São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004

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JANIO DE FREITAS

Notas e fotos

Já são dois, e perfeitamente distintos, os aspectos críticos dos desdobramentos provocados pelas fotos nas quais a viúva de Vladimir Herzog o reconhece, despido e acabrunhado sobre um catre, que nem a agressiva nota oficial do Exército negou ser em dependência sua.
O primeiro dos aspectos decorre dessa nota. Seu desatino, seja considerada do ponto de vista histórico, político, moral ou militar, inscreve-a e aos seus adeptos nos casos de psicopatologia. A nota é produto de uma desestruturação que não identifica fatos e passado, presente e evidências, princípios e regras. Constrangido pelo desatino que também o atingiu, o governo levou dois dias mas, afinal, conseguiu extrair do Exército uma nota, tão sucinta quanto a anterior foi prolixa, de sentido à primeira vista decente.
A nota desatinada teve autores e responsáveis, não sendo uns e outros necessariamente os mesmos. Autores e responsáveis agiram em um sistema funcional que lhes possibilita desatinos como aquele e, já se tem o direito de supor, outros de mesmo ou pior quilate. Diante disso, que providências, além da nota para mascarar uma situação vergonhosa, o governo já tomou, como é do seu dever? Ou ainda pensa tomar? Ou nem pensa tomar?
Não são palavras de um jornalista que "tem má vontade com Lula", ou coisa que o valha, são da colunista do "Globo" Tereza Cruvinel, justificadamente bem conceituada: [a nota desaforada do Exército] "só aconteceu porque o atual governo, repetindo os que o antecederam, cultua o silêncio sobre os crimes da ditadura". É o que também chamou de "opção do governo Lula por evitar toda apuração dos crimes da ditadura".
Lula tem sua quota de responsabilidade pelo acesso fascistóide que procedeu do Exército e deve ao país o exercício da responsabilidade de que está investido como presidente. A notinha pretensamente reparadora não pôde escamotear a sua insinceridade de remendo e, como tal, não inicia o processo de consertos sem o qual a democracia brasileira estará, sempre, sob o desafio de espadas.
O outro aspecto crítico é bem paisano. Ao divulgar no domingo as fotos de Herzog, o "Correio Braziliense" informou que foram encontradas nos arquivos da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Em 28.8.97, aqui foi publicado um artigo ("O serviço dos agentes") motivado por documentos que o cabo José Alves Firmino, ex-agente, retirou do Exército e, de quebra, indicavam a persistência da espionagem "sob o regime dito constitucional no governo dito democrático do presidente dito democrata" (Fernando Henrique). O governo não teve maior interesse nos documentos, que poderiam levar a investigações contrárias ao seu desejo de proteger, não de esclarecer. Jornais também não levaram adiante a senda oferecida pelo ex-agente.
Mas como a Câmara dos Deputados, os atuais e os então integrantes da sua Comissão de Direitos Humanos e o hoje ministro Nilmário Miranda explicam a responsabilidade pelo absurdo de que só agora, passados sete anos de sua entrega, as fotos sejam notadas? Ou os documentos não foram sequer folheados, ou o foram e também na Comissão de Direitos Humanos, com os seus bravos petistas, fez o acovardamento conveniente sobrepor-se ao dever parlamentar, ético e humano. Também por este lado o país tem o direito de receber explicações e atitudes.


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