São Paulo, domingo, 20 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ VISÃO DA CRISE

Candido Mendes sustenta que os programas sociais asseguram o apoio das classes baixas a Lula, que deve ser reeleito em 2006

Lula perdeu a classe média, diz sociólogo

UIRÁ MACHADO
COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS

Ressentida e irritada com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a classe média, "classicamente amarrada ao moralismo", rompeu de forma "irrecuperável" com o PT. Por outro lado, em decorrência do êxito dos programas sociais, as classes baixas manterão a confiança no presidente, que será reeleito em 2006.
A análise é do sociólogo e cientista político Candido Mendes, 77, que lançou, na semana passada, o livro "Lula Depois de Lula" (Garamond), o terceiro dele sobre o atual presidente. Na entrevista a seguir, Mendes ainda afirma que a oposição "repete o pior do lacerdismo", diz que Lula se mostrou "muito mais importante" do que o PT e sugere o recall (que permite ao eleitor se manifestar sobre a continuidade ou não de um mandato antes de seu término) como solução para a corrupção.
 

Folha - Como o sr. vê a atual crise?
Candido Mendes -
A crise teve um componente inicial claramente do "Brasil bem", o Brasil que não se conformou de ter sido derrubado pela chegada do Lula. Esse Brasil, que eu chamo de neolulista, a classe média, acabou, em 2002, dando os votos além do que Lula teria naturalmente. Esse pessoal, hoje, está na maior irritação.
A classe média é, classicamente, amarrada ao moralismo. E, nisso, repetiu o fenômeno do lacerdismo. Os discursos do Roberto Jefferson são a repetição do lacerdismo reacordando a classe média.
É preciso ver que o Brasil continua o país das clientelas. Em que o cargo público era compensação das classes médias que, com a República, chegava ao poder. Em que o nepotismo se transforma na clientela, e a clientela se transforma no "mensalão".

Folha - O sr. vê o "mensalão" como algo "natural"?
Mendes -
Digo que o "mensalão" está na lógica normal da nova etapa. A posição é extremamente bem articulada e é anterior ao governo Lula. Mas o PT a comprou. A questão é ver quem estava por trás disso tudo. Quem estava ao lado de Marcos Valério? Por que pararam de ouvir Daniel Dantas?
O resultado é que disso sai uma condenação do PT pelas classes médias que acho irregenerável.

Folha - O sr. acha que a oposição tem atuado bem nessa crise?
Mendes -
Não. Acho que ela foi pega de surpresa. A oposição, hoje, está repetindo o pior do lacerdismo, com comportamentos típicos desse oportunismo político classicamente denuncista e moralista. Jefferson virou o vingador da moralidade pública.

Folha - O sr. não crê em uma conspiração das elites?
Mendes -
Não. Acho que não havia "timing" para isso. E acho que nunca os setores economicamente dominantes estiveram tão satisfeitos com o governo. O que há é uma classe média irrecuperável, ressentida, já que fez um enorme esforço para votar no Lula.

Folha - E se mudar a política econômica, numa eventual saída do ministro Antonio Palocci, o presidente perde a classe alta?
Mendes -
Não acho que o Palocci caia. Mas isso não importa. Acho que o Lula mostrou que nesse governo não há personagens indispensáveis. A não ser ele.

Folha - O sr. critica a atuação do STF na crise. Por quê?
Mendes -
Quando o STF decidiu que José Dirceu poderia ser submetido a processo de cassação por quebra de decoro, ele tomou uma decisão política. Entregou Dirceu às feras, na lógica de que era preciso cassá-lo como contrapartida à cassação de Jefferson.
Mas autorizar o Legislativo a julgar um deputado por sua atuação enquanto ministro, a meu ver, arruína o sistema de poderes.
Isso eu acho que é matéria para o Conselho da República, previsto na Constituição [art. 89] e que nunca foi usado. Aliás, há outra solução para a crise mais geral, e essa eu propus ao presidente em agosto: o recall. Acho que é a grande solução para a corrupção.

Folha - Por quê?
Mendes -
No fundo, não se pode dar quatro anos para o sujeito comer à vontade. Claro que a solução última é cidadania e etc. Mas, se você corta ao meio o período da digestão, já dá uma travada na corrupção. Ninguém vai arriscar entrar em esquema ilícito sabendo que o povo vai poder cobrar mais cedo, no meio do mandato.

Folha - Se houvesse um recall hoje, o sr. acha que Lula venceria?
Mendes -
Acho que sim.

Folha - Por quê?
Mendes -
Há três questões que fazem com que a classe marginalizada mantenha íntegra a confiança no Lula. Primeiro, por meio do Bolsa-Família, que já atinge 11 milhões de pessoas e tem um efeito irradiador incrível. O segundo ponto é o avanço do SUS. O terceiro é a educação, e aí vem o indiscutível sucesso do ProUni.
E há outro fator: a oposição não saiu dessa crise com nenhum campeão.

Folha - Ou seja, o sr. acha que Lula tem chances de vencer em 2006?
Mendes -
Estou absolutamente certo de que ele vence em 2006.

Folha - O sr. agora escreveu o terceiro livro sobre Lula. Por que todo esse interesse?
Mendes -
Há certo tempo eu me interessei muito pelo que podia ser o Lula. Por ter conseguido ser, por meio da idéia do partido diferente, a alternativa ao que, em uma situação de injustiça social, poderia levar à violência.
Por meio da investidura política, do chegar lá pelo voto, ele conseguiu uma integração simbólica.

Folha - Pelo carisma?
Mendes -
O Lula não é carismático. O que ele tem é uma capacidade de integração social e identificação simbólica. Há um capital de mudança que torna o Lula muito mais importante do que o PT.


Texto Anterior: Herança militar: Governo abre arquivos até o fim do ano
Próximo Texto: Elio Gaspari: Os tucanos exterminadores
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.