|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"A mídia diz: Somos onipotentes e fazemos seu silêncio falar"
"Prezados alunos,
soube, por alguns colegas professores, que muitos de vocês estão intrigados ou perplexos com meu suposto "silêncio". Digo suposto porque, como
lhes mostrarei a seguir, essa imagem foi
construída pelos meios de comunicação, particularmente pela imprensa.
Na verdade, tenho falado bastante em
vários grupos de discussão política que
se formaram pelo país, mas tenho evitado a mídia e vou lhes dizer os motivos. Antes de fazê-lo, porém, quero fazer algumas observações gerais.
1. Vocês devem estar lembrados de
que, durante o segundo turno das eleições presidenciais, a mídia (imprensa,
rádio e televisão) afirmava que Lula
não iria poder governar por causa dos
radicais do PT, isto é, pessoas como
Heloisa Helena, Babá e Luciana Genro.
Você não acham curioso que, de meados de 2003 e sobretudo hoje, essas pessoas tenham sido transformadas pela
mesma mídia em portadores da racionalidade e da ética, verdadeiros porta-vozes de um PT que foi traído e que teria desaparecido? Como indagava o
poeta: "Mudou o mundo ou mudei
eu?". Ou deveríamos indagar: a mídia é
volúvel ou possui interesses muito claros, instrumentalizando aqueles podem servi-los conforme soprem os
ventos?
2. Vocês devem estar lembrados de
que, desde os primeiros dias do governo Lula, uma parte da mídia, manifestando preconceito de classe, afirmava
que, o presidente da República, não
tendo curso universitário nem sabendo
falar várias línguas, não tinha competência para governar? Cansando dessa
tecla, que não surtia resultado, passou-se a ironizar e criticar os discursos de
Lula e seus improvisos. Não tendo isso
dado resultado, passou-se a falar o populismo presidencial, isto é, a forma arcaica do governo. Como isso também
não deu resultado, passou-se a falar
num país à beira da crise, alguns chegando a dizer que estávamos numa situação parecida com a de março de
1964 e, portanto, às vésperas de um golpe de Estado! Como o golpe não veio
(ele veio agora, sob a forma de um golpe branco), passou-se a falar em crise
do governo (as divergências entre Palocci e Dirceu) e em crise do PT (as divergências entre as tendências).
Penso que um dos pontos altos dessa
seqüência foi um artigo de um jornalista que dizia que, na arma do policial
que matou o brasileiro em Londres, estava a impressão digital de Lula, pois
não criando empregos, forçara a emigração! Além de delirante, a afirmação
ocultava: a) que aquele brasileiro estava
na Inglaterra há cinco anos (emigrou
durante o governo FHC); b) estavam
publicados os dados de crescimento do
emprego no Brasil nos últimos dois
anos. Eu poderia prosseguir, mas creio
ser suficiente o que mencionei para que
se perceba que estamos caminhando
sobre um terreno completamente minado.
3. As duas primeiras observações me
conduzem a uma terceira, que julgo a
mais importante. Vocês sabem que, entre os princípios que norteiam a vida
democrática, o direito à informação é
um dos mais fundamentais. De fato, na
medida em que a democracia afirma a
igualdade política dos cidadãos, afirma
por isso mesmo que todos são igualmente competentes em política. Ora,
essa competência cidadã depende da
qualidade da informação cuja ausência
nos torna politicamente incompetentes. Assim, esse direito democrático é
inseparável da vida republicana, ou seja, da existência do espaço público das
opiniões. Em termos democráticos e
republicanos, a esfera da opinião pública institui o campo público das discussões, dos debates, da produção e recepção das informações pelos cidadãos. E
um direito, como vocês sabem, é sempre universal, distinguindo-se do interesse, pois este é sempre particular.
Ora, qual o problema? Na sociedade capitalista, os meios de comunicação são
empresas privadas e, portanto, pertencem ao espaço privado dos interesses
de mercado; por conseguinte, não são
propícios à esfera pública das opiniões,
colocando para os cidadãos, em geral, e
para os intelectuais, em particular, uma
verdadeira aporia, pois operam como
meio de acesso à esfera pública, mas esse meio é regido por imperativos privados. Em outras palavras, estamos diante de um campo público de direitos regido por campos de interesses privados. E estes sempre ganham a parada.
