|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PERFIL
DILMA ROUSSEFF
Ilusões armadas
Trajetória da pré-candidata do PT ao
Planalto começa em escola de freiras em
Belo Horizonte e passa por luta armada,
prisão, Rio, São Paulo e Rio Grande do
Sul; ministra revela pela primeira vez que
fez treinamento militar no Uruguai
Numa viagem recente a Belo Horizonte, Dilma Rousseff encontrou uma
velha amiga do Colégio Sion, escola na
qual cursou o ensino fundamental a
partir de 1955 na capital mineira. "Ela
me disse que só uma aluna da minha
turma era psiquiatra, tirando também
outras duas que eu conheço e seguiram
carreira profissional". E o restante? "As
outras todas eram donas de casa".
O Sion era um colégio de freiras. Só
para meninas. Eram educadas para debutar nos bailes de 15 anos. Não que fosse uma escola fácil. Quando Dilma chegou com o uniforme azul marinho para
o primeiro dia de aula, aos 7 anos, a professora escreveu um texto no quadro
negro e ordenou: "Copiem".
FERNANDO RODRIGUES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Numa viagem recente a Belo Horizonte, Dilma
Rousseff encontrou uma velha
amiga do colégio Sion, escola na
qual cursou o ensino fundamental a partir de 1955 na capital mineira. "Ela me disse que
só uma aluna da minha turma
era psiquiatra, tirando também
outras duas que eu conheço e
seguiram carreira profissional." E o restante? "As outras
todas eram donas de casa."
O Sion era um colégio de freiras. Só para meninas. Eram
educadas para debutar nos bailes de 15 anos. Não que fosse
uma escola fácil. Quando Dilma
chegou com o uniforme azul
marinho para o primeiro dia de
aula, aos 7 anos, a professora
escreveu um texto no quadro
negro e ordenou: "Copiem".
"Eu tinha feito o jardim de
infância no Isabela Hendrix. E
lá não se ensinava a escrever. A
gente pintava. Eu entrei no primeiro ano completamente
analfabeta. E tinha uma porção
de meninas de um colégio chamado 12 de Dezembro. Todas
sabiam escrever. E eu, não. Minha mão suava, borrava o caderno. Eu tentava copiar como
se fosse desenho sem saber o
que estava copiando."
A partir desse episódio, Dilma diz ter desenvolvido "uma
vontade de aprender a ler que
era um horror". Foi incentivada pelo pai, o búlgaro naturalizado brasileiro Pétar Russév
-cujo nome depois foi aportuguesado para Pedro Rousseff.
"Ele foi uma pessoa que teve
forte vínculo com todos os movimentos de transformação europeus", relatou a ministra da
Casa Civil em uma das sessões
de conversa que concedeu à
Folha desde janeiro deste ano.
Primeiro, foram livros infantis, "uma coleção da Melhoramentos, uns livrinhos desse tamanhozinho, assim", diz Dilma, indicando que eram edições de bolso. Depois, os contos
dos irmãos Grimm, os alemães
que popularizaram fábulas como Cinderela, Branca de Neve
e João e Maria. Mas logo as leituras foram mudando de tom.
"Eu li "Germinal" aos 14 anos",
diz, citando o mais famoso romance do francês Émile Zola,
de 1885, conhecido pela descrição naturalista, bem crua, das
condições de trabalho sub-humanas de mineiros de carvão.
"Ela teve uma formação intelectual precoce. Lia muito, de
histórias em quadrinhos até
Marcel Proust e Jean-Paul Sartre. Sou cinco anos mais velho,
mas lembro-me dela no movimento secundarista já dando
aula para futuros vestibulandos", diz Claudio Galeno Linhares, 67, que foi casado com a
ministra nos anos 60.
Família
O pai de Dilma, Pedro Rousseff, veio para a América Latina
na década de 30 do século passado. Viúvo, deixara um filho,
Luben, na Bulgária. Passou por
Salvador, Buenos Aires e acabou se instalando em São Paulo. Fez negócios na construção
civil e com empreitadas para
grandes empresas, como a
Mannesmann.
Já estava havia cerca de dez
anos no Brasil quando, numa
viagem a Uberaba, conheceu a
professora primária Dilma Jane Silva, nascida em Friburgo
(RJ), mas radicada em solo mineiro. Casaram-se e tiveram
três filhos. Igor nasceu em janeiro de 1947, Dilma, em dezembro do mesmo ano, e Zana,
em 1951. A família escolheu Belo Horizonte para morar.
Levavam uma vida confortável. Passavam férias no Espírito
Santo ou no Rio. Às vezes, viajavam de avião. Não era uma clássica família tradicional mineira. Os filhos não precisavam ter
uma religião. Escolhiam uma fé
se assim desejassem. O pai frequentava cassinos, gostava de
fumar e beber socialmente.
