São Paulo, sexta-feira, 21 de abril de 2000


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TERRA À VISTA

Invadidos, invasores e brasileiros

CONTARDO CALIGARIS
Colunista da Folha

PORTO SEGURO - Na Conferência dos Povos Indígenas em Coroa Vermelha, escuto os discursos roucos, tensos, comovidos. Por um lado, os índios se fazem porta-vozes de todos os excluídos da história do Brasil. Isso funciona sem problema.
Por outro lado, lembram a tragédia deles: como repetem os oradores, são 500 anos de invasão e extermínio. "Antes de 1500, cada dia era dia de índio". É verdade, mas agora é complicado distribuir os crachás da história.
A oposição entre invasores e invadidos é emaranhada. É tarde para resolvê-la pensando em planos de resistência e de guerra. Os índios, com a exceção de alguns silvícolas, não são mais os mesmos que receberam Nicolau Coelho nessas praias. Hoje eles vestem suas saias de palha, pintam o rosto e o corpo, mas sabem que para muitos é uma maneira de lembrar quem eles foram. Um artifício temporário.
Os pretensos brancos sabem que desde o descobrimento escravizaram, exterminaram os índios, mas não pararam de sonhar com sua pureza. E com sua beleza. Não pararam de idealizá-los. Eles sabem também (não precisam de Gilberto Freire para isso, é uma verdade confirmada pelo DNA) o quanto é frequente haver uma índia no passado da família.

"Descobrimento" é um termo problemático. "Achamento", que é a palavra de Pero Vaz de Caminha, se presta à mesma complicação. Os portugueses, segundo eles, "descobriram" os índios. Ora, os índios já sabiam existir bem antes da chegada dos portugueses. E poderiam dizer que descobriram os portugueses e suas caravelas 500 anos atrás.
Mas "os brasileiros", a descendência dos marujos portugueses que pularam no mar e decidiram ficar com os índios, foram o quê?
A "invenção" dos brasileiros (e portanto do Brasil) teria minha preferência, pois colocaria o acento sobre o que os portugueses e os índios (e depois os negros e todos os outros) fizeram juntos.
Para isso seria preciso acreditar que todos compartilham hoje um pouco do mesmo destino, que têm uma invenção comum, além do prazer de misturar genes.

Na Conferência dos Povos Indígenas, R., brasileira "branca", deixa cair uma lágrima. Índios, malocas e indiadas, ela está vendo pela primeira vez na vida. Mas as histórias que ela escuta lhe doem como se fossem as suas. Chora de pena? De culpa? Chora de divisão. Justamente porque essas histórias são também suas.

A miscigenação complica e cria dificuldades semânticas entre invasor e invadido, colonizador e colonizado.
Se os 500 anos não tivessem produzido tamanha exclusão, quem sabe a coisa se resolvesse na possibilidade de dizerem todos, hoje: "nós, brasileiros".



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