Apesar de tudo o que lhes disse acima, fiz, como os demais (no mundo inteiro, aliás), uso dos meios de comunicação, consciente dos limites e dos problemas envolvidos neles e por eles. Exatamente por isso, hoje, vocês perguntam por que não os usei para discutir a
difícil conjuntura brasileira. Tenho
quatro motivos principais para isso. O
primeiro, é de ordem estritamente pessoal. Os que fizeram meu curso no semestre passado sabem que mal pude
ministrá-lo em decorrência do gravíssimo problema de saúde de minha
mãe. Aos 91 anos, minha mãe, no dia 24
de fevereiro, teve um derrame cerebral
hemorrágico, permaneceu em coma
durante dois meses e, ao retornar à
consciência, estava afásica, hemiplégica, com problemas renais e pulmonares. De fevereiro ao início de junho,
permaneci no hospital, fazendo-lhe
companhia durante 24 horas. Cancelei
todos os meus compromissos nacionais e internacionais, não participei das
atividades do ano Brasil-França, não
compareci às reuniões do Conselho
Nacional de Educação, não participei
das reuniões mensais do grupo de discussão política e não prestei atenção no
que se passava no país. Assim, na fase
inicial da crise política, eu não tinha a
menor condição, nem o desejo, de me
manifestar publicamente.
O segundo motivo foi, e é, a consciência da desinformação. Vendo algumas sessões das CPIs e noticiários de
televisão, ouvindo as rádios e lendo jornais, dava-me conta do bombardeio de
notícias desencontradas, que não permitiam formar um quadro de referência mínimo para emitir algum juízo.
Além disso, pouco a pouco, tornava-se
claro não só que as notícias eram desencontradas, mas que também eram
apresentadas como surpresas diárias: o
que se imaginava saber na véspera era
desmentido no dia seguinte. Mas não
só isso. Era também possível observar,
sobretudo no caso dos jornais e televisões, que as manchetes ou "chamadas"
não correspondiam exatamente ao
conteúdo da notícia, fazendo com que
se desconfiasse de ambos. A desinformação (como disse alguém outro dia:
"da missa, não sabemos a metade"),
não permitindo análise e reflexão, pode
levar a opiniões levianas, num momento que não é leve e sim grave.
Além disso, a notícia já é apresentada
como opinião, em lugar de permitir a
formação de uma opinião. Por isso
mesmo, a forma da notícia tornou-se
assustadora, pois indícios e suspeitas
são apresentados como evidências, e,
antes que haja provas, os suspeitos são
julgados culpados e condenados. Esse
procedimento fere dois princípios afirmados em 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, quais
sejam, todo cidadão é considerado inocente até prova em contrário e ninguém poderá ser condenado por suas
idéias, mas somente por seus atos. Ora,
vocês conhecem o texto de Hegel [filósofo alemão, 1770-1831], na "Fenomenologia do Espírito", sobre o Terror
(em 1793), isto é, a transformação sumária do suspeito em culpado e sua
condenação à morte sem direito de defesa, morte efetuada sob a forma do espetáculo público. Essa perspectiva, como vocês também sabem, é também
desenvolvida por Arendt [Hannah
Arendt, filósofa alemã, naturalizada
norte-americana, 1906-1975] e Lefort
[Claude Lefort, filósofo francês] a respeito dos totalitarismos e seus tribunais, e para isso ambos enfatizam, na
Declaração de 1789, o princípio referente à não criminalização das idéias,
assinalando que nos regimes totalitários a opinião dissidente é tratada como crime.
Assim, na presente circunstância
brasileira, a impressão geral deixada
pela mídia é da mescla de espetáculo e
terror, tornando mais difícil do que já
era manifestar idéias e opiniões nela e
por meio dela.
Meu terceiro motivo será compreendido por vocês quando lerem os artigos
de jornal que inseri no final desta carta.
Um artigo foi escrito antes da posse de
Lula ["Desconfiança saudável", na Folha, em 8.dez.2002], alertando para o
risco de uma "transição", isto é, um
acordo com o PSDB. Os outros dois foram escritos em 2004, quando do "caso
Waldomiro" [ambos na Folha: "A disputa simbólica", em 18.fev.2004, e "Em
prol da reforma política", em
11.mar.2004]. Ambos insistem na necessidade urgente da reforma política.
Os fatos atuais (ou o que aparece como
fato) não modificam em nada o que escrevi há quase um ano, pelo contrário,
reforçam o que havia dito e por isso
não vi razão para voltar a escrever, pois
eu escreveria algo ridículo, do tipo:
"Como já escrevi no dia tal em tal lugar...". Ou seja, se meu segundo motivo
me leva a considerar que não há a menor condição para opinar no varejo sobre cada fato ou notícia, o meu terceiro
motivo é que, no que toca ao problema
de fundo, já me manifestei publicamente.