Quando morreu, em 1962,
Pedro deixou a família numa situação tranquila. Cerca de 15
bons imóveis garantem renda
para a viúva Dilma Jane até hoje. Um dos apartamentos fica
no centro de Belo Horizonte.
Foi exatamente esse apartamento o usado por Dilma Rousseff no final dos anos 60 para
fazer reuniões com colegas militantes de esquerda e preparar
ações a favor da luta armada
contra a ditadura militar.
Ao terminar o ginásio, em
1963, Dilma prestou concurso
para fazer o clássico em ciências sociais (um dos ramos do
ensino médio daquela época).
Em 1964 começou no Colégio
Estadual Central. "Esse era "o"
colégio de Belo Horizonte. Ali
acontecia toda a agitação política estudantil da cidade", recorda-se Fernando Pimentel, 58,
ex-prefeito de Belo Horizonte
(2005-2008) e também ex-aluno do Estadual Central -no
qual frequentava uma célula
política comandada pela pré-candidata do PT ao Planalto.
Quando começou o clássico,
em 1964, Dilma teve contato
com militantes da esquerda organizada. "Foi a primeira vez
que eu soube que as pessoas
iam presas por crime de opinião", recorda-se. Em 31 de
março daquele ano, o país sofreu um golpe de Estado. Uma
ditadura militar se instalou.
Ao se aproximar dos grupos
de esquerda, Dilma recebeu um
texto para ler. "Era um livrinho. Chamava-se "Acumulação
primitiva". Era um dos capítulos mais vitais do "Capital", do
Marx. Li e não entendi. Aí eu
perguntei o seguinte: "afinal de
contas, ele é a favor dos trabalhadores ou não?'"
É raro Dilma tratar de temas
mais filosóficos e não inserir
uma citação literária. Sobre religião, por exemplo, fala dos romances de Fiódor Dostoiévski
(1821-1881), permeados do conceito de que, "se Deus não existe, tudo é permitido". Ao ser
presa acusada de subversão pela ditadura militar, em 1970,
sua ficha preenchida pela polícia paulista continha a inscrição "não tem religião" em um
dos campos.
Hoje, a ministra contemporiza. Numa sabatina na Folha,
em 2007, disse: "Fiquei durante muito tempo meio descrente. Acredito que as diferentes
religiosidades são fundamentais para as pessoas viverem. A
gente não pode achar que existe aquele seu Deus". Mas ela
acredita em Deus? "Eu me
equilibro nessa questão. Será
que há? Será que não há? Eu
me equilibro nela."
Militância
Egressa do Sion, Dilma tinha
facilidade não apenas com literatura, mas também com matemática. No movimento estudantil secundarista, entre reuniões para discutir política e
como seria a próxima passeata
de protesto, a simpatizante da
Polop dava aulas particulares.
A Polop era como todos se referiam à Organização Revolucionária Marxista Política Operária. Mais tarde, em 1967, o grupo virou Comando de Libertação Nacional (Colina).
"O Zé Aníbal estudava no colégio Marconi e lá não tinha boa
formação em matemática. Então fui eu estudar matemática
com ele, na minha casa, todos
os dias", diz Dilma. O Zé Aníbal
que estudou com Dilma em
1966 é o deputado federal José
Aníbal (PSDB-SP), à época
também um simpatizante da
Polop em Belo Horizonte. Os
dois passaram no vestibular e
entraram juntos para a Face
(Faculdade de Ciências Econômicas) da UFMG.
O futuro deputado tucano teve a ajuda da futura petista não
só para aprender matemática.
Na primeira semana de aula,
em 1967, a Polop estava tentando destronar um pouco o grupo
político de esquerda AP (Ação
Popular), ligado à Igreja Católica, então dominante no movimento estudantil.
Zé Aníbal foi escolhido para
ser candidato a representante
dos primeiranistas. "A Dilma
fez muita campanha para mim.
Trabalhou como cabo eleitoral.
Ganhei por um voto de diferença contra o candidato da AP",
relata o hoje deputado federal
pelo PSDB paulista.
Ser da Polop era estar por
dentro do que se passava nas
principais rodas políticas e culturais de Belo Horizonte. "A
Polop misturava de tudo. Tinha
Lênin, Marx, Rosa de Luxemburgo e uma pitada de Trotsky.
Era o grupo mais intelectualizado. O pessoal da AP rezava o
dia inteiro. Os do PC do B só
liam Mao Tse-Tung. A Polop
era um movimento iluminista",
descreve Apolo Heringer, 67,
um dos gurus da esquerda belo-horizontina nos anos 60.
Não era um grupo numeroso.
Basta dizer que um dos principais veículos a conduzir os militantes para cima e para baixo
era um Volkswagen sedã verde
abacate. O Fusca foi o presente
que Zé Aníbal ganhou do pai ao
entrar na faculdade. Dilma andou muito naquele fusquinha.
A verdade é que as conversas
eram sobre revolução e exploração dos trabalhadores, mas
"pobre, mesmo, não tinha muitos, não". A lembrança é do ex-prefeito de Belo Horizonte Fernando Pimentel. "Todos eram,
pelo menos, de classe média".
Foi numa sessão de cinema,
"possivelmente um filme italiano, do [Federico] Fellini", que
começou o namoro entre Dilma e o jornalista Cláudio Galeno de Magalhães Linhares.
Galeno já havia estado preso
e tinha habilidade com produtos químicos. Seu pai era farmacêutico. "Andaram falando
que eu fabricava bombas. Não
tem nada disso. Fabriquei alguns protótipos de uma caixa
com um dispositivo eletroquímico. Era para guardar documentos secretos. Se a repressão
abrisse, a caixa entraria em
combustão", diz. Só duas dessas engenhocas foram fabricadas. Uma acabou nas mãos da
polícia. Não pegou fogo. O dispositivo não estava armado.
O casamento foi em setembro de 1967, só no civil. Familiares e amigos compareceram
ao cartório. "Eram 30 ou 40
pessoas. Muitos já eram procurados. Se a polícia baixasse ali
levaria alguns", diz Galeno, 25
anos à época. A noiva tinha 19.
"Aparelho"
Foram morar no apartamento da família Rousseff, no centro de BH. Eram tantas as reuniões políticas que o local era
considerado quase um "aparelho" da Polop e do Colina
-"aparelho" era o jargão para
designar os endereços para encontros das organizações proscritas pela ditadura militar.
Foi nesse apartamento que
Dilma e Galeno tiveram seus
últimos dias antes de cair na
clandestinidade. Jorge Nahas e
outros militantes foram presos
em janeiro de 1969, num confronto com a polícia. Morreram
dois policiais. Os organismos
de repressão mineiros começaram a caçar ostensivamente os
militantes de esquerda -os
subversivos, como se dizia.
O casal passou a dormir em
locais diferentes. "Mas daí nos
disseram que alguém havia escondido microfilmes nas caixas
dos interruptores de quarto do
apartamento. Eram fotos de locais usados em nossos treinamentos militares", disse Galeno à Folha em entrevista neste
mês, em Belo Horizonte.
Com todo cuidado, entraram
a pé pela garagem. Galeno descreve: "Olhamos pela janela e
vimos uma caminhonete C14 e
um Aero Willys, os dois de cor
preta, da polícia. Ficamos em
silêncio total, sem acender as
luzes. Encontramos os microfilmes que nem eu nem a Dilma
sabíamos da existência. O problema era como destruí-los".
Jogar no vaso sanitário e dar
a descarga faria barulho. Queimar produziria fumaça. A solução foi desenrolar um cabide
de arame enfiar os microfilmes
nos ralos do apartamento.
"Mas você imagine a tensão...
Eles não sabiam que estávamos
lá. Um policial subiu e tocou a
campainha. Nós vimos que era
um policial pela fresta de baixo
da porta, com todo cuidado. Ele
usava coturnos", relata Dilma.
Foi uma noite em claro. Galeno se lembra de terem levado
colchões para a sala, em frente
à porta. "Era uma espécie de
barricada. Se entrassem atirando nós teríamos alguma proteção inicial mínima." Por volta
das 6h do dia seguinte, um barulho no corredor externo chamou a atenção. Dilma relata:
"Era a empregada do vizinho
esperando o elevador. Pelo
olho mágico deu para ver que
ela levantou a saia, coçou a coxa e ajustou a meia. Uma mulher só faria aquilo no corredor
se soubesse que estava sozinha.
Olhamos pela janela e os carros
da polícia não estavam lá."
Clandestinidade
Era o momento da troca de
turno. "Eu disse: vamos nessa",
conta Galeno. Dias depois os
dois já estavam no Rio, clandestinos, usando nomes falsos e
pulando de casa em casa. O casamento também estava chegando ao final. Dilma ficou no
Rio. O marido foi para o Rio
Grande do Sul, atendendo a um
chamado do Colina. No dia 1º
de janeiro de 1970, ele participou de um sequestro de um
avião em Montevidéu, no Uruguai, e refugiou-se em Cuba.
O ano de 1969 foi intenso para Dilma. Ela usou vários codinomes, entre os quais Luiza,
Wanda, Marina, Estela, Maria e
Lúcia. Conheceu seu segundo
marido, o advogado gaúcho
Carlos Franklin Paixão de
Araújo. Quando se viram pela
primeira vez, ele tinha 31 anos.
Dilma estava com 21. "Sou 9
anos e 10 meses mais velho que
a Dilma", calculou Araújo numa das conversas que teve com
a Folha em Porto Alegre, onde
mora e trabalha até hoje.
Era um comunista que conhecia União Soviética, Polônia, Checoslováquia. Havia militado ao lado de Francisco Julião nas Ligas Camponesas, no
Nordeste. Algumas semanas
depois de se conhecerem, no
início de 1969, Araújo e Dilma
já estavam vivendo juntos. "Foi
uma paixão. Ela era muito linda. Ela era uma mulher muito
bonita. Mesmo usando óculos."
Dilma tinha 9 graus de miopia.
Hoje, usa lentes de contato.
VAR-Palmares
Naquele final de anos 60, a
hoje ministra participou de
reuniões secretas em São Paulo
e no Rio nas quais as organizações de esquerda armada iam
se fundindo ou rachando conforme a ideologia do momento.
"O livrinho do Régis Debray, "A
revolução na revolução", colocou fogo em todos. O texto chegou mimeografado para nós,
contrabandeado do Uruguai.
Muitos acharam que o foquismo era a solução. Por um momento, a Dilma achou isso também", diz Apolo Heringer.
Pensador de esquerda francês, Debray morou em Cuba,
conheceu Fidel Castro e Che
Guevara. Difundiu a teoria do
foco. Heringer, hoje um pacifista e ambientalista, descreve:
"Era a tese da coluna móvel estratégica. Seria o organizador
coletivo para movimentar as
massas, como um motor. Atuava-se nas cidades e refugiava-se
nas florestas, derrotando o
Exército aos poucos, a cada
combate, conquistando adesão
das massas. Não tinha a menor
base na realidade brasileira".
Deu-se então a fusão do Colina, de Dilma e Araújo, com a
Vanguarda Popular Revolucionária, de Carlos Lamarca. A nova organização, criada em meados de 1969, chamava-se Vanguarda Armada Revolucionária
Palmares (VAR-Palmares).
O novo grupo falava em combater a ditadura, mas a alternativa não era propriamente democracia. Em 1970, um militante foi preso em Goiânia com
um estatuto da organização. A
VAR-Palmares se definia como
instituição "político-militar de
caráter partidário, marxista-leninista, que se propõe a cumprir todas as tarefas da guerra
revolucionária e da construção
do Partido da Classe Operária,
com o objetivo de tomar o poder e construir o socialismo".
Quem descumprisse o cânone interno ficava sujeito a sanções de "censura, verbal ou escrita", "expulsão" e até "justiçamento" -essa pena de morte
seria "aplicada por um tribunal
revolucionário", e infrator poderia ou não "estar presente ou
tomar conhecimento" da pena.
Treinamento militar
A associação entre Colina e
VPR durou poucos meses. Lamarca queria aprofundar as
ações armadas. Outros divergiam. Racharam antes do final
de 1969. Mas ainda deu tempo
para Dilma ir ao Uruguai clandestinamente ser treinada em
técnicas militares -ela não
precisa o momento exato.
Em março de 2009, à Folha,
Dilma havia negado esse treinamento de forma categórica:
"Nunca fiz nem treinamento
no exterior nem ação armada".
Confrontada com a contradição, alega que, à época, não
queria falar de atos envolvendo
outros países. Resolveu fazer a
revelação depois da eleição de
José Mujica, ex-guerrilheiro da
organização Tupamaros, que
lutou contra a ditadura militar
uruguaia. "O presidente Mujica
está ali e sabe como é que foram os anos 70", diz Dilma.
A seguir, seu relato, inédito,
sobre o treinamento militar -e
não de "guerrilha", diz ela.
"Era perto daqui, no Uruguai. Geralmente a gente fazia
numa fazenda. Era mais seguro
você fazer na fronteira. Eu estava no Rio e fui a Porto Alegre.
Foi do lado de lá da fronteira. Ia
pouca gente. Na minha vez foram cinco ou seis pessoas. Eu
usava uns óculos com lentes
bem grossas. Eu nunca tive
pontaria, mas pegava bem. Era
uma ótima limpadora. O meu
treinamento foi muito simplório. Não se atirava muito. Montava-se e desmontava-se [armas]. Também [havia treinamento] de segurança. Você olha como é que faz para não
ser seguido. Eles chamavam de
treinamento de inteligência."
Texto Anterior: PT deve dizer "não" a PMDB, afirma Singer Próximo Texto: Frases Índice
|