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TERRA À VISTA
Invadidos, invasores e brasileiros
CONTARDO CALIGARIS
Colunista da Folha
PORTO SEGURO - Na
Conferência dos Povos Indígenas em Coroa Vermelha, escuto os discursos roucos, tensos,
comovidos. Por um lado, os índios se fazem porta-vozes de
todos os excluídos da história
do Brasil. Isso funciona sem
problema.
Por outro lado, lembram a
tragédia deles: como repetem
os oradores, são 500 anos de invasão e extermínio. "Antes de
1500, cada dia era dia de índio". É verdade, mas agora é
complicado distribuir os crachás da história.
A oposição entre invasores e
invadidos é emaranhada. É
tarde para resolvê-la pensando
em planos de resistência e de
guerra. Os índios, com a exceção de alguns silvícolas, não
são mais os mesmos que receberam Nicolau Coelho nessas
praias. Hoje eles vestem suas
saias de palha, pintam o rosto e
o corpo, mas sabem que para
muitos é uma maneira de lembrar quem eles foram. Um artifício temporário.
Os pretensos brancos sabem
que desde o descobrimento escravizaram, exterminaram os
índios, mas não pararam de
sonhar com sua pureza. E com
sua beleza. Não pararam de
idealizá-los. Eles sabem também (não precisam de Gilberto
Freire para isso, é uma verdade
confirmada pelo DNA) o quanto é frequente haver uma índia
no passado da família.
"Descobrimento" é um termo problemático. "Achamento", que é a palavra de Pero
Vaz de Caminha, se presta à
mesma complicação. Os portugueses, segundo eles, "descobriram" os índios. Ora, os índios já sabiam existir bem antes da chegada dos portugueses. E poderiam dizer que descobriram os portugueses e suas
caravelas 500 anos atrás.
Mas "os brasileiros", a descendência dos marujos portugueses que pularam no mar e
decidiram ficar com os índios,
foram o quê?
A "invenção" dos brasileiros
(e portanto do Brasil) teria minha preferência, pois colocaria
o acento sobre o que os portugueses e os índios (e depois os
negros e todos os outros) fizeram juntos.
Para isso seria preciso acreditar que todos compartilham
hoje um pouco do mesmo destino, que têm uma invenção
comum, além do prazer de
misturar genes.
Na Conferência dos Povos Indígenas, R., brasileira "branca", deixa cair uma lágrima.
Índios, malocas e indiadas, ela
está vendo pela primeira vez
na vida. Mas as histórias que
ela escuta lhe doem como se
fossem as suas. Chora de pena?
De culpa? Chora de divisão.
Justamente porque essas histórias são também suas.
A miscigenação complica e
cria dificuldades semânticas
entre invasor e invadido, colonizador e colonizado.
Se os 500 anos não tivessem
produzido tamanha exclusão,
quem sabe a coisa se resolvesse
na possibilidade de dizerem
todos, hoje: "nós, brasileiros".
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