Resta o quarto motivo. Aqui, há duas
ordens diferentes de fatos que penso
ser necessário apresentar. A primeira,
se refere ao ciclo "O Silêncio dos Intelectuais"; a segunda, à atitude da mídia.
Há 20 anos, Adauto Novais organiza
anualmente ciclos internacionais de
conferências e debates sobre temas
atuais. Sempre com um ano de antecedência, Adauto se reúne com alguns
amigos para discutir e decidir o tema
do ciclo. Participo desse grupo de discussão. Em abril de 2004, quando nos
reunimos para decidir o ciclo de 2005,
alguns membros do grupo (entre os
quais, eu) preparavam-se para um colóquio, na França, cujo tema era "Fim
da Política?", outros iam participar de
um seminário, nos Estados Unidos, sobre o enclausuramento dos intelectuais
nas universidades e centros de pesquisa, e outros iniciavam os preparativos
para a comemoração do centenário de
Sartre, símbolo do engajamento político dos intelectuais.
Nesse ambiente, acabamos propondo que o ciclo discutisse a figura contemporânea do intelectual e Adauto
propôs como título "O Silêncio dos Intelectuais". Uma vez feitos os convites
nacionais e internacionais aos conferencistas, recebidas as ementas e organizada a infra-estrutura, Adauto fez o
que sempre faz: com muitos meses de
antecedência, conversou com jornalistas, passou-lhes as ementas, explicou o
sentido e a finalidade do ciclo.
Ou seja, no início de 2005, a imprensa
tinha conhecimento do ciclo e de seu título. E eis que, de repente, não mais que
de repente, durante a crise política, alguns falaram do "Silêncio dos Intelectuais", referindo-se aos intelectuais petistas! Curiosa escolha de título para
uma matéria jornalística... ["O silêncio
dos inocentes", reportagem da Folha
em 19.jun.2005] Veio assim, sem mais
nem menos, por pura inspiração. Mais
curiosa ainda foi essa escolha, se se
considerar que, ao longo de 2005, praticamente todos os intelectuais petistas
(talvez com exceção de Antonio Candido e de mim) se manifestaram em artigos, entrevistas, programas de rádio e
de televisão!!! Onde o silêncio? Como
eu lhes disse, notícias são produzidas
sem ou contra os fatos. E com as notícias vieram as versões e opiniões, os julgamentos sumários e as desqualificações públicas, culminando no tratamento dado ao ciclo, quando este se
iniciou.
A mídia decidiu que o ciclo se referia
aos intelectuais petistas, apesar de saber que fora pensado em 2004, de ler as
ementas, de haver participantes que
não são petistas, para nem falar dos
conferencistas estrangeiros. O ciclo virou espetáculo.
Uma revista afirmou que, entre os
patrocinadores (Minc, Petrobras e
Sesc), estavam faltando os Correios.
Uma outra afirmou que os participantes eram intelectuais do tipo "porquinho prático" (não explicou o que isso
queria dizer). Um jornal colocou a notícia da primeira conferência (a minha)
no caderno de política, sob a rubrica
"Escândalo do Mensalão", com direito
a foto etc.
A segunda ordem de fatos está diretamente relacionada comigo. Quando
publiquei o artigo sobre o "caso Waldomiro", um jornalista escreveu uma
coluna na qual me dirigiu todo tipo de
impropérios e usou expressões e adjetivos com que me desqualificava como
pessoa, mulher, escritora, professora e
intelectual engajada.
Não respondi. Apenas escrevi o segundo artigo, sobre a reforma política,
e dei por encerrada minha intervenção
pública por meio da imprensa. A partir
de então, além de não publicar artigos
em jornais, decidi não dar entrevistas a
jornais, rádios e televisões (dei entrevistas quando tomei posse no Conselho
Nacional de Educação porque julgo
que, numa República, alguém indicado
para um posto público precisa prestar
contas do que faz, mesmo que os meios
disponíveis para isso não sejam os que
escolheríamos). A seguir, veio a doença
de minha mãe e, depois, a crise política
como espetáculo.
No entanto, paradoxalmente, não fiquei fora da mídia: houve, por parte de
jornais, revistas, rádios e televisões, solicitações diárias de entrevistas e de artigos; a matéria jornalística "O silêncio
dos Intelectuais", não tendo obtido entrevista minha, citava trechos de meus
antigos artigos de jornal; matérias jornalísticas sobre o PT e sobre os intelectuais petistas traziam, via de regra, uma
foto minha, mesmo que nada houvesse
sobre mim na notícia.
Finalmente, quando se iniciou o ciclo
sobre o silêncio dos intelectuais, um
jornal estampou minha foto, colocou
em maiúsculas NÃO FALO (resposta
que dei a um jornalista que queria uma
entrevista quando da reunião dos intelectuais petistas com Tarso Genro, em
São Paulo) e o colunista concluía a matéria dizendo que o silêncio dos intelectuais petistas era, na verdade, o silêncio
de Marilena Chaui, o qual seria rompido com a conferência ["Ciclo expõe
mal-estar e silêncio da academia", reportagem da Folha em 21/08/2005].
Resultado: jornais e revistas, com fotos minhas, não deram uma linha sequer sobre a conferência, mas pinçaram trechos dos debates, sem mencionar as perguntas nem dar por inteiro as
respostas e seu contexto, transformando em discurso meu um discurso que
não proferi tal como apresentado.
E entrevistaram tucanos (até as vestais da República, Álvaro Dias e Artur
Virgílio!!!), pedindo opinião sobre o
que decidiram dizer que eu disse! E os
entrevistados opinaram!!! Num jornal
do Rio de Janeiro e num de São Paulo,
FHC disse uma pérola, declarando que
por não entender de Espinosa, não fala
nem escreve sobre ele e que eu, como
não entendo de política, não deveria falar sobre o assunto. Como vocês podem notar, o princípio democrático,
segundo o qual todos os cidadãos são
politicamente competentes, foi jogado
no lixo.
Qual é o sentido disso? Deixo de lado
o fato de ser mulher, intelectual e petista (embora isso conte muitíssimo), para considerar apenas o núcleo da relação estabelecida comigo. A mídia está
enviando a seguinte mensagem: "Somos onipotentes e fazemos seu silêncio
falar. Portanto, fale de uma vez!" É uma
ordem, uma imposição do mais forte
ao mais fraco. Não é uma relação de
poder e sim de força.
Vocês sabem que a diferença entre a
ordem humana, a ordem física e a ordem biológica (para usar expressões de
Merleau-Ponty [filósofo francês, 1908-1961]) decorre do fato de que as duas
últimas são ordens de presença enquanto a primeira opera com a ausência. As leis físicas se referem às relações
atuais entre coisas; as normas biológicas se referem ao comportamento
adaptativo com que o organismo se relaciona com o que lhe é presente; mas a
ordem humana é a do simbólico, ou seja, da capacidade para relacionar-se
com o ausente.
É o mundo do trabalho, da história e
da linguagem. Somos humanos porque
o trabalho nega a imediateza da coisa
natural, porque a consciência da temporalidade nos abre para o que não é
mais (o passado) e para o que ainda
não é (o futuro), e porque a linguagem,
potência para presentificar o ausente,
ergue-se contra nossa violência animal
e o uso da força, inaugurando a relação
com o outro como intersubjetividade.
Num belíssimo ensaio sobre "A Experiência Limite", Blanchot [Maurice
Blanchot, escritor e crítico francês,
1907-2003] marca o lugar preciso em
que emerge a violência na tortura de
um ser humano. A violência não está
apenas nos suplícios físicos e psíquicos
a que é submetido o torturado; muito
mais profundamente ela se encontra
no fato horrendo de que o torturador
quer forçar o torturado a lhe dar o dom
mais precioso de sua condição humana: uma palavra verdadeira.
NÃO FALO.
Vocês já leram La Boétie [Étienne de
la Boétie, filósofo francês, 1530-1563,
amigo do filósofo Michel de Montaigne]. Sabem que a servidão voluntária é
o desejo de servir os superiores para ser
servido pelos inferiores. É uma teia de
relações de força, que percorrem verticalmente a sociedade sob a forma do
mando e da obediência. Mas vocês se
lembram também do que diz La Boétie
da luta contra a servidão voluntária:
não é preciso tirar coisa alguma do dominador; basta não lhe dar o que ele
pede. NÃO FALO.
A liberdade não é uma escolha entre
vários possíveis, mas a fortaleza do ânimo para não ser determinado por forças externas e a potência interior para
determinar-se a si mesmo. A liberdade,
recusa da heteronomia, é autonomia.
Falarei quando minha liberdade determinar que é chegada a hora a vez de falar." (Marilena Chaui)
Texto Anterior: Escândalo do "mensalão"/Intelectuais: Em carta a alunos, Chaui explica seu silêncio Próximo Texto: Imprensa Índice
|