro do próprio bolso. Nunca receberam um tostão pelo que fizeram. Tanto trabalho para dar voz aos outros justifica que se transcreva o que eles dizem na introdução:
"Revela a pesquisa documental a exclusão do povo brasileiro, figurante de uma opereta cujos atores principais são sempre extraídos das elites dirigente. Nós, o povo, somos ninguém. Somos personagem a que se negou papel".
O endereço do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, Cebela, depositário da coleção dos "Textos Políticos", é o seguinte:
http://www.cebela.org.br/txtpolit.html.

O mais votado
O consultor sindical João Guilherme Vargas Neto descobriu uma peculiaridade na eleição de domingo que vem. Se o novo presidente brasileiro tiver mais de 51 milhões de votos, será a pessoa que mais votos recebeu numa eleição livre em toda a história da humanidade.
Ficando no universo dos votados e empossados, o dono da maior votação foi Bill Clinton, com 47,4 milhões. Depois, veio Vladimir Putin, da Rússia, em março de 2000, com 39,7 milhões. Em 1998 FFHH teve 35 milhões.
Esse título é disputado pelos presidentes de três países: Brasil, Estados Unidos e Rússia. Todos têm mais de 100 milhões de eleitores e escolhem seus presidentes em eleições diretas.
A China não tem eleições livres. A Índia é uma república parlamentarista, e seu presidente é eleito pela Congresso. A Indonésia tem um regime presidencialista, mas a escolha do presidente é feita pela Assembléia do Povo.
Numa trapaça das leis eleitorais, o homem mais votado de todos os tempos ainda é Albert Gore Jr. Ele teve 50,99 milhões de votos em 2000, enquanto seu adversário, George W. Bush, ficou com 50,45 milhões. Bush levou a Presidência porque, pelo sistema americano, cada Estado vale um determinado número de votos eleitorais. O candidato que consegue mais votos populares num Estado arrasta todas as fichas. Assim, Bush levou os 25 votos eleitorais da Flórida porque teve -teve?- 537 votos populares a mais que Gore.

Saudades de FFHH
A canção petista ilustra, informa e alegra.
Admita-se que Regina Duarte apareceu no programa de José Serra pelos motivos mais equivocados que se possa imaginar. Admita-se que a sua declaração de que a vitória de Lula lhe dá medo é coisa estúpida. Admita-se até mesmo que esteja revogado o direito da cidadã Duarte ter opinião.
Admitidas todas essas coisas, sobra a observação de Lula a respeito da senhora:
"Possivelmente ela tem medo das novas atrizes da Globo".
Fino, o companheiro. Como ele mesmo diz: "Quanto mais meu adversário baixar o nível, mais nós vamos elevar".

Curso Madame Natasha de piano e português
Madame Natasha tem horror a música e eleição. Ela tem curiosidade por pessoas que usam palavras estrangeiras para designar coisas que têm denominação simples em português. Sustenta que por trás de uma palavra em inglês sempre há algo escondido em português.
Na semana passada percebeu que se está falando muito na possibilidade de um "default" da dívida externa brasileira.
A senhora começou a desconfiar que vem aí um calote. Se voltarem a falar em calote, o risco de "default" estará afastado.

Entrevista

Yan de Souza Carreirão

(46 anos, professor de ciência política da Universidade Federal de Santa Catarina, autor de "A Decisão do Voto nas Eleições Presidenciais Brasileiras")
-Há uma onda vermelha no ar?
-Acho que houve mais uma onda de insatisfação com o presidente, com o governo e com os partidos que os apoiam. Insatisfeito, o eleitor resolveu dar uma chance ao PT. Não se trata de uma guinada à esquerda. Em 1998 o presidente disse que não ia desvalorizar a moeda. Disse também que, tendo derrotado a inflação, ia derrotar o desemprego. Nessa época ele tinha em torno de 45% de aprovação. Caiu e não se recuperou. Hoje tem 23%. Some a isso o aumento do desemprego. A insatisfação abateu a votação de Serra no primeiro turno, mas ela não explicaria o aumentos das bancadas petistas. Esse crescimento vem da insatisfação dos eleitores para com os partidos que deram base política ao governo. O nome da onda é insatisfação. Ela levou as pessoas a perder o medo, a tomar o risco de uma mudança.
-Santa Catarina talvez tenha sido o Estado onde o desempenho do PT foi mais surpreendente. Pulou de dois para cinco numa bancada federal de 16 cadeiras. A estadual passou de cinco para nove em 40 cadeiras. Elegeu uma senadora. De onde saiu essa onda?
-Da insatisfação somada a um crescimento que vem desde os anos 80. Em 2000 o PT reelegeu os seus prefeitos em Blumenau e Chapecó. Além disso, elegeu o prefeito de Criciúma. Essa marcha municipal do PT, somada a um bom desempenho de suas administrações, é um fator que não deve ser desprezado. O PT catarinense tornou-se um partido competitivo. Ele não era. Desde 1945 a politica do Estado girou entre o centro e a direita. No atual sistema partidário, sempre que o PFL e o PPB se juntaram, venceram. Desta vez eles se juntaram e estão lutando no segundo turno da escolha do governador. Santa Catarina é um Estado com muitas cidades onde a economia é influenciada por duas ou três grandes empresas. Durante décadas essa situação deu um relativo controle político à velha ordem partidária. Acho que isso está esboroando.
-O que o senhor acha que representará a chegada da deputada Ideli Salvatti ao Senado?
-Ela não passará despercebida. Eu nunca imaginei que ela pudesse vencer. Na semana anterior à eleição estava em quarto lugar. A senadora vai levar para Brasília um estilo raro. Foi uma deputada estadual muito ativa, tanto no trabalho de fiscalização das contas públicas como na militância ao lado dos movimentos populares. Uma fiscal muito atenta. Ela vem do movimento sindical do professores. É uma mulher muito combativa, um ponto intermediário entre a senadora petista Marina Silva e a sua colega Heloísa Helena.

Com diploma
Num só discurso, em Fortaleza, a candidata tucana a vice-presidente, Rita Camata, inovou na geografia e no idioma. Disse que José Serra ajudou a construir o "porto de Sepetiba" (foi o de Pecém. Sepetiba fica no Rio).
Depois agradeceu a acolhida do povo "cereaense".